Nos cantos escuros do meu quarto – Contos da Lady Axe

Em mais um dos seus contos Lady Axe  nos contou como Felipe é obsidiado por um fantasma do passado. No escuro do quarto ele algo maligno que corrói muitos de nós!

Nos Cantos Escuros do Meu Quarto

Felipe deitou na cama desejando que amanhã não fosse segunda. O corpo enervecido de ansiedade trazia o pior para os pensamentos quando repousava a cabeça no travesseiro no domingo de noite.

Tudo o que passava na sua cabeça era que as coisas dariam errado, um sentimento de tristeza cortava seus olhos na escuridão. Memórias ruins do passado surgiam.

Na ansiedade, a escuridão se tornava agitada, o pensamento se voltava para cada objeto, que de forma confusa, ganhavam vida.

A calça no sofá lançava sombras que moldavam um rosto enraivecido. A cômoda e as gavetas abertas eram um tórax com as costelas arregaçadas, cheias de cicatrizes longas e protuberantes nas ranhuras da madeira. Os calçados no chão eram duas bocas abertas em sofrimento. Felipe foi alguém marcado por um medo atroz desde a infância, medo de qualquer coisa. Achava que ao se tornar adulto tudo iria parar.

Mas o pânico só ficou mais intenso.

As coisas na escuridão lhe assustavam ao ponto de cobrir a cabeça e a salvação era a luz do corredor refletida no velho espelho de família.

Um farol, um alento… A luz no espelho trazia algum alívio e a esperança de que a verdade estava do outro lado da parede, com isso, Felipe se sentia minimamente seguro.

Naquele domingo ele ficou observando a luz esperando pegar no sono. Mas o sono não veio.

O espelho atravessara gerações, as mesmas que o antecederam e viveram sob aquele teto, a casa imensa, antiga, de centenas de camadas de tintas na parede.

Vértebra por vértebra a coluna de Felipe congelou, embora o medo imobilizasse seu corpo, incrédulo diante da visão aterradora, acreditou ser impossível o sobrenatural diante de si, ele apertou os olhos e procurou qualquer sinal de lucidez e coragem.

A sombra cujo sorriso malévolo ainda estava estampado no rosto, moveu-se na direção da cama, tão rápido que os segundos se jogaram fora do relógio. “Felipe, quantas vezes eu disse que chorar é coisa de fracote?“.

Ouvindo a voz retorcida provocá-lo, uma súbita coragem acendeu dentro de si. Prometi a mim mesmo que jamais deixaria que me ofendesse novamente… vovô

Os olhos de Felipe encheram-se de lágrimas, aquelas palavras doíam mais que tudo, pois muitas vezes ouvira aquilo, seguido da porta batendo, enquanto o avô tirava o chapéu calmamente, colocava sobre a cômoda e abria a cinta, deslizando o couro grosso ao pelas encilhas na calça, surra era o que vinha.

E assim aconteceu.

Felipe lembrou da dor e dos soluços no canto do quarto, recordou-se do quanto doía… e das promessas que fazia a si mesmo “na próxima não vou deixar que me bata”.

E pela primeira vez conseguiu levantar a voz embargada: “nunca mais!”, ele disse, enquanto atravessava a aparição, jogando o corpo contra o espelho, as madeiras velhas quebraram e o vidro esmigalhou-se por todo o quarto. Cacos entranharam fundo na pele de Felipe e as luzes tremeram. Acenderam e apagaram uma vez mais revelando os dedos ensanguentados de Felipe. Seguiu-se o silêncio e o vazio como nunca havia sentido.

Embora machucado e com o piso tomado de minúsculos pedaços de espelho, Felipe voltou para a cama com o peito descomprimido, finalmente sentiu-se tranquilo naquele lugar, tão calmo que pôde dormir em paz.


Papo da Lady Axe:

Este conto pode ser usado como uma cutscene para sua sessão de RPG onde aparecerão seres sobrenaturais, fantasmas, traumas de infância ou espíritos malignos. Cenas introdutórias servem para antecipar a tensão logo no início e deixar suspenso o medo a cada nova informação a que o jogador tem acesso.

Uma ótima cutscene para vampiro a máscara está nesse link.

Não esqueça de conferir o post da minha sessão favorita Quimera de Aventuras

Rpg terror

Revisão de: Isabel Comarella

Arquivo 79 – Contos da Lady Axe

Em mais um dos seus contos Lady Axe  nos contou como o policial Paul é dedicado na investigação dos seus casos, e agora ele está totalmente debruçado sobre o caso Arquivo 79!

Arquivo 79

Obsessão

Uma carreira bem longa sumiu no nariz de Paul injetando no seu corpo as centenas de químicas que o manteriam acordado até as 4 da manhã, assim como vinha fazendo todos os dias neste último mês. Quando o corpo esquartejado da jovem na fotografia do arquivo 79 ficava borrado pelo sono, logo a mão corria na gaveta. Precisava ficar acordado. Precisava descobrir.
Mas Paul não sabia onde terminava sua teimosia e onde começava sua mania de perseguição, por isso se perguntava o que fazia sentido no trabalho.

Só um único objeto da cena do crime sugeria um assassinato e entre as dezenas de evidencias nos saquinhos ziplock, apesar de tudo que fora encontrado na mochila da vítima, foi uma imagem desconhecida, escondida no punho cerrado do braço direito, que lhe chamou a atenção. Entretanto, esse pedaço da vitima havia sido arremessado metros à frente, na margem do Rio Inuit.

Ataque de urso selvagem… leu o laudo de novo, de novo e de novo. Urso selvagem… A carne dilacerada por enormes mandíbulas cheias de dentes crestados de tártaro fez a polícia atribuir a morte a um ataque de urso. Caso encerrado. Contudo, não havia notícias de avistamentos de ursos há meses.

Nenhuma das pessoas ouvidas na investigação relatou ataques semelhantes, nem na beira do rio, nem nas matas frequentadas por turistas da cidade, que nada mais eram do que loucos por selfies brincando de mãe natureza entre os pinheiros cheios de gelo: adoravam o perigo controlado de um parque turístico na borda do mundo… Aventureiros das redes sociais!

Uma foto de narcisista espiritualizada pagando uma grana para se conectar com o mundo, essa foi a última no Instafoto da jovem. “Meditando e encontrando meu eu“, dizia na legenda. Sorria e mostrava os loiros de amônia feitos na tarde anterior, linda e agora morta… de uma maneira brutal. Paul só lembrava dela esquartejada. 

