Leon

Icabode St. John [25]

Maxiocán ia à frente do grupo, de olho na bússola que os conduzia pela trilha de neve entre os pinheiros. Drake Sobogo trazia a mala com as armas e granadas, mais atrás do grupo. Leon aguçara seus ouvidos, em alerta. Seria sua responsabilidade avisar aos outros caso alguém se aproximasse. Caveira segurava seus revólveres, com os canos apontados para cima.

– Esperem! – Leon disse, se virando na direção dos pinheiros. – Estou ouvindo um barulho de árvores quebrando… meu Deus, ele já chegou!

Um vulto negro surgiu da floresta e se agarrou em Drake, levando-o para o outro lado das árvores, desaparecendo completamente do grupo. O Capitão Sangrento nunca mais veria nenhuma daquelas pessoas.

– Olha, olha, o que temos aqui – uma voz surgiu da noite, quando de repente, Gólgota surgiu no meio do caminho. Ele estava invisível até o momento. – Não me diga você é Maxiocán, o lendário caçador de vampiros!

– É ele sim – Rabin confirmou, descendo do céu como se fosse um anjo caído. – E acho que ele veio atrás do coração do chefe. Será que ele é tão poderoso quanto dizem, Gólgota?

– Só há um jeito de saber – o vampiro tirou os olhos de Rabin e se virou para Maxiocán. Em seguida, esses mesmos olhos se arregalaram, e uma veia saltou de sua testa.

O corpo de Maxiocán se tensionou imediatamente, sua pele enrubesceu, os vasos sanguíneos de seus olhos estouraram, transformando as pupilas em duas bolas vermelhas. E em seguida, seu corpo caiu duro como uma estátua para trás, ainda segurando a bússola.

– É tão fácil fritar o cérebro de um humano – Gólgota disse, satisfeito. – Por que não pode ser fácil assim com vampiros?

– Quem disse que não é? – Caveira perguntou, esticando os revólveres e apertando os gatilhos freneticamente.

Gólgota deu um grito de susto e ficou invisível, mas isso não serviu de nada, pois logo em seguida seu corpo voltou a aparecer, enquanto sua cabeça era perfurada várias vezes. Os miolos pularam para fora como pipoca, e em menos de um segundo, ele estava caído sobre a neve, tornando-a vermelha ao redor da cabeça. Os olhos eram como de peixe morto, e sua alma fora enviada direto para o inferno.

Leon se jogou sobre o corpo de Maxiocán, tirou a bússola de sua mão e ficou invisível. Caveira e Rabin estavam sozinhos, um de frente para o outro. O feiticeiro de Solomon olhava para o corpo de Gólgota, incrédulo. Aquilo acontecera muito rápido. Caveira era um pistoleiro muito habilidoso. Pegadas começaram a se formar na neve, quando Leon (ainda invisível) começou a correr com a bússola na mão.

– Você não vai escapar! – Rabin ergueu os dedos para o céu, e uma bola de fogo se formou no centro de sua palma antes de arremessa-la em direção a Leon.

Caveira virou morcego e se jogou em frente ao ataque, sendo atingido em cheio. Seu corpinho flamejante caiu fundo na neve, de onde saiu uma coluna de fumaça. De repente, sua forma humanoide se estendeu no chão, metade carbonizada. Ele tirou a máscara, revelando um rosto de morcego, peludo e chamuscado.

–  Como é o gosto do fracasso? – Rabin perguntou, olhando-o com curiosidade.

– Me diga você – Caveira gaguejou, forçando um sorriso. – Já que o meu camarada invisível acabou de entrar na floresta.

Rabin olhou para trás e percebeu que as pegadas de Leon sumiram entre as árvores. Agora seria impossível encontra-lo. Ele fechou os punhos, furioso, e ateou fogo no corpo de Caveira antes de voar para dentro da floresta.

