Icabode St. John [3]

Nos capítulos anteriores: Após caçar e abater o vampiro Anatole dentro do galpão da máfia polonesa, Icabode foi apresentado ao dono do local, Solomon Saks, o judeu polonês que controlava o Brooklyn. Icabode disse que Anatole matou seus pais, e Solomon lhe propôs uma aliança para iniciarem uma guerra santa contra os vampiros. Icabode apresentara o detetive ocultista Sunday, que poderia ensinar tudo o que precisavam saber acerca das criaturas. Após Solomon chamar seu capanga com dentes de metal, Troche, e mais um pequeno exército, eles foram até o esconderijo do primeiro vampiro que iriam caçar. Mas para a surpresa de Icabode e Sunday, Solomon capturou a criatura e revelou sua verdadeira intenção, que era se tornar um vampiro. 

 

O Capitão Drake Sobogo corria desesperado pelas ruas do vilarejo francês, tentando fugir dos soldados alemães. Ele olhava ao redor, sem acreditar no que acontecera. Todo o seu pelotão fora morto em poucos segundos, e o capitão fora o único sobrevivente. Seus companheiros não morreram por serem maus atiradores ou por estarem em menor número, ou por terem sido emboscados, nada disso. O grande problema foram os inimigos. Eles não eram humanos.

Sobogo parou subitamente, quando os alemães começaram a cair do céu em sua frente. Atrás, um grupo deles acabara de chegar. O americano estava cercado. As criaturas em uniformes nazistas tinham orelhas pontudas e sobrancelhas grossas e compridas.

Sobogo deu dois passos para trás e entrou em uma mansão em ruínas, prestes a desabar. Olhou ao redor e não achou nenhuma porta ou janela por onde pudesse escapar. Os elfos nazistas invadiram o imóvel, apontando suas armas para ele. Sobogo se encostou na coluna mestra da casa, cercado. O nazista de sobretudo cinza e medalhas de honra se aproximou, sorrindo.

– Pronto para morrer, amerricana? – ele perguntou com sotaque alemão, puxando o cão da sua Walther PPK. – Eu tenho que resolver isso o quanto antes, pois devo voltar à base imediatamente. Eles servirão foie gras o elfo sorriu, ansioso pelo banquete. – E também, pedirei a herr Oscar para hospedar meus elfos no castelo – ele apontou ao norte. – Estamos cansados de ficar na floresta.

Sobogo cuspiu no chão com desprezo. Os dramas pessoais daquela criatura não o interessavam. Em seguida, o americano olhou ao redor, para cada um deles. Havia cerca de doze elfos.

– Vocês não deveriam estar tão confiantes assim – garantiu. – Veja bem, eu era um boxeador nos Estados Unidos…

– Você vai dar soquinhos em todos nós até a morte? – o líder zombou, abrindo os braços.

– Não – ele admitiu. – Mas essa não é a questão. Eu quero explicar por que vocês vão perder essa – ao ver a curiosidade no olhar do elfo, Sobogo continuou. – Eu era um boxeador invicto até enfrentar meu oponente mais fraco. Ele me venceu porque o subestimei. Eu deixei seu rosto deformado no ringue, e quando fui olhar para uma câmera, para comemorar a vitória, ele me golpeou direto no maxilar. Meu cérebro apagou na hora. A partir desse dia, aprendi uma lição muito importante. Todo homem deve medir seu adversário. Vocês não fizeram isso, e por isso irão morrer.

– Sua história é chata e não me comove – o elfo disse, decepcionado. – O que te leva a pensar que não vai morrer hoje?

– Não foi o que eu disse – Sobogo respondeu, se afastando da coluna. – Eu vou morrer, mas não por suas mãos. Mas todos vocês morrerão pelas minhas – ele girou sobre o tornozelo.

Ao entender o que estava prestes a acontecer, o oficial gritou desesperado para que seus homens atirassem. Mas era tarde demais. O Capitão Sobogo deu o cruzado de direita mais forte de sua vida, quebrando a coluna mestra da ruína. O telhado veio abaixo, e em seguida, as paredes.

Dos sobreviventes, surpreendentemente, Sobogo foi o primeiro a sair dos escombros. Ele estava coberto de poeira e sangue. Um elfo se levantou só para ser alvejado pelo americano. Outro também. Por último, o oficial nazista conseguira se arrastar para fora. Sobogo colocou o pé em seu peito e mirou em sua cabeça. Antes que o elfo pudesse barganhar por sua vida, ele apertou o gatilho. Um buraco brotou acima de sua sobrancelha peluda, e um sangue grosso escorreu até uma das orelhas pontudas.