Ela não era daqui, ela não conhecia ColdVillage o suficiente para saber que nada é exatamente como parece. O policial já vira coisas em que nem ele acreditava, e desde então, tinha a constante sensação de estar sendo enganado por todo mundo, cria que ninguém no grande circo de horrores de ColdVillage era o que dizia ser. A mulher o deixará meses atrás porque ele acreditava que ela engravidava e abortava os fetos para comê-los, logicamente o juiz não acreditou na história. Nem a filha mais velha de outro casamento, trocou de telefone e nunca mais procurou o pai.

Paul pegou o saco de dentro de uma das dezenas caixas sobre o caso, esparramadas pelo apartamento estupidamente sujo e frio, cuja mudança de aspecto assemelhava-se a um depósito de insanidade e imundície. Dentro do plástico dormia um carneiro entalhado na madeira. Carvalho branco: também não é de ColdVillage.

Caçou novamente a foto da cena do crime, o braço decepado retinha o ídolo entre os dedos como se fizesse parte do corpo. Os cornos do ícone cravaram na palma da mão fazendo a carne rasgar e abriram caminho além dos músculos e ossos, o legista só conseguiu os retirar com um bisturi. Paul abriu o ziplock e repousou a pequena imagem na palma da mão. Tão pequena…

Como foi mesmo que estava na mão dela? pensou, enquanto rolava o ídolo de um lado para o outro na mão em concha, observando a peça com a sobrancelha arqueada de curiosidade. A luz lhe emprestava um aspecto medonho, porque o facho da cúpula descia sobre o rosto e lhe alongava a sombra do cenho.

Apertou tanto quanto pode, até os dedos ficarem brancos, daí sentiu uma fisgada. São os músculos forcejando demais? Abriu a mão e viu um pequeno corte em cima da linha da vida.

Merda de bibelô! Paul esbravejou enquanto limpava o sangue na própria calça, imediatamente sentiu falta de algo, cocaína. Correu na gaveta, vazia. Tateou os bolsos, nicotina, queria um cigarros. Maço vazio. Preciso de cigarro.

Vício

No meio do lixo e da bagunça da papelada, ele não podia definitivamente encontrar outra carteira de fumo. Revirou tudo, toda nojeira de restos de comida e trabalho jogados, e cansado, repousou os punhos sobre os joelhos, o ar escapou esbranquiçado pela boca e nariz, e a mão ainda sangrava.

De onde estava, Paul contemplou umas cinco ou seis garrafas de vodka vazias. Ele ainda tateou um pouco mais os bolsos na esperança de achar algum cigarro perdido, coçou a barba grande e desgrenhada, sem esperanças de nada. Mais fácil comprar mais. Bateu a porta e desceu na madrugada.

Na escada escura os passos ecoaram entre os lances velhos de degraus gastos. Algo sempre se movia na escuridão do penúltimo lance, respirava atrás de uma parede, mas dessa vez teve a sensação de bater de frente com alguém, como quem anda distraído.

Paul quase conseguiu ver, mas ainda não, faltava-lhe algo… Seguiu o caminho pelo prédio. A porta banhada pela luz trêmula do hall, acendendo e apagando e apitando, ninguém trocava a fiação da entrada, ninguém no prédio ligava.

Vexação

Na rua a treva de ColdVillage era rasgada aqui e lá pelo faixo de luz dos postes, o ar quente subia pelas valas das calçadas e derretia o gelo das grades. A loja de Jay ficava há duas quadras e tinha um desses letreiros neon de “24 horas” pendendo pelo fio como um dente de leite. Todo mundo sabia que em ColdVillage só a loja do Jay ficava aberta na madrugada. Tinha bebida, tinha batata frita, tinha cigarro e também tinha drogas.

No caminho, um cão se coçou entre as lixeiras de metal abarrotadas, enquanto seu dono dormia sobre papelões e cobertores imundos. Paul acendeu um cigarro, a luz bateu na cara e o morador de rua lhe sorriu com os olhos escorrendo como poças tortas e cheias de pus. Num piscar de olhos, a luz se apagou, O mendigo puxou o capuz e retornou para o chão do beco escuro.

Paul parou de sobressalto, congelado, mas ao mesmo tempo acelerado por dentro, a cocaína acelerava o sangue e a respiração. O coração batia forte. Merda de vício. Ele viu mesmo aquilo? Era produto da droga que pulsava a milhões no seu sistema? A mente afugentou tal ideia estapafúrdia.

A velha porta da loja reclamou ao ser empurrada, Paul aguardou para entrar porque o Xerife saia da loja com sua porção de batatas e café, batendo na aba do chapéu para lhe cumprimentar. O ar entre os dois encheu-se de animosidade. O investigador guardou as mãos nos bolsos do sobretudo pois cerrou os punhos de ódio, tentou certa cordialidade respondendo com um aceno com a cabeça. O Xerife Sinners o ameaçou um par de vezes quando descobriu as investigações extraoficiais que Paul fizera, Senhor, há indícios de que a jovem foi assassinada. Não, Paul, ela foi vítima do acaso.

Manteve distância do Xerife desde então, roubando documentos e evidencias para mantê-las em segurança, acreditava numa conspiração de policiais corruptos e o xerife fazia parte disso. Agora a corregedoria estava no pé do único que procurava a verdade, ele jamais abandonaria a busca por ela. E ele sentia que estava perto de um caso grande porque seu instinto o jogava em águas revoltas quando via as provas do caso do Rio Inuit, o arquivo 79.

Por um momento, enquanto o oficial saia, pensou ver feridas no pescoço dele, manchas na gola azul… de sangue, o homem passou rápido, será que foi alucinação causada pelo sono em um só um golpe de vista? É só uma ilusão. Ele desapareceu na rua escura e fria, caminhando em direção à viatura, os faróis acenderam com olhos de uma besta. O xerife se foi.

Paul sacudiu a cabeça e saiu do ideia de grande conspiração, estava parado na rua fria encarando o passeio deserto. Lembrou-se a que vinha, puxou a porta reclamona da loja do Jay, a sineta no umbral avisou que tinha outro alguém chegando. Uma luz branca invadiu a retina arregalada do investigador, doía pra cacete. Os olhos fecharam-se imediatamente e a cabeça girou na direção do balcão onde ficava o amigo Jay. Um maço de cigarros, ele pediu, ainda consumido pelo breu branco.

O Oculto

O barulho da caixa registradora deu um tiro nos músculos tensos de Paul e a risada de Jay encharcou-lhe a cabeça como sangue numa toalha seca. Uma risada bizarra, levemente metálica. Quando os olhos do investigador finalmente se abriram, habituados à brancura da loja, Jay estava de costas, pegando o cigarro no estande.