Enquanto isso, Drake Sobogo sentia seu corpo bater em cada árvore no caminho, enquanto Troche o empurrava para dentro da floresta. O Judeu de Ferro o abraçara com força, imobilizando seus braços, e ele corria rapidamente, levando Drake para uma direção misteriosa. Foi quando as árvores acabaram que Drake percebeu seu destino. Havia um penhasco logo à frente, e Troche planejava joga-lo lá de cima.

Drake dobrou o pescoço para trás e pegou impulso antes de dar uma cabeçada no nariz de Troche. Isso o fez parar. Os dois rolaram pela neve entre a floresta e o penhasco. O Judeu de Ferro se levantou, segurando o nariz moído.

A alça da mala de armas ainda estava presa no ombro de Drake, e ele rapidamente segurou os dois lados da bagagem e a rasgou ao meio, como se fosse um saco de batatas fritas. Vários fuzis, metralhadoras e granadas caíram no chão, aos seus pés. Ele pegou a Thompson com munição de disco frontal e a ergueu.

– Não acredito que você vai trazer arminhas para a nossa batalha final – Troche disse, com o sangue escorrendo de seu nariz e encharcando a barba.

Drake apenas cuspiu para o lado e segurou o gatilho. A metralhadora cuspiu todas as suas balas, acertando o corpo do Judeu de Ferro com uma sequência de choques metálicos. Quando a munição acabou, Drake a jogou no chão, ignorando o disco fumegante derreter a neve. Troche ainda estava em pé, sorrindo para ele.

– Desgraçado – Drake sussurrou, pegando um fuzil para repetir o ataque. Ele atirou várias vezes, vendo Troche se aproximar, como se nada estivesse acontecendo.

– Você não sabe quantos vampiros eu absorvi para chegar onde cheguei – Troche disse, ficando cara a cara com Drake. – Eu sou o maldito Troche, seu filho da puta.

O Judeu de Ferro enfiou as mãos na barriga de Drake e abriu os braços, dividindo o militar em dois. Drake sentiu as tripas escorrendo de sua barriga e caindo em cima dos quadris. As pernas tombaram para um lado e o tronco para o outro. Drake cuspiu sangue, incrédulo. Ele morrera muito fácil. Suas mãos tatearam as armas ao redor, na esperança de reverter aquela situação.

Troche ficou de cócoras ao seu lado, sorrindo. Drake estendeu o braço em sua direção, agonizando. Os dedos apertaram o pescoço do judeu, sem forças. O militar começou a balbuciar algo, tremendo. Troche se abaixou um pouco para ouvir suas últimas palavras. Assim que ele inclinou, os dedos de Drake milagrosamente se mostraram fortes de novo, puxando-o mais para perto.

– O quê? – o sorriso de Troche se perdeu, quando ele sentiu o abraço ao redor de seu pescoço, puxando-o até encostar seu rosto no de Drake. – Por que você não me solta e morre logo?

– Eu não vou te soltar – Drake gaguejou, erguendo o outro braço livre. Com a visão periférica, Troche percebeu que ele sacudia uma espécie de chocalho perto de seu ouvido. – Porque nós vamos para o inferno juntos.

E Drake Sobogo soltou o lacre de uma das granadas.

 

Icabode St. John virou a cabeça, surpreso. Ele via uma imensa fogueira na trilha que seus companheiros seguiam, e uma grande explosão do outro lado da floresta. Aparentemente o seu grupo não conseguira encontrar o coração do polonês.

– Você tem um espírito guerreiro – Solomon disse com as mãos nas costas. – Isso é muito valorizado na máfia.

– Foda-se a máfia – Icabode respondeu, pensando nas suas alternativas. Seus poderes eram de invisibilidade, poder da mente e sentidos aguçados. Como usar isso?

– É exatamente disso que estou falando – Solomon disse, admirado. – Mas e aí, o que pensa em fazer? Se quiser se unir a mim, será muito bem-vindo.

– Eu passo – Icabode deu de ombros. – Eu já me aliei a você uma vez e me dei mal. No meu lugar, o que você faria?

