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Historias Manuscritos

Icabode St. John [24]

O sol se pôs e os vampiros se encontraram no rancho ao norte de Manhattan. Havia um galpão e uma pista de pouso, e ao redor, um mar de pinheiros. O último carro a chegar era de Drake Sobogo. Ele desceu, seguido por um homem de roupa militar, pele morena e bigode frondoso. Em seu peito estava escrito “BALA DE PRATA: PEPPERS”. Ele trazia um casaco grosso sob o braço.

– Maxiocán? – Icabode perguntou, franzindo as sobrancelhas. Caveira, Lancelot e Leon se olharam, igualmente surpresos.

– Eu sou de uma linhagem de caçadores de criaturas malignas – Maxiocán disse, com Drake ao seu lado. – Quando recusei ajuda-los a matar Solomon Saks, eu tomei uma decisão incoerente. Quando a ficha caiu, peguei o primeiro avião para Nova York naquela mesma noite. Os Balas de Prata eram uma família – ele olhou para Drake. – E pelo visto eu não fui oficialmente dispensado de meus deveres, não é, capitão?

–  Quando o vi na minha porta, pensei que você fosse me matar – Drake revelou, sorrindo pela primeira vez em muito tempo.

– Matar o Capitão Sangrento? – Maxiocán se perguntou. – Seria uma boa coisa para colocar no meu currículo.

– Se vocês não querem ser recepcionados por um bom e velho sol nascente, devem partir agora – Lancelot olhou para o relógio de bolso. – A viagem para a Polônia é longa, e vocês precisam encontrar um abrigo antes do dia raiar… e antes que eu esqueça, coloquei algumas ovelhas dentro do avião para vocês se alimentarem.

Os cinco entraram no avião de sucata, com suas bolsas cheias de armas, munições e granadas, e deixaram o território americano alguns minutos depois. O voo foi turbulento do começo ao fim. Em alguns momentos o avião se mexeu tão forte que os vampiros saltaram em seus assentos. As carcaças das ovelhas deslizavam de um lado para outro, como bichos de pelúcia sem enchimento.

O trem de pouso quicou no chão congelado algumas vezes até o avião derrapar e parar num banco de neve. A rampa traseira se abriu e o grupo desceu no meio da nevasca. Maxiocán se encolheu debaixo do casaco de pele.

Mas que carajo! – gritou ele.

– A cidade está ali! – Icabode gritou, aguçando seus olhos em direção a uma redoma de luz alguns quilômetros de distância. – Gdynia é a cidade que Solomon pousou.

– Cheque a bússola! – Leon sugeriu.

Icabode a puxou de dentro da jaqueta, e Maxiocán se aproximou, estendendo a mão. O vampiro entregou o objeto de volta ao seu dono. Maxiocán a ergueu diante dos olhos e se virou.

– Ela está apontando no sentido contrário – ele gritou. – Solomon Saks não está mais na cidade. O que tem ao norte?

– Apenas neve – Caveira respondeu, gritando. – E depois, o oceano Báltico. Ele deve ter algum refúgio, e não deve ser muito longe da cidade. Criaturas como nós não podem se dar ao luxo de fazer longas viagens sob o céu aberto.

– Nós temos poucas horas até o sol nascer – Drake disse, preocupado. – E se não encontrarmos nada no caminho? Não seria melhor passarmos um dia em Gdynia?

– Eu não darei nenhum dia a mais para aquele maldito – Icabode disse, e começou a caminhar na direção apontada pela bússola.

– Eu não deveria fazer isso – Caveira disse, seguindo Icabode. – Eu sou do clã da Sabedoria. Não seria muito sábio ir nessa direção.

Leon foi atrás. Maxiocán e Drake se encararam antes de fazerem o mesmo. Os cinco marcharam pela nevasca noturna, deixando qualquer vestígio de avião ou cidade para trás. Eles estavam em uma escuridão total, em meio a neve e ventos de cem quilômetros por hora. Maxiocán ia à frente, com os olhos na bússola, mas como ele era o único mortal, seu corpo era o mais afetado pelo clima de trinta graus negativos.