Só isso? Jay perguntou, já sabendo que nunca era só isso. Não, quero a mesma quantidade de ontem. As mãos de Jay correram para o fundo falso atrás da cigarreira, de onde tirou 8 pinos cheios de cocaína.

Nesse instante Paul lembrou de comprar um isotônico. E caminhou lentamente através do longo corredor observando os produtos nas prateleiras: café de máquina, macarrão instantâneo, flocos de milho processado até não parecer milho, garrafas de água açucarada e gás carbônico. Nada disso é vida… O freezer barulhento roncou e rosnou protegendo seu energético favorito.

Quando estendeu o outro braço para fechar o freezer é que se deu conta do que tinha na mão: a imagem do Carneiro colada no punho cerrado. Ele voltou para o caixa observando atentamente a criatura timidamente tingida pelo seu sangue. As luzes piscaram intermitentes e aprisionadas nas longas lâmpadas industriais, zumbindo tanto quanto insetos que se movem dentro de uma garrafa. Paul caminhou por ali até se livrar do momento hipnótico, e deparou-se com o balcão.

Assim, Jay virou o corpo lentamente e o tecido que recobria sua imagem foi consumido como uma chama que devora um fino papel. A imagem do idoso que lhe vendia drogas e cigarros dissolveu-se como poeira e caiu ao chão, revelando uma criatura de pesadelos. Paul sentiu o peito ser apunhalado por uma dor aguda, a boca tremeu sem saber o que dizer, o suor escorreu pela testa emoldurando a palidez do rosto, pânico! Um rugido antecedeu os movimentos de Jay, o Jay criatura, agora na forma real: a cabeça peluda, o corpo duas vezes maior, garras imensas se projetando ameaçadoras na direção de Paul.

Verdade

A criatura que Jay se tornara sempre esteve ali, ele saltou sobre a registradora e derrubou os estandes do outro lado do acrílico, o plástico foi arremessado acima da cabeça do investigador, a besta imensa abriu os braços e os músculos tesos e violentos urrando e vibrando ameaçadoramente  junto com ela e depois desferiu um golpe mortal no peito de Paul. Suas costelas se rompem sem que ele conseguisse fazer absolutamente nada, a carne explodiu, seu coração saltou longe, ainda bombeando, e o sangue se esvaiu em esguichos, manchando o chão de plástico do corredor.

A criatura caminhou sobre as patas repletas de pelos e cascos, a cor marrom escurecia e clareava conforme o lustre balançava sobre a carnificina. Ela agachou e abriu as mãos do investigador, que ainda espasmava, tomou delas o ídolo, cravado na mão trêmula. Jay, a criatura, ergue o objeto e inclinou o pescoço, deixou o pequeno ídolo cair sobre a boca aberta, o engolindo pelo fosso de sua garganta.

Jay caminhou como se não fosse um monstro. O pelo recrudescido não sumiu, os músculos e ossos salientes eram uma armadura de esqueleto, feridas abundavam no rosto e no peito, sua visão se contorcia através de imagens trêmulas e sobrepostas que tentavam encaixar-se, protegido pelo véu grosso que tapava os olhos daqueles que são cegos à divindade: aqueles que estão perdidos só veriam o Jay da loja, mas, o Jay, traficante de almas, esse não podia se esconder de quem levanta o sombrio véu do oculto e decide abrir os olhos para contemplar o incompreensível.

O homem de meia idade, comerciante local, voltou para trás do balcão e tomou o telefone, desceu o dedo no teclado e após bipar duas vezes, falou com certa satisfação: Alô? Xerife? Mais um intrometido.


Papo da Lady Axe, ou Jaque Machado, como preferir:

Esse conto é inspirado pelo RPG Kult. Você conhece?
Nele você encontra uma semente de história e também um cutscene ótima para dar clima para a jogatina, por isso, use o que desejar!

Você pode utilizar o guia de criação de personagens que o Raul publicou aqui dessa maneira criará personagens incríveis para contar histórias junto de outros jogadores!

Visite  o site da Editora Buró para conhecer mais sobre esse RPG catártico e muito imersivo.

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Revisão e Montagem da capa: Isabel Comarella

Recruta! – Contos da Lady Axe

Nesse conto de Lady Axe vamos conhecer o Abraço que Maria recebeu do seu clã Sabá. Ela é a mais nova recruta deles e os Sabá prometem aterrorizar tudo que puderem!

Recruta! 

Tinha um cachorro furioso batendo contra um portão de lata. Maria escutou isso dentro da cabeça quando seu olho estalou. Saiu do sono, ou o que quer que fosse seu estado, com uma pulsação fazendo pressão nos ouvidos, empurrando o coração para fora da boca.

Estou morrendo! Agitou os músculos, mas estava presa na escuridão. Estou sufocando! Não era como se a tivessem posto em grilhões, porque sentiria o ar circulando e encostando na pele. Não era isso. Tinha cheiro de barro e alguma coisa ocre dentro da boca.

Minha boca, minha boca! Os olhos giraram nas órbitas imensas, era escuridão ou havia algo a cobrindo? O perfume de coisa apodrecida, de mato em decomposição. Ela pôs a língua para fora e uma porção de terra invadiu a cavidade, não podia cuspir… Uma minhoca deslizou sobre a língua rígida indo em direção à garganta, descendo por sobre a terra e roçando contra o palato, fez um esforço para por pra fora, mas não foi suficiente. Sua arcada dentária estava áspera e coberta de silte. E havia algo lá, algo que não estava antes.
O barulho aumentou, os cães na sua cabeça estavam famintos e violentos e alvoroçados.

Os cães! Os cães! O portão estava por um fio, a lata chapada adquiriu o formato de mandíbulas, abalroada por cabeçadas, sentiu o gonzo latejar. Explodir. Dilacerar. Nada dura por muito tempo… Forçou o braço através da areia e do barro e da vegetação de raizes e rizomas, bulbos e gravetos, grama embebida chuva, pedaços de terra aglomerados, o punho finamente venceu a coluna de horizontes. Encontrou o ar gelado e banhou-se numa forte chuva, que lavar os dedos barrentos. Mas não as unhas, por debaixo a rocha, o sangue, os cães.
Ela deveria ter suspirado de alívio, mas não foi isso que aconteceu.

Os cães derrubaram o portão e avançaram com fúria sanguinária. 

Maria rasgou o chão em fúria e nasceu da terra como um animal feroz, seu tronco se projetou para a superfície enquanto ela calçava os braços contra a lâmina de barro, pequenos regatos se formavam nas laterais da cova improvisada da qual saía.