Sobogo saiu das ruínas, incrédulo. Não achava que fosse sobreviver àquilo. Aos poucos, várias pessoas surgiram de suas casas, curiosas. Ao o verem caminhando sozinho, e os elfos mortos nos escombros, eles se aproximaram. Sobogo não falava francês, mas qualquer um sabe o que merci beaucoup significa. Elas estavam agradecidas.

O soldado mancava, desnorteado. Ele não fazia ideia de onde poderia encontrar os seus aliados, ou de como fugir dali. Enquanto tentava organizar as ideias, as pessoas começaram a se alvoroçar, assustadas. Elas apontavam para o norte, e quando Sobogo se virou, viu uma coluna de poeira se erguer ao longe. Veículos saíam do castelo dos alemães. Um comboio vinha até o vilarejo.

– Mas que grande merda – Sobogo declarou, sabendo que era seu fim.

Ele podia fugir ou se esconder, mas no terceiro francês torturado, os alemães descobririam o rumo que ele teria tomado. Não importava o quão agradecido aquelas pessoas estavam, ninguém gostava de ser torturado. Sobogo suspirou, olhando ao redor. Ele viu o medo no rosto daquelas mulheres e crianças. Se perguntou onde estariam os homens do vilarejo. Muitas daquelas pessoas tinham as bochechas molhadas de lágrimas, e Drake Sobogo percebeu que precisava delas, assim como elas precisavam dele.

Alguns jipes chegaram no vilarejo. O oficial responsável era um homem de olhos com cores diferentes e uma cicatriz que rodeava todo o pescoço. Ele fora avisado sobre um tiroteio que acontecera ali, e decidiu levar a maioria de seus homens até o local. Provavelmente a situação havia sido controlada, já que a guarnição do vilarejo era feita de elfos, e essas criaturas eram duras na queda.

– A cidade está vazia, senhor – um soldado declarou o óbvio.

O alemão mandou que continuassem, intrigado. Se perguntou se os franceses haviam se revoltado e atacado os elfos, e depois fugido. Mas algo ainda mais estranho aconteceu. Do outro lado da cidade, diante de uma fundição velha, cheia de janelas, havia um homem que o oficial odiava por dois motivos, porque ele era americano, e porque era negro. Sobogo caminhava cambaleando, obviamente ferido. Ele segurava um fuzil, não muito ameaçador.

– Onde estão os elfos? – o oficial se perguntou, preocupado. – Onde está o pelotão desse negro? Pra onde foram os franceses?

Os outros soldados gritavam para o americano abaixar a arma, mas Sobogo apenas se recostava no muro baixo da fundição. Ficar em pé doía. Os alemães desceram dos carros e se aproximaram do inimigo solitário. Apenas o oficial olhava ao redor, desconfiado. Seu nariz experiente sentia o cheiro de emboscada.

– Vamos sair logo daqui – ele disse, dando as costas para Sobogo. – Matem o negro e voltem para os carros, rápido!

– Ei, você poderia me fazer um favor? – Sobogo gritou para ele. – Diga a Hitler que ele será o próximo!

Quando o alemão se virou, sem entender aquelas palavras, o topo de sua cabeça se abriu, cuspindo miolos para todo lado. Várias janelas da fundição explodiram enquanto os sobreviventes do vilarejo atiravam com as armas dos elfos. Os soldados alemães começaram a atirar de volta, mas havia gente em todos os andares, e eles não sabiam exatamente em quem atirar. As refugiadas desarmadas faziam gestos com as mãos para confundi-los.

– Mandem esses chucrutes de volta para o inferno! – Sobogo saltou sobre a mureta e se escondeu no pátio da fundição. Ele ficou de cócoras e começou a atirar também.

Os alemães morreram sem conseguir matar uma pessoa sequer. Os sobreviventes do vilarejo pegaram suas armas e marcharam até o castelo ao norte, e depois, rumo a Berlim. Mais tarde, Sobogo ficara sabendo que aquelas pessoas, em sua maioria, mulheres, velhos e crianças, conseguiram chegar em Frankfurt, matando todos os alemães que ficaram em seu caminho, até que foram finalmente derrotados.