Solomon gargalhou, resignado.

– No seu lugar, eu me mataria sem pensar duas vezes  – confessou.

– É o que vou fazer – Icabode estendeu o braço e fez Solomon sair do chão. Ele ergueu o outro braço e fez quatro tochas levitarem em direção ao vampiro.

Ele manteve o inimigo flutuando sob sua telecinese, enquanto as tochas se aproximavam de seu corpo. Icabode achou que ia vencer facilmente, até que percebeu o olhar de Solomon. O homem mais velho não temia o fogo. Ele olhava com uma curiosidade divertida para as tochas. E no próximo instante, as hastes de madeira pararam de se aproximar.

– O quê? – Icabode tentou força-las em direção ao outro, mas nada acontecia. – É você que está fazendo isso?

De repente, as quatro tochas se apagaram, como se mãos invisíveis tivessem se fechado sobre elas. E Solomon Saks começou a descer, até seus pés voltarem a tocar o chão.

– Existe uma regra no mundo vampírico – Solomon Saks estava ereto, com as mãos ainda atrás das costas. – O vampiro mais forte não pode ser subjugado pelo mais fraco. Qualquer poder sobrenatural que tentar usar contra mim, fracassará.

Espantado, Icabode tentou usar novamente seu poder, mas Solomon Saks nem se moveu. Ele se virou e fez as tochas se lançarem contra o inimigo, mas o polonês fazia todas caírem no chão antes de se aproximarem.

– Já chega – Solomon disse. – Já lhe dei todas as chances que precisava. Agora irei mata-lo, garoto.

Icabode não o viu se aproximar. Primeiro sentiu o impacto do soco esmagar seus órgãos internos. O próximo golpe deslocou o maxilar. O chute fez seu joelho quebrar, e sua perna se dobrar para trás. Icabode estava no chão, completamente desmontado. Ele olhou para o trono ao lado, e viu sua tia Katherine ainda inconsciente, amarrada por uma corrente. Eu falhei com você, tia.

Ele viu a sola do sapato de Solomon Saks pisar em seu rosto. Lentamente, o pé do polonês foi se afundando, e os ossos faciais de Icabode foram cedendo. Esse era seu fim.

 

Alguns quilômetros dali, Leon corria pelas árvores, ainda invisível. Quando perdeu Rabin de vista, ele voltou ao normal. E voltou a seguir a bússola. Não muito longe de onde estava, havia uma cabana solitária no meio de uma clareira. E coincidentemente a bússola apontava para essa direção. Ele não fazia ideia que Caveira fora transformado em pó, ou que Drake explodira a si mesmo, abraçado a Troche, ou que Icabode estava sendo esmagado por Solomon. Leon até mesmo acreditava que Maxiocán podia ser salvo, que ele estava só em transe.

Mas Leon estava enganado. Maxiocán era um vegetal. Um corpo sem consciência alguma. Ele era a última pessoa incólume de seu grupo. E agora Leon entrava na cabana apontada pela bússola. O lugar estava em ruínas, e em seu interior havia apenas uma pessoa. Uma velha com um pano amarrado ao redor da cabeça, olhando para uma foto, triste. Ela ergueu os olhos para Leon e mostrou a foto para ele. A imagem era em preto e branco, e mostrava um garoto sorrindo.

– Esse é o seu filho? – Leon perguntou para a mulher. – Esse é Solomon?

Ela ignorou a pergunta, e ergueu o baú que estava no colo. Leon o recebeu e abriu a tampa. Era um coração humano, o coração de Solomon.

– Não! Não faça isso! – Rabin gritou, vindo pela trilha de neve. Ele voava rapidamente em direção à cabana, vendo através da porta, Leon tirar o coração do baú.

Leon puxara a estaca do casaco e a erguera sobre a cabeça. O feiticeiro estava prestes a invadir a cabana.