Ela nascia e se erguia com todos os seus cães, na boca, nos dentes, na fúria desatinada de um canil famélico. A tempestade comia os céus e os cães a moveram para a superfície. Dentro dela. Adiante derraparam, raivosos, famintos, emaciados. Eles farejavam a carne, a carnificina, o leite maldito e assim que Maria rastejou para fora, eles souberam que o sangue vinha de si mesma: suas roupas estavam ensopadas… do próprio sangue!

Raios intermitentes revelaram o cenário num piscar de luzes: árvores, sepulturas e três pessoas à sua frente, cobertas de capas de chuva. Só paradas ali, esperando por algo… ela abriu a boca e enormes presas saltaram das gengivas.

Urrou como uma besta, ela e seus cães rosnaram pela mesma boca: disparou na direção de um deles, o que movimentou-se na sua frente.
Ao contrário do que Maria pudesse imaginar, ele não ficou com medo e quando estava próximo suficiente, os relâmpagos tingiram seus corpos de cinza na penumbra, e viu o vulto erguer a pá, acertando aquilo com força descomunal no seu abdômen. Espasmos. Suas pernas foram quebradas por pontapés de outros que vieram por detrás do cara com a pá. Caiu com dor sobre o barro, mirando os raios cruzarem escuridão do céu.

Uma mão saindo da terra a agarrou, o que não há incomodou mais do que o fato de estar imobilizada. O cara da pá aproximou-se, enxugou a água abundante do rosto, evidenciando agora seus olhos acesos sob o capuz de plástico. Uma fera. Outro cão selvagem. Ele calçou a ferramenta com violência no peito dela, impedindo que, mesmo estado de frenesi absoluto, ela conseguisse erguer corpo.
— Seja bem-vindo à família, mocinha. Está na hora de caçar uns Camarilla!

Papo da Lady Axe:

Vocês já jogaram ou narraram um abraço Sabá? Esse conto pode facilmente se tornar uma cutscene na sua mesa! Fique à vontade para usar e não esqueça de voltar aqui e nos contar como foi o seu jogo de vampiro! Eu adoraria saber o que a galera achou da cena e como os personagens reagiram após o abraço ou transformação! Se estiver jogando Vampiro: A Máscara, você pode usar a cena para colocar medo nos Camarillas do terreno, o que acha?


Leia mais horror no clube de leitura Quimera de Aventuras

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Recruta! – Contos da Lady Axe

Revisão: Isabel Comarella

O Monstro Melhor

O Monstro Melhor é um dos contos que você pode encontrar no livro Vampiros: Festim de Sangue da autora Jaque Macahdo. Além desse, há muito mais para se aterrorizar!

O Monstro Melhor

Interrupção

Baleia e os cinco filhotes não estavam latindo mais, pararam repentinamente na madrugada. Os ganidos foram, um a um, sendo silenciados. Hermes puxou as cobertas para o lado, a mulher estava detida em um sono pesado, por isso ligou o abajur. Calçou as velhas pantufas de aposentado, tomou os óculos da cabeceira e o pendurou sobre o nariz rugoso, enquanto acendia a lanterna do celular já ultrapassado.

Apesar dos cães terem ganido muito alto, o que o fez saltar do sono, tudo ficou em silêncio durante a caminhada cautelosa até a janela. Puxou as aletas e espiou através da cortina: tinha alguém em frente ao canil, de cócoras, desferindo movimentos brutos e vacilantes, entre rosnados e injúrias, não percebeu que estava sendo observado.

Hermes balançou a cabeça de um lado para o outro, desapontado. Respirou fundo, exitou por um instante antes de balançar o chaveir cheio e descer a maçaneta da modesta porta de alumínio. Caiu na noite do quintal com os olhos cheios de lágrimas e o coração partido.

Inquisição

“No que você se tornou?”
O pai olhou o rosto transfigurado do filho, mas suas palavras eram cheias de pesar, e não era medo que se embrenhara na fala rouca e embargada, o velho homem sentia o duro golpe da vida diante daquela cena, em sua velhice, queria ter um filho bem encaminhado. Logo, presente na entonação, o que sentia era o julgamento, a reprovação, mas acima de tudo, a dor.

“No que você se tornou?”, diante do silêncio, insistiu. As presas para fora mal deixavam Pedro fechar a boca, os olhos vermelhos, tomados de raias escurecidas brilharam o fundo reflexivo na luz da lanterna do celular, que o pai lhe apontava. Defendeu as vistas com as mãos e os braços, ensanguentados, acabou sujando as mangas do moletom surrado com o sangue que encharcava sua boca, maxilar e colo.

“Fale! No que você se tornou?”
Ordenou uma última vez diante do horror presenciado, só que não era à criatura da noite, o vampiro, a que o genitor se referia… ele falava do humano dentro do filho.

Monstro

Hermes já havia visto isso antes, infelizmente sabia que os sanguessugas eram reais. Lidara com um deles durante uma boa parte da vida, até encontrá-lo num buraco fétido onde arrancara sua cabeça enquanto dormia. Enterrou esse episódio da vida debaixo de um casamento e uma família sem sombra de dúvidas, feliz. Mas, soube o que seu filho virara ainda na primeira semana, o comportamento… ele conhecia! No entanto, não queria acreditar Ainda nutria esperanças de que a educação que dera a Pedro o salvaria da desgraça. Mas não…
Hermes concluiu que seu filho havia sucumbido irremediavelmente.
Pedro, surpreendido e assustado, pulou a murada, deixando um rastro de seu vulto, e também de sangue pela murada, depois sumiu na escuridão.

Passeio Noturno

Horas antes, enquanto a fome secava seu corpo e coagulava lhe o sangue, o rapaz acordou de um delírio animalesco quando estava prestes a enfiar seus dentes na garganta de um estudante que voltava para casa da faculdade. Ele sabia que não era isso, seu pai lhe ensinara a ser mais e foi a isso que se agarrou na mente turva e obscurecida pela fome. Pedro, ao se deparar com o horror da besta dentro de si, correu… correu como um animal até sua casa, atravessando a cidade e chegando ao lugar seguro de suas memórias, pulou o muro e se viu de frente com o canil.

Eterna Convicção

“Existem muitos monstros. É preciso escolher qual deles você vai ser”, falou para si mesmo, enquanto suas presas e olhos voltavam ao normal, cercado de pasto umedecido pela cerração da madrugada fria. Enquanto sentia o sangue se agitar gentilmente dentro do corpo gélido, sua besta se acalmava, agora seus sussurros eram quase inaudíveis. “Existem muitos monstros. É preciso escolher qual deles você vai ser”, repetia para si mesmo como uma oração. Ele desejava ter dito isso em voz alta para o pai antes de fugir, mas para o seu velho, não existe o monstro melhore ou o pior, só monstros.