Drake Sobogo foi resgatado pelos seus compatriotas e levado até uma base próxima a Calais, onde o conduziram para um quarto secreto. Lá, seu general reunira soldados que também haviam enfrentado criaturas místicas, e criou o pelotão de missões sobrenaturais, os Balas de Prata, sob o comando do Capitão Drake Sobogo. O pelotão não durou nem um ano, e Sobogo viu todos os seus companheiros morrerem das piores formas, e pelas criaturas mais diabólicas que brotaram do meio da guerra.

Ele fora enviado de volta para casa, onde teve que ir para o boxe clandestino, já que se tornara um homem violento demais para os torneios tradicionais. Foi nesse submundo de apostas e pessoas má intencionadas que ele conheceu certo sujeito misterioso.

– Fiquei sabendo que você era o capitão dos Balas de Prata – disse o homem, surgindo de um beco escuro, entre colunas de vapor que vinham dos esgotos de Nova York.

– Isso é confidencial – Sobogo respondeu, mostrando o crucifixo com uma mão e fechando a outra. Ele ficara conhecido no submundo como Capitão Sangrento, pois seu soco era tão violento que bastava um golpe para nocautear o adversário e deixar seu rosto completamente coberto de sangue.

– Vamos trocar telefones – o homem pediu, estendendo um cartão pra ele. – Tenho certeza que poderemos ser de grande ajuda um para o outro.

Sobogo pegou o cartão e leu “Detetive Particular de Assuntos Obscuros – Sunday Crow.” Ele olhou para o detetive, surpreso, e guardou o cartão.

Os dois mantiveram contato pelos próximos dias, até que o detetive lhe chamou para o primeiro trabalho. Os dois se encontraram em uma lanchonete à meia noite, e Sunday parecia bem preocupado.

– Preciso que você me ajude a esconder um informante. Os vampiros de Nova York estão atrás dele – Sunday olhou para trás, em direção a um viaduto escuro. Escondido nas sombras, havia um homem. – Antes que pergunte por que eu chamei logo você… é melhor te mostrar pessoalmente. Venha comigo.

Atravessaram o asfalto escorregadio e chegaram até o túnel onde o informante aguardava. A primeira coisa que Sobogo fez foi mostrar o crucifixo, como habitualmente fazia diante de desconhecidos. Isso raramente tinha algum efeito, mas dessa vez foi certeiro. O informante saltou três metros de altura e se prendeu nos tijolos do túnel, de cabeça pra baixo. O capitão arregalou os olhos, surpreso. O informante mostrou seus caninos vampirescos.

– Ele é um deles! – Sobogo gritou, segurando Sunday pela gola e pressionando-o contra a parede. – Você está me pedindo pra proteger um vampiro!

Ele o soltou quando faróis adentraram o túnel. O militar olhou para o vampiro no teto e decidiu agir. Quando o carro se aproximou, ele pulou em seu capô e se impulsionou em direção ao teto. O soco acertou o peito da criatura, jogando-a do outro lado. O motorista do carro acelerou, assustado com toda aquela atividade nas sombras.

– Capitão, pare com isso! – Sunday pediu. – Eu preciso dele vivo!

Sobogo o ignorou e correu em direção ao homem no chão. O vampiro saltou, rodopiando sobre a cabeça do capitão e caindo em suas costas. O boxeador girou, jogando o cotovelo para trás, mas o vampiro se inclinou, desviando do golpe. Em seguida, deu um chute que lhe acertou os dois tornozelos, e quando Drake Sobogo ficou na horizontal, em pleno ar, o vampiro acertou suas costas com uma força sobrenatural. O militar foi arremessado para fora do túnel, rolando no chão.

– Já chega – o vampiro pediu, mostrando a palma da mão. – Não quero te machucar.

Sobogo cuspiu o sangue no chão e se levantou. Fechou os punhos e voltou para o túnel, em posição de boxeador. O vampiro olhou para Sunday, angustiado.

– Eu não quero machucá-lo, detetive. É melhor você segurá-lo.

Com um passo largo, Sobogo desferiu um de seus melhores golpes. Sua mão acertou em cheio o rosto da criatura. Em seguida, o militar recuou, assombrado. O informante permanecia na mesma posição, olhando para ele com grande desconforto. Isso era diferente de dor. Seu soco não fizera nada.

– Criatura maldita – Sobogo sussurrou.

– Ele é diferente – Sunday garantiu. – Preciso que me ajude a protege-lo.

– Diferente uma ova! – Sobogo esbravejou e lhe deu as costas, sabendo que seria inútil continuar aquela briga. – Eu não farei parte disso. Quando quiser mata-lo, aí sim você me chama.