Tudo aconteceu muito rápido. Leon abaixou a estaca com toda a força de seu corpo, sentindo o sangue queimar em suas veias, bombeando o bíceps do braço direito. A estaca atravessou o coração e saiu do outro lado de sua mão. Rabin parou no meio do caminho, gritando com os olhos arregalados. Ele se virou e voou para longe, desesperado.

Leon se virou para a mãe de Solomon e percebeu que ela se encostara na parede e abaixara a cabeça. A velha estava morta.

Icabode olhava para Katherine enquanto sua cabeça estava sendo esmagada. Sunday estava em silêncio. O mundo estava em silêncio. E aquilo estava demorando demais. Solomon não terminava o serviço. Depois de alguns segundos, Icabode percebeu que o vampiro estava imóvel. Ele se arrastou e observou, surpreso, o polonês parado como uma estátua, e seu pé erguido como se fosse esmagar algo.

– Deu certo – Icabode concluiu. – Eles encontraram o coração.

Ele foi saltando sobre uma perna até a tocha mais próxima, a trouxe de volta e estendeu-a sob o pé do polonês. As chamas começaram a se espalhar pelo corpo de Solomon Saks aos poucos. Icabode ficou em sua frente, olhando-o nos olhos. Ele ficou feliz ao ver que as pupilas vermelhas de pavor.

– Você está sentindo isso, não está? – ele perguntou, satisfeito.

Solomon se tornou uma coluna de fogo, imóvel. Não demorou muito para Rabin alcançar o topo daquele monte. O feiticeiro olhou para o polonês e depois para Icabode. E seu olhar era de confusão e perda. Rabin olhou para o horizonte e fugiu, e nunca mais foi visto.

Icabode se virou para trás, e não viu mais sua tia. Apenas a mancha de sangue no chão. Ele olhou ao redor, e a encontrou, sumindo no meio da névoa. Ela andava de mãos dadas com alguém. O desconhecido vestia um longo casaco de detetive e um chapéu.

Adeus, meu amigo, Icabode pensou, vendo Sunday levar sua tia para a eternidade.

 

Após uma longa caminhada de volta, ele encontrou com Leon. Não sabiam se havia outros sobreviventes, mas isso não importava mais. Os dois apenas seguiram em silêncio pelo caminho que haviam percorrido mais cedo. Lá estava o monte de cadáveres, com a porta da umbra no seu topo.

Os dois subiram até ela, quando uma figura encapuzada apareceu.

– Vocês foram avisados! – o espectro bradou. – O portal só pode ser aberto por meio de um sacrifício pessoal.

– Não – Icabode rebateu. – Nós dois iremos atravessá-lo. Deve haver uma maneira.

– Você sabe que não há – Leon o censurou, tirando a estaca do casaco. A mesma estaca que usara no coração de Solomon. – E não tem problema. Quando você veio atrás de mim na fundição de Solomon, eu quis que você me matasse. Aquele dia eu pedi para você fazer isso.

– Se você fizer isso, vai acordar no inferno – Icabode o avisou, sentindo uma lágrima de sangue escorrer pelo rosto.

– Eu acho que de todos os vampiros – Leon começou a levitar. – Eu não fui tão ruim assim. Quem sabe exista uma salvação para a minha alma?

Icabode viu o amigo subir a uma distância incrivelmente alta. Lá em cima, Leon apunhalou o próprio coração. Icabode aguçou sua visão sobrenatural e viu o corpo cair na escuridão e acertar o chão, aos pés do monte de cadáveres. Mesmo longe, ele via nitidamente o rosto de Leon, definitivamente morto. Ainda que arrancassem a estaca de seu coração, ele nunca mais se levantaria.

A porta da umbra se abriu, e Icabode a atravessou chorando como se fosse uma criança.

 

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Publicado por

Felipe Cangussu

Felipe Cangussu é advogado, teólogo, professor, escritor e narrador de RPG há mais de uma década. Amante de todos os gêneros de literatura e filmes, gosta de rock e pagode, fala "biscoito" e "bolacha", crê no casamento de religião e ciência, gosta do calor e do frio.

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