Leia mais sobre Unindo a Coterie – dicas para Vampiro: A Máscara 

Costo inspirado no quadro: “O Pesadelo”, de Henrique Fuseli.


O Movimento RPG agora tem uma super novidade. Temos nosso próprio Clube do Livro, A Ordem da Quimera (acesse por esse link). E este mês estamos com o livro No Rastro dos Corações do autor Wallace Oliveira. Para participar é muito fácil, acesse o link anterior e lá entre em contado direto com a Lorde Isabel Comarella (Bell Comarella#0272). Aproveite e faça parte nosso servidor no Discord.

No Rastro dos Corações


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O Monstro Melhor

Revisão de: Isabel Comarella

 

Um Homem Bateu em Minha Porta… e Eu Abri! – Contos da Lady Axe

Tomar comprimidos sem água é difícil, a garganta dói. Carol nunca conseguiu beber remédios a seco, engolir essas coisas fica difícil.

Daí que pensou que levantar, arrastar o corpo pela casa… Imaginou o corredor longo e escuro, a cozinha silente cortada pelo ritmo da água pingando na pia de inox. Sem copos limpos, ela pensou, a louça estava toda suja. Tomar comprimidos com água daria muito trabalho.

Engoliu os seis de uma vez, o amargor desceu travando na goela. A cama bagunçada de repente ficou aconchegante. Os lençóis quentes a abraçaram, a parede brancas ondulou.


 

“Um homem bateu em minha porta e eu abri… Senhoras e Senhores, ponha a mão no chão…”, a mesma música surgia na cabeça assim que o corpo amolecia. De início vinha a sensação de pular corda na rua até tarde, com o cabelo molhado batendo nas costas, cheiro do condicionador de frutas, nos pés a sandália de plástico translúcida que infestava o calcanhar de bolhas, mas ninguém queria tirar porque era moda. Boa menina, brincando na rua, ela. Depois a música ficava alta… E mais alta, enquanto tudo em si amortecia, os nervos tremendo sob o lençol de algodão velho e macio, como o da casa da avó, cheirando a sabão de coco.


Um homem bateu em minha porta…”

Ela ouviu o toc toc na porta da frente, e era nítido o som dos seus calçados de crianças batendo na tijoleta vermelha, muito encerada com pasta, ela vinha correndo atender a porta. Era ela, Carol, o vestido quadriculado que a avó lhe fez para o aniversário de oito anos, agora que tinha dez, mal conseguia fechar, a barra batia na altura das nádegas, já não servia mais. Só que Carol achava que sim, ela não sabia que havia crescido.

Toc toc. 

E ela abriu.


 

A luz por detrás da cabeça do homem deixava o rosto mergulhado na escuridão, o olho pequeno de Carol morava na diagonal para cima, no topo, aonde falam os gigantes. O sol forte lhe cegou, não dava para ver quem era.  “Senhoras e Senhores…”, uma voz calma e grave veio dele, Carol ficou aterrorizada, dizer aquilo foi um gatilho, a bala estourou no ouvido. O corpo pequeno gelou e ficou paralisado.

O homem plantou a mão na porta quando a pequena tentou fechá-la, “senhoras e senhores, onde está Carolina?”, a voz ficou retumbando dentro da cabeça, entre risadas e deboches, todos as apelidos e ameaças da escola, toda a vergonha e a culpa, ora por ter sido boa aluna, ora por ter se deixado ser vítima de tantos burburinhos.

Ela tinha escolha?


Agora o corpo de adulta já não respondia mais à Carolina, enquanto estendida sobre a cama, a medicação atravessou seu sistema completo, era para apagar. Porém, não dormente o suficiente para deixar de ver a borda da colcha balançar, de perceber no vão escuro da cama refletido no espelho, que algo se movia.

“Um homem bateu na minha porta e eu… abri…”, o coro de vozes de meninas e risadas voltava. Um puxão estupido e repentino no cabelo, a cabeça girou para traz.

“Você me deixou entrar, Carolina… Foi você que abriu a porta”

Carol encheu os olhos de medo e lágrimas e pânico. No dia da confusão, o diretor da escola a colocou sobre seus joelhos, bem sentada. Prometeu que nenhuma humilhação jamais se repetiria. “Posso ir na sua casa, falar com seus pais?”, Carol, cheia de medo e vergonha, não sabia com o que havia consentido, era só uma criança diante de um adulto que deveria protegê-la. Mas naquela tarde, não tinha ninguém em casa, ela estava só.

Carol moveu um dedo, peso de um tonelada. Mãos surgiram da escuridão debaixo da cama, com pegas doídas, ansiosas, apertando e beliscando-lhe as pernas. Muitas mais, pequenas e escuras e cheias de aranhões, algumas faltando dedos, movimentos angustiantes se desenhavam no ar e todas elas queriam alguma coisa aonde se agarrar, elas queriam… subir!


Carol apertou os olhos e lembrou do que deveria fazer, precisava continuar a música, era assim que ele iria embora: “senhoras e senhores, ponha a mão no chão…”.

O braço despencou para fora da cama, com a única força que Carol conseguiu empregar, em seguida concentrou-se no tronco, como rolar uma tora de madeira imensa e molhada no meio do barro, ela tentou outro impulso, jogou o corpo totalmente grogue.

“Senhoras e Senhores pule num pé só…”

As risadas insuportáveis cresceram na sua mente. Agora que ela estava vulnerável no chão, as mãos a estavam puxando, queria sair de lá mas não percebiam que seguraram a roupa e a pele de Carol, ela estava sendo dragada por aquele desespero.


A mente confusa encontrou algum apoio na escuridão, agarrou-se na música, ela deveria prosseguir. Forcejou contra o chão titubeando, os músculos moles foram erguidos sobre a firmeza dos ossos, e com o apoio os braços trêmulos, fez toda a força que podia para agarrar a coberta, que escorregou para fora. Ela desabou.

Os olhos lacrimejantes miraram o forro do colchão, onde cravou as unhas com tanta força que viraram na direção contrária. Carol pinçou o tecido e içou-se sobre o próprio corpo, cambaleou.

“Preciso de um último movimento.”

Antes de desabar, ela pulou com um dos pés no ar, depois deixou o corpo desabar no chão, para longe das mãos que se projetavam da escuridão debaixo da cama.


No reflexo do espelho o homem da porta, o visitante, de pé e imenso, cobra a luz do corredor. Uma uma risada demoníaca no seu rosto de sombras.