Após duas horas de caminhada, Maxiocán foi o primeiro a cair. Ao leste, o horizonte começou a revelar os primeiros tons de claridade. Drake Sobogo pegou seu amigo nos braços e continuou caminhando. Icabode mantinha o ritmo, decidido.

Em sua cabeça, vinham os pensamentos de que tomara uma decisão suicida, que deveria ter ouvido a Drake e passado o dia em Gdynia. Os outros morreriam, e culpa era dele.

– Vocês também lembram de quando eram vivos, e a neve refletia a claridade, fazendo a luz solar nos acertar com mais força? – Caveira perguntou, olhando para o leste. – Acho que isso – ele apontou para a neve ao redor – seria uma espécie de “chão de lava” para nós. Engraçado, não?

Leon foi o segundo a cair. Apesar de não sentir frio, o vampiro sentia suas panturrilhas doerem. Para manter o corpo em pé, seu estoque corporal de sangue evaporava aos poucos, deixando-o fraco e faminto. Icabode seria o próximo a tombar, se não fosse sua disposição para achar o esconderijo de Solomon. Caveira se transformou em morcego e pousou sobre o corpo de Maxiocán que era carregado por Drake.

O céu nasceu, e se não fosse pelas nuvens carregadas, os vampiros já estariam mortos na neve. Drake Sobogo começou a sentir as gotas de sangue escorrerem por seus olhos. Em sua frente, ele viu uma fumaça exalar do corpo de Icabode. Sentiu pena do garoto. Ele se perguntou como seria aquilo, como era morrer queimado. Se seria rápido, ou se eles iriam agonizar até que os corpos não existissem mais.

Icabode passara o braço de Leon sobre os seus ombros e o ajudava a caminhar. Drake ficou assistindo os dois subirem o topo de um monte de neves, e os viu cair no chão. É o fim, pensou o militar. Icabode ficou de joelhos, e olhou para trás, com o rosto sujo do próprio sangue. Mas ele parecia otimista. Drake ficou surpreso, e correu para alcança-los.

– Achamos, Drake – Icabode apontou para baixo, onde havia uma pequena cabana de madeira no meio da neve.

O céu e as nuvens se abriram nesse exato momento, e a luz solar encheu o vale gélido. Drake soltou Maxiocán no chão, agarrou a Icabode e Leon pelos troncos e os jogou com força. Os dois fizeram um arco no céu e caíram no chão próximo à cabana. Em seguida, ele fechou as duas mãos ao redor do morcego e saltou vários metros de altura, caindo próximo aos outros. Os quatro vampiros entraram na cabana e fecharam as cortinas. Ali dentro, estariam completamente protegidos do sol. Alguns minutos depois, Maxiocán entrou, cambaleando.

A cabana só tinha um cômodo, e nenhum móvel. Havia duas portas, a que eles atravessaram, e uma do outro lado. Todos ficaram frustrados, pois obviamente aquilo era apenas uma cabana abandonada, e não o esconderijo de Solomon.

Não demorou muito, e os vampiros morreram. Eles passariam o dia inteiro deitados na mesma posição, como se nunca mais fossem se levantar. Maxiocán também se entregou ao chão, e dormiu.

Assim que o sol se pôs e a ventania voltou a sacolejar a cabana, o grupo acordou. Maxiocán já estava de pé, obviamente, olhando para a bússola.

– Tem algo errado – ele disse. O ponteiro rodopiava sem parar. – É como se tivéssemos chegado no local.

– Espero que não – Leon disse, fraco. – Eu não conseguiria enfrentar Solomon sem me alimentar primeiro. Preciso de sangue.

– Todos precisamos – Caveira disse, com os braços apoiados nos joelhos. Ele passou a mão por baixo da máscara de caveira e secou o sangue do próprio rosto.

– Ei – Drake Sobogo disse após abrir a porta de onde vieram. – Venham – ele olhava hipnotizado para fora. Havia um cervo parado no meio da neve, olhando curioso para a cabana. Ele tentou correr, mas Icabode o ergueu no ar, impedindo-o.

Os quatro vampiros se curvaram sobre o animal, sugando todo o sangue de seu corpo. E assim que voltaram para a cabana, descobriram que Maxiocán não estava lá dentro sozinho. Havia um homem alto, encapuzado, levitando. Seu rosto estava escondido na escuridão do capuz, e seus dedos eram ossos, sem carne alguma. Ele estava parado diante da porta do lado oposto.

