Mestrar Dizendo Sim!

Várias pessoas me dizem que sou um bom mestre de RPG. Sem falsa modéstia, até tenho boas ideias, mas discordo em vários pontos dessa afirmação. Não sei imitar vozes legais, confundo regras com frequência e às vezes me perco nas minhas próprias anotações. Mas uma jogadora uma vez matou a charada do que faz minhas aventuras serem bacanas pros amigos que jogam comigo.

“Quando tu mestrou eu senti que consegui jogar como eu queria.”

Em grupos da nossa maravilhosa internet eu vejo vários mestres veteranos resistentes à ideia de deixar os jogadores “livres” para jogar como quiserem. “Mas e os combos?”, você pergunta. “Ah, mas eles vão matar todos os anciões assim”, outro afirma. Vos digo: não temam, mestres. Vamos embarcar nessa loucura e abraçar tudo o que a mente dos seus jogadores for capaz de criar.

Premissa – Alinhando Ideias

Se você pretende limitar o escopo da sua crônica e dos tipos de personagem disponíveis, faça isso antes dos jogadores começarem a criar os personagens. Há maneiras interessantes de fazer isso sem limitar muito a capacidade de escolha deles.

Procure escrever suas guias de forma a não direcionar o conceito dos personagens, e sim a adicionar camadas a eles. “Todos devem ser devotos de Tanit”, por exemplo, é extremamente restritivo, pois não permite que os jogadores explorem o aspecto da fé de seus personagens. Prefira algo como “Todos devem ter alguma ligação com o templo de Tanit”. Perceba como essa ligação pode ser manifestar de inúmeras maneiras diferentes, como um aliado infiltrado, um voto de devoção, a falta de fé em meio a um ambiente religioso, entre várias outras coisas.

“Minha personagem pode ser a própria deusa Tanit, então?”

Se algum jogador tiver uma ideia diferente, tente direcioná-lo a um conceito que se encaixe na campanha sem negar o essencial, aquele brilho que torna cada personagem único. O cara que estava louco para jogar com um paladino clássico pode se encontrar no arquetípico policial honesto em uma campanha moderna, por exemplo. E falando neles…

Personagens – Abraçando Ideias

Uma das principais razões para restringir escolhas dos jogadores é a possibilidade de combos e desequilíbrios. Isso é uma preocupação que joguei pela janela faz um tempo, e aconselho todos a fazerem o mesmo, e digo o porquê.

A maioria dos sistemas modernos está preparada para lidar com esse tipo de coisa. É praticamente impossível criar um combo que seja 100% eficiente em todas as situações que podem surgir durante o jogo. Se o cara construiu um personagem capaz de disparar um raio que causa 800d6 de dano na terceira rodada de combate, mérito dele. Ele provavelmente vai trucidar o vilão da campanha na terceira rodada de combate, conforme esperado. Por outro lado, isso não vai servir em nada durante a fase de investigação para descobrir quem é o verdadeiro clérigo da Traição infiltrado na corte.

Personagens que gastam seu tempo para criar um combo complexo devem ter oportunidade de realizá-lo durante o jogo. Ao mesmo tempo, é legal que o mestre crie dificuldades para isso (como eventos inesperados, um refém, uma tempestade que impede que todos os passos para o combo sejam executados, coisas assim), assim quando o personagem conseguir fazê-lo, vai ser épico e memorável.

Perceba que estou falando de sistemas mais modernos aqui. Se você é um jogador das antigas, provavelmente já é grandinho o suficiente para lidar sozinho com os Pun-puns que aparecerem na sua mesa.

“O horror! O horror!”

Outra razão para proibir ideias de jogadores é quando o sistema não prevê algo em regras. Em D&D é praticamente impossível começar com um barco ou uma torre, por exemplo, pois são impossíveis comprar com o dinheiro inicial. Nestes casos, estude maneiras de incorporar essas ideias. Meu artigo sobre Testes Diferenciados pode até dar algumas ideias em relação a isso.

Ações – Executando Ideias

“Eu ataco o ancião.”

Vou confessar aqui: minha principal inspiração para este texto foi uma série de discussões em um grupo aberto de Vampiro: A Máscara no Facebook reclamando que na 5ª edição do jogo os anciões estavam “fracos” por não existirem mais disciplinas de nível 6 ou superior, e que portanto “qualquer jogador pode matar um ancião agora”.

Patético.

Qualquer jogador sempre foi livre para tentar matar um ancião. O que o sistema tem que dar conta é a respeito das escolhas deles e suas consequências para a história. Nas minhas crônicas de Vampiro, sempre optei por utilizar anciões com um nível moderado de poder. Não é difícil para um combeiro maldito personagem voltado para combate dar cabo de um NPC com algumas noites de planejamento. Se você precisa que os anciões sejam fortes na sua crônica, coloque poderes a mais em suas fichas e pronto.

“Eu tento beijar a anciã Tremere!”
“Pera, quê?”

Se mesmo assim um jogador seu conseguir, mais uma vez, mérito dele. Pergunte-se agora para onde vai a história depois disso. O ancião tinha aliados? Tinha contatos? Qual será o objetivo deles depois disso? Vingança? Se aliar aos personagens?

Estou falando sobre Vampiro aqui, mas a mesma lógica se aplica a qualquer outro jogo. Os aventureiros resolvem trair o rei e matá-lo? Legal, vácuos de poder são um dos principais temas de Crônicas de Gelo e Fogo, então vale reler atrás de ideias para a próxima sessão, não?

Além disso, é natural que personagens que hajam assim com tudo que encontram acabem tendo problemas cedo ou tarde, pois lembre-se: ações desencadeiam…

Consequências

“Você conseguiu. O rei está caído em seus braços, olhando para você com descrença. A lâmina fria e enferrujada lhe dói não só entre as costelas, mas na própria alma. A dor de ter confiado em um amigo um dia. A rainha grita de pavor. Os guardas invadem a sala tentando saber o que aconteceu. O que você faz?”

RPG é um jogo onde você pode fazer o que quiser. RPG é, portanto, um jogo sobre consequências.

E eu não digo isso no sentido de usar as consequências apenas para “punir” o jogador por “não se comportar” perante seus tão preciosos NPCs. Digo isso no sentido de botar a história para frente. A vampira saiu atacando vítimas inocentes na rua? Isso atrai caçadores de bruxas para a cidade. Ela venceu os caçadores? Isso pode atrair a atenção de vampiros mais influentes, desgostosos com as atitudes impetuosas da neófita. Ela matou o ancião? Era tudo que aquela tribo de lobisomens precisava para conseguir invadir a cidade. Você pegou a ideia, certo?

“Estou ouvindo uivos”
“Relaxa, vai dar tudo certo.”

Então, da próxima vez que o grupo de jogadores virar sua campanha de cabeça pra baixo com ideias absurdas e ações inconsequentes, abrace! Uma dose de caos vai levar sua história para lugares que você não seria capaz de imaginar sozinhos.

E não se esqueça de ver a coluna do Edu Filhote, RPG: Por Onde Começar?

Bom jogo a todos!

Publicado por

Raul Galli

Mestre de RPG, escritor de quadrinhos e professor de roteiro no Estúdio Tanuki. Possivelmente o único profissional criativo do mundo que não gosta de café.

Sair da versão mobile