Ele estava entrando.

“.. dê uma giradinha..”, ela complementou entre os dentes travados, e olhando aquela sombra densa e aterrorizante, rolou o corpo no chão. “… E vá pro olho da rua..”.


A imagem desvaneceu. As mãos retornaram para o buraco de onde quer que tenham saído. as sombras diminuíram e as vozes na sua cabeça pararam imediatamente.

Carol ficou no chão, porque o corpo estava imóvel, mas a mente acelerada pelo pânico a compelia a permanecer entre o sonho e a realidade. Ao som do claque claque do relógio,  a casa vazia na noite esperava por algo. Carol rastejou até a sala, arrastou o corpo até o sofá, não tinha como sair nada lá debaixo, e  ali apagou.  Dormiu de exaustão, e nem percebeu as batidas na porta da frente.


Um Homem Bateu em Minha Porta… e Eu Abri! – Contos da Lady Axe

Texto: Jaque Machado.
Arte da Capa e Adaptação: Douglas Quadros.

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Criação de Personagens – Mestre Tunado #01

Criar personagens de RPG, seja como jogador ou mestre, não é uma tarefa fácil. O volume de criações ou o aprofundamento que é necessário para compor um elenco pode se tornar algo extremamente cansativo ou vazio. Portanto, bons métodos podem facilitar essa tarefa e auxiliar a criar personagens exatamente como queremos: recheados e profundos na medida certa.

Para ajudar mestres e jogadores vamos mostrar algumas técnicas utilizadas na literatura, no teatro e no cinema, para criar bons personagens. Antes de sair lendo e fazendo, é preciso estabelecer que estamos criando uma representação de um ser humano, não criando uma pessoa real. Assim, para nós, o personagem será um conjunto de características cristalinas que permitem pensar que ele é real. Quando fazemos isso, fazemos um exercício de empatia, uma tentativa de compreender o ser humano. Lembrando: as dicas a seguir servem para criar personagens de qualquer sistema ou história, não são regras e mecânicas de jogo, mas da essência dos personagens. Para criação mecânica de personagens existem muitos artigos aqui no site, como este do Raul Galli, sobre personagens de Blades in the Dark.

Sob pressão

Conhecemos um personagem através de suas AÇÕES. Na literatura a gente chama essas ações de simples ou dramáticas, as simples são aquelas do dia dia mas não são relevantes para a história, mas podem ilustrar quem ela é. As ações dramáticas são aquelas que vão mover a história, são as ações da personagem que fazem a roda da história girar, desenvolvem o arco, o enredo, etc. Como diz Robert McKee em seu livro Story: “A verdadeira personagem é revelada nas escolhas que um ser humano faz sobre pressão, quanto maior a pressão, maior a revelação e mais verdadeira a escolha para a natureza essencial da personagem.” É apenas através dessas escolhas, dessas ações dramáticas, que conheceremos de verdade o personagem. Essas ações nos mostram quem de fato eles são, a isso damos o nome de personificação.

Personificação

A personificação nos proporciona criar o modus operandi, a maneira de sentir, agir e pensar do personagem. Nem tudo é claro ou está explícito sobre ele para você, mas é daqui que você vai partir para conhecê-lo. Lembrem-se que as personagens não são apenas aquilo que mostram, mas também (e principalmente) as coisas que escondem: sentimentos, ações e verdades.
Assim, dependendo da história que você vai contar é importante que essa personagem seja delicadamente esculpida aos poucos. Suas facetas se revelam nas ações, você só precisa conhecer o básico dela, as camadas que você pode determinar no status quo. Se você deseja um material mais aprofundado sobre personificação, pode fazer o download deste material gratuitamente.

Tipos de personagens

Agora você entender qual o tipo de personagem que está criando para estabelecer tudo que deve sobe ele. Determinar o tipo ajuda a criar um volume de informações sobre ele de acordo com a sua relevância para os protagonistas jogadores, bem como para o cenário e conflito. Lembre-se de identificar estes elementos antes de criar os personagens, para que tudo entre em sintonia e não tenhamos um elenco desbalanceado.
Quanto à ação: ativo ( muda e interage com o ambiente) e passivo (é mudado pelas coisas e pelo ambiente, a história o conduz e ele parece, às vezes, um mero espectador). Esse tipo de personagem provoca plots e arcos interessantes, como por exemplo, a possibilidade dos protagonistas intervirem em situações de urgência, mudando o rumo dos acontecimentos para os NPCs ou o próprio conflito da trama.
Protagonistas: são os personagens dos jogadores, em torno dos quais a história é desenvolvida.
Co-protagonista: é o segundo personagem mais importante, geralmente NPCs. Possuem uma relação próxima com o protagonista e os auxiliam na busca de seus objetivos.
Antagonista: o antagonista se contrapõe ao protagonista, mas nem sempre está presente nas narrativas. Algumas vezes aparenta ser o vilão da história e pode não ser uma pessoa, mas um ideal, uma instituição, um grupo, algo que dificulta os objetivos do protagonista. Aqui existe um segredo: o protagonista não é uma antípoda completa do protagonista, ele se opõe aos protagonistas sempre em relação a algo, como um conflito onde defendem interesses antagônicos, alguém ou algo no cenário. Observar isso acaba por afastar a ideia de um inimigo por simples rivalidade, dá profundidade à relação de antagonismo e permite jogar NPCs de um lado ou outro (co-protagonista ou antagonista) conforme os acontecimentos se deslindam.
Oponente: o oponente é o parceiro do antagonista, em uma relação similar à existente entre protagonista e co-protagonista. Pode ser um amigo, parente ou funcionário do antagonista principal.
Coadjuvante: é um personagem que auxilia no desenvolvimento da trama, exercendo uma função que pode, ou não, estar relacionada com a história principal. Existem coadjuvantes que morrem para fazer a trama acontecer, tenha em mente que a função dele se relaciona com a trama (conflito mais cenário ou enredo)
Figurante: o figurante não é fundamental para o enredo principal e tem o objetivo de tornar robusto o ambiente.

Métodos de criação

Agora que vimos o que é importante saber para criar bons personagens na medida certa de informações, vamos aos métodos, que são escolhidos conforme o grau de profundidade que desejamos que tenham.

Método das dez camadas

O método das dez camadas é algo mais profundo. Guarde esse método para personagens mais complexas. Tenha em mente que esse método permite apenas vislumbrar as camadas, porque vamos conhecê-las apenas quando o personagem está em ação, é justamente por isso que você como narrador deve apresentar uma camada de cada vez, sempre em momentos relevantes e coerentes para trazer essas informações. Responda os questionamentos do link sobre a personagem e divirta-se.