– Quem ousa abrir o portal da Umbra? – a voz era duplicada e fria.

– Sou Maxiocán Allende, e procuro por Solomon Saks.

– O portal sempre está aberto para quem está do lado de fora – o espectro disse. – Porém, para abri-lo por dentro, é preciso que haja um sacrifício pessoal.

– Não importa – Icabode deu um passo para a frente. – Nós precisamos entrar.

O espectro deslizou para o lado e estendeu a mão, e a porta se abriu, mostrando um campo de neve, igual ao que eles estavam. Os vampiros passaram pela porta, um por um. Maxiocán passou por último, e a porta se fechou em suas costas. Eles olharam para baixo e perceberam que estavam em uma montanha de cadáveres. Não se via mais a cabana, mas apenas uma porta solitária no topo do monte.

– Umbra? – Drake perguntou, confuso.

– Umbra é o limbo – Maxiocán explicou. – Estamos em outra dimensão agora. É como se fosse o nosso mundo, porém mais espectral.

– Como Solomon Saks conseguiu esconder seu coração na Umbra? – Leon perguntou, descendo as pilhas de cadáveres, junto com o grupo.

– Rabin deve ter feito isso – Caveira respondeu. Ele se virou para Maxiocán e explicou. – Solomon Saks tem um feiticeiro judeu. Nada a ver, nada a ver mesmo.

O grupo chegou à base do monte de cadáveres e seguiu por uma trilha de neve, entre uma floresta de pinheiros. A estrada repentinamente se bifurcou entre a principal e uma tangente que ia para o topo de um morro.

– A seta aponta para a estrada em frente – Maxiocán disse.

Nesse momento, um gritou cortou o céu da Umbra. Ele veio do topo do morro. Era uma voz feminina, de dor.

É Katherine! Sunday gritou na mente de Icabode. É sua tia!

– Eu preciso ir por aqui – Icabode apontou para a trilha. – Mas vocês devem ir atrás do coração.

Os outros se olharam, preocupados, mas decidiram não contraria-lo.

– Tome cuidado, Icabode – Leon apertou o ombro do amigo, e os dois se despediram.

– Pegue isso – Drake pegou uma granada de sua bolsa e a colocou na mão do garoto. – Caso você precise.

Quatro foram para um lado, e Icabode foi para o outro, subir a trilha do morro. Quando a subida se tornou árdua demais, ele decidiu usar sua telecinese para levitar até o topo. Não queria gastar muito os seus poderes, pois poderia precisar deles depois.

Você precisa salvá-la, Icabode, Sunday pediu, aflito. Katherine é o amor da minha vida, e você precisa garantir que ela fique bem… a não ser que você tenha que escolher entre matar o maldito polonês e salvá-la. Destruir aquele demônio é sua prioridade.

Não se preocupe, Sunday, Icabode disse, voando pela ventania gelada. A bússola está apontando para outra direção. Solomon não está por perto. Eu a salvarei e depois me juntarei aos outros.

Assim que surgiu no topo do morro,  ele avistou uma clareira, cercada por longas tochas. No centro, havia um trono de metal, e amarrada ao pé do trono, estava Katherine. Ela estava deitada, inconsciente, e havia sangue em sua barriga.

Icabode pousou ao seu lado, e assim que tocou em sua tia, uma voz surgiu em suas costas.

– Parece que a nossa guerra contra os vampiros foi longe demais, não foi?

Icabode se virou e viu um homem de porte altivo, com longos cabelos e barbas, brancos como a neve, esvoaçando sob o vento. Ele vestia um terno preto de três peças.

– Saks – Icabode murmurou. Ele estava sozinho com o polonês.

– Solomon Saks, o Imortal – o homem o corrigiu.

Icabode se lembrava bem de quando ele se chamou assim pela primeira vez. Os dois estavam caçando Leon, unidos em uma suposta guerra contra os vampiros. Ambos ainda eram mortais naquela época. Agora, os dois eram neófitos, mas Solomon Saks era praticamente um deus, e Icabode… bem, Icabode estava prestes a enfrentar um deus, sozinho.

 

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