Método de Luz e Sombra (Stanislavsky)

O método stanislavsky para criação de personagens no teatro pode ser aproveitado para criar seus “bonecos” de RPG. para que você utilize esse método é importante conhecer duas ferramentas que ajudam na compreensão das emoções e comportamento do personagem: a análise ativa e o subtexto, respectivamente, o que o personagem faz e que diz quem ele é, mas também aquilo que ele não faz ou deixa subentendido.
Análise Ativa: é uma maneira dos atores analisarem o material proposto pelo texto dramatúrgico na ação cênica, nos ensaios, ou seja, procurar compreender a obra dramática através da ação praticada ou improvisada. O jogador de RPG faz isso toda vez que interpreta um personagem.
Subtexto: é aquilo que não está escrito explicitamente no texto dramático e é colocado nele a partir da análise do texto pelo ator. O subtexto estabelece o estado motivacional da personagem e também uma distância entre o que é dito no texto e o que é mostrado pela cena, podendo inclusive contradizer ou aprofundar aquilo que a personagem está realizando.
Esse método de criação e também chamado de “sentir pensar agir”. Um personagem pode agir com base na razão ou emoção. Determine qual é mais predominante na personagem. Pode ser que o personagem aja irracionalmente, como através de um gatilho, por exemplo, tornando-se impulsivo.
Pense em como ele se comportaria em determinadas situações, sempre levando em consideração o seu passado, tudo que ficou estabelecido, mas principalmente, como ele conversa com o contexto e o cenário, com as demais personagens e quais são seus conflitos. Sentimentos que necessitam corresponder a uma carência, chamada de necessidade, e sabendo disso, podemos identificar como a personagem agiria para obter o que precisa. Depois que você sabe como a personagem age e entende como ela sente, você pode presumir o que ela pensa. Opiniões, ideias, conclusões sobre fatos e pessoas. Clique aqui e preencha a ficha de criação por esse método.

O método resumido

Com ele você vai criar uma personagem que se chama de linear, que poderá ser trabalhada ao longo da história, mas em princípio, nós precisamos atribuir verossimilhança e profundidade ou relevo a essa personagem de forma simples. O relevo autoral é a atribuição de habilidade para a personagem, elas estão ligadas à história dela. O passado dela cria uma espécie de modus operandi, que vai guiar a tomada de decisões. Crie luz nessa personagem atribuindo cinco virtudes. Após, veja como essa luz lança sombras sobre ela, que são 5 características negativas opostas às virtudes. A profundidade do relevo é dada pela sombra de fundo, que são fatos do passado que essa personagem carrega, dos quais ela se envergonha, que podem implicar no desenvolvimento do seu arco, e que na maioria das vezes, são determinantes para o futuro dela. A sombra pode influenciar sobre um arco de redenção, vingança, perdão, entre outros.

Arquétipos

Os arquétipos são uma maneira muito prática de criar personagens. Se você procurar pela internet vai encontrar muitas informações sobre os arquétipos que são aplicáveis à área de recursos humanos ou até à astrologia. Vou mostrar para vocês os arquétipos literários que foram criados pelos Eleazar Meletinski (arquétipos performáticos) aqui neste link.

Agora que conhecemos três métodos de criação de personagens, tenho certeza que você já teve vários insights, basta levantar as mangas e partir para o trabalho, mestre!

O Barão – Contos da Lady Axe

Senti fome e fui até a cozinha.

As criadas estavam recolhidas, então, já que o estômago pediu, levantei sendo cuidadoso e tentando fazer silêncio para não acordar a casa ou Jeanine, minha Senhora. Quieto, fui direto para a fina toalha que recobria as sobras do dia. Debaixo estava uma torta, belíssima, mas não pude comê-la. Nunca mais comi nenhuma maldita fatia de torta depois daquela história.

Vocês entenderão.


Cerca de dez anos atrás , ao som de canhões explodindo à distância  nas ruas de São Domingo, jantávamos no serviço luxuoso do governador Caceres, enquanto os criados tentavam disfarçar as mãos trêmulas, fingindo que nada estava acontecendo. O Monsenhor me pedira para pôr a punho um relato seu: “Precisa ser hoje, Monsenhor Nouveaux, meu jornalista, creio que suas palavras descreverão com mais propriedade os acontecimentos terríveis que presenciei. O aguardarei para o jantar. Comeremos e beberemos como Reis”. 

Estávamos Jeanine, Monsenhor Governador Caceres, dois de seus maiores oficiais e eu.

Dai que a história foi contada com muita riqueza de detalhes, mas justo enquanto olhava  a sobremesa no prato, uma fina torta, que deixou de ser apreciável e saborosa daquele momento em diante na minha vida.

Jamais pude esquecer.

O Governador levantou-se, arrastando uma perna, a bengala batia no chão de madeira como o ponteiro do relógio, pegou tinta e papel e colocou na minha frente. “Registre..”, comandou, e eu obedeci, curioso, porém assustado com o tom sério que tomou conta do rosto de Caceres.

“Cinquenta e quatro homens sob o meu comando juntaram-se à frente das últimas barricadas de resistência, a Grã-Colônia tentava evitar a queda no leste, mas fomos sendo empurrados para dentro da mata. No final do segundo dia, restávamos um soldado e eu, fomos caçados no meio do inferno verde. Qualquer lugar escuro e aterrorizante seria um bom abrigo, mergulhando na penumbra da floresta, quente e úmida, encontramos a entrada de uma caverna. Mas ainda era possível escutar os latidos dos laboreiros farejando nosso encalço, sugeri que entrássemos mais fundo na maldita gruta, Monsenhor.

Morcegos subiram até os estertores, cegos pelo último facho de luz que entraria ali naquela noite, nos deitamos na escuridão agarrados nos mosquetes e adormecemos.

Acordei com o grito do soldado ecoando até desvanecer em algum lugar nas trevas das altas paredes. Saltei desperto e empunhei a arma, esperando pelo inimigo na escuridão.”

O Governador apagou algumas velas e ficou parado olhando fixamente para a luz, uma única à sua frente. As sombras andavam pelo seu rosto conforme a chama dançava, ele jogou os olhos sob as fartas sobrancelhas escuras na minha direção. 

– Você tem medo do escuro, Monsenhor Nouveux?

– Eu? Ah… Monsenhor, Caceres… – não sabia o que responder sem sugerir ignorância ou covardia da parte do governador. – Depende do que há no escuro, Senhorio…

Ele sorriu e balançou a cabeça com escárnio, mas manteve-se naquela posição e passando o dedo nas chamas prosseguiu:

– Deveria ter medo do escuro, Monsenhor Nouveoux, ninguém sabe o que há nele.

Voltei a anotar o que relatava, Jeanine parecia desconfortável agora, tudo ficou escuro na sala, certamente ela estava com medo disso e também das canhoneiras explodindo à distâncias cada vez menores, os franceses estavam aproximando-se uma uma tormenta.

“Escorreguei no guano, não à ponto de cair, mas da baïonnette refletir a fraca luz do buraco acima na escuridão. Tinha alguma coisa lá e fedia como o inferno e ela tinha levado meu último homem para sua desgraça.”

– Já atirou de baïonnette, Monsenhor Nouveaux? – os outros dois generais riram quando embasbaquei.

– Não…

– Elas não são armas letais, meu amigo, o coice é imenso e se perde a mira fácil se não estiver treinado. Mas é ótimo para atirar na guerra, no exato momento em que o inimigo corre para cima de você. E se atirar, precisa abrir o voleio e emassar a pólvora com força, e isso leva tempo… Tempo suficiente para… – o general gesticulou como segurasse uma  arma e lançou um tiro invisível na minha direção. – tempo suficiente para o inimigo te pegar, Monsenhor.

Engoli em seco, era um parvo diante daquele homem cheio de calos de guerra, duro e impetuoso. Daí que prossegui anotando, agora com os gritos de batalha e tiros mais próximos, os outros dois ficaram imediatamente sérios, balançaram a cabeça para o Governador, depois de se entreolharem preocupados subiram o cabelo, apertaram as mãos e bateram continência, para depois desaparecer com dignidade além dos umbrais da sala de jantar. O Governador deitou sobre o encosto da cadeira dando espaço para puxar uma pistola do coldre na cintura e a colocou sobre a mesa.  

“Não era só uma coisa na escuridão, ela fedia, e dava pequenas risadelas que ecoavam na caverna, não sabia exatamente de onde vinham. O que quer que fosse era humano, não um bicho. Humanos morrem e sangram, por isso engatilhei e apertei a pólvora, cujo cheiro entranhou nas narinas. Parei onde a luz da lua era mais forte, fiquei em silêncio, concentrado na minha respiração, com o suor escorrendo debaixo do casquete. Algum morcego chilreou e bateu asas na caverna, um susto levantou minhas sobrancelhas e quase atirei.

Foi aí que comecei a escutar algo, sabe… É difícil prestar atenção se temos medo, o corpo parece que só reage, mas é preciso cautela, fica vivo quem sabe disso. Um sussurro quase cantado, ininterrupto, foi aí que identifiquei que a coisa dizia “la mort”, atrás de mim…

Girei a baionnette e sem pensar duas vezes puxei o gatilho, explodindo pólvora e chumbo e ferro quente na cara daquilo.

Matei… Um tiro a queima roupa…. Os morcegos revoaram com o estopim pareciam nuvens de uma tempestade, animais gritaram em algum lugar, talvez uma ave noturna, e a criatura…. O grunhido terrível percorreu com violência toda caverna, era semelhante a uma garganta entupida de canos, entrou nos meu ouvidos como uma faca.

Mas foi aí que meu alívio teve fim.

No primeiro silêncio, e quando me preparava para recarregar, uma mão surgiu das sombras, segurou o cano quente enquanto uma fumaça da pele queimada subia pela luz da lua, tinha um tom azulado, cheia de feridas abertas e pustulentas, pedaços de carne pendurados, com o couro formando bolsões de ar e pus aqui e ali, um dos dedos era possível ver o osso, vermes caminhando sobre aquilo… Acompanhei sem reação o braço emergir na claridade semicoberto de trapos puídos, tendões e carne em decomposição movendo-se a ponto rasgar-se a qualquer momento. Sobre a cabeça de ralos cabelos quebradiços havia uma cartola, a criatura bateu a aba e olhou nos meus olhos, com um sorriso sínico e cravejado de chumbo. O rosto emaciado, sem nariz, flácido e podre cuspia inflamações, os lábios parcialmente arrancados mostravam o exterior do maxilar e a raiz dos dentes, tudo caindo dos ossos e dos músculos, eu certamente acertei o tiro bem no rosto daquilo, mas aparentemente a coisa já estava morta… E não estava. As órbitas sem pálpebras giraram para mim, olhando para mim.. E o som… Era um sussurro, ele veio de onde quer que seja, perguntando quem eu era. ‘Gevernador Caceres’, respondi desconfiando de que pouco importava meu nome ou quem eu fosse para aquela criatura que deveria estar dentro de uma cova à sete palmos, mas estava ali sorrindo para mim agora.

“Eu sou o Barão… “, ele girou o cano da baioneta com violência para o lado e encostou a cara putrefata no meu nariz, emparelhamos nossas vistas e foi nessa hora que ele pisou no meu pé. “ você vai embora daqui, vai embora e nunca mais vai voltar, vai embora para longe…” enquanto ele falava, meus nervos do pé adormeceram sob aquela bota rasgada, foi subindo pela perna uma dor insuportável, a pele enrugou, a água escapou pelos tornozelos e minha carne foi encolhendo-se como uma tâmara seca, deformando-se e sugando a si mesma, colando os tecidos, depois os ossos, tudo, tudo virou uma coisa só, sem vida, repugnante e necrosada.”

Houve barulho lá embaixo, a porta explodiu e ouvimos sons e gritos e ordens de homens que entravam, comandando rendição. 

O Governador pegou a arma da mesa e levantou sobre a perna boa, mas antes de ir, olhou nos meus olhos sob a luz pouca e juntou as sobrancelhas com ódio, depois levantou a barra da calça mostrando a perna tão retorcida quanto um galho seco e velho, mas ao mesmo tempo doentia e necrosada. Depois deixou a barra cair e se foi para a escuridão com a pistola em punho.

Jeanine, levou o guardanapo à boca para esconder o horror estampado no seu rosto. Minhas mãos trêmulas erraram a caligrafia uma porção de vezes, coisa que percebi porque fiquei atônito olhando para o papel até sermos levados de lá.


Quis espirar a torta última vez, mas não tive coragem, espremi os olhos com nojo, larguei o pano e voltei para a cama completamente sem fome.


O Barão – Contos da Lady Axe

Texto: Jaque Machado.
Arte da Capa e Adaptação: Douglas Quadros.

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Nota do Editor:

Este conto poderia facilmente ser adaptado para uma campanha de Chamado de Cthulhu, mas se você fosse usar O Barão como uma criatura de sua mesa, qual seria?

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