 

Alguns meses se passaram, e Sobogo estava em seu apartamento, esmurrando um saco de areia. As brigas clandestinas só aumentavam, e ele não perdia uma. E durante seu treino, o telefone de ferro tocou. Ainda encharcado de suor, ele atendeu. Era Sunday. O detetive pediu para se encontrarem novamente. Precisavam falar sobre aquele vampiro.

O boxeador foi até o apartamento do outro, e ao chegar lá, encontrou um jovem vestindo uma boina e um colete. O garoto tinha apenas dois dedos na mão direita, enfaixada.

– Capitão Drake, esse aqui é Icabode St. John, um amigo.

Drake Sobogo olhou para o garoto, e por algum motivo sentiu um arrepio. Mal ele sabia que o próprio Diabo estava ali perto, observando aquele encontro.

 

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Icabode St. John [2]

Nos capítulos anteriores: Icabode perseguia o vampiro Anatole até encontrá-lo fora da cidade. O vampiro tentou fugir voando, mas Icabode se agarrou nele, e ambos sobrevoaram Nova York em uma luta sanguinária. Eles caíram em um carro durante uma perseguição policial. Depois de o vampiro se livrar das viaturas e matar o motorista, o carro em que estavam invadiu um galpão cheio de mafiosos poloneses. No fim, Icabode paralisou Anatole com uma estaca no coração e ateou fogo em seu corpo. 

 

Apesar dos dedos decepados, cortes profundos e costela quebrada, nada incomodava tanto a Icabode quanto aquele sofá que parecia ser feito de areia movediça coberto de veludo. Do outro lado da sala, um “julaco” (nome que Icabode dera àqueles judeus poloneses), o encarava, entediado.

O médico da máfia cuidara de seus ferimentos e lhe dera uns analgésicos. Depois de uns dias de descanso nos fundos de um açougue, Icabode fora trazido para o escritório do líder dos julacos, Solomon Saks, um velho de barba e cabelos brancos.

Em sua frente havia uma mesa de sinuca com vários pacotes de heroína em cima. Icabode sabia disso porque ouviu os julacos falando sobre as drogas. Ele não queria se meter no assunto, por isso ficou em silêncio. Tudo o que queria era ouvir o que Saks tinha a dizer e ir embora.

Quando o velho chegou, ele convidou Icabode a se sentar à sua mesa. Solomon Saks tinha uma postura incrivelmente ereta, e seus passos eram firmes e rápidos. Ele não parecia ser o homem de setenta anos que sua barba divulgava. Com um sorriso educado, pediu que Icabode explicasse o que tinha acontecido e por que seus homens diziam que um vampiro tinha matado Mickey, um de seus funcionários mais leais.

Ao lado de Saks, um julaco de mais de dois metros de altura observava a conversa em silêncio. Eles o chamavam de Troche, que significa “mordeu” em polonês. Antes do final daquele diálogo, Icabode entenderia o motivo.

– Semana passada – Icabode começou a explicar -, meu pai foi visitado por um velho amigo, Sunday. Ele disse que estava nos visitando apenas para ver como iam as coisas… mas ninguém sai de Manhattan e vai para Montauk só por isso. Os dois ficaram horas no escritório do meu pai, falando em privado. Depois que Sunday foi embora, eu entrei escondido no escritório e encontrei isso em cima da mesa.

Icabode tirou a página rasgada de uma bíblia do bolso e a estendeu para Saks. O trecho marcado dizia “E qualquer homem da casa de Israel, ou dos estrangeiros que peregrinam entre eles, que se alimentar de sangue, contra aquela alma porei a minha face, e a extirparei do seu povo.” No rodapé da página tinha um nome circulado várias vezes com caneta: “Anatole”. Icabode continuou a história.

– No outro dia, eu estava chegando do mercado à noite, quando vi uma lamparina acesa no quintal de casa. Meus pais estavam pendurados de cabeça para baixo, amarrados a um carvalho velho. Seus pescoços estavam abertos, e o sangue caía direto em uma tina de vinho. O vampiro estava atrás deles, bebericando de uma caneca de madeira. Quando ele me viu, deu um sorriso e se escondeu nas sombras.

Troche abriu um sorriso, achando a história interessante. Seus dentes eram feitos de aço, pontiagudos. Aquilo era intimidador, e Icabode evitou qualquer contato visual com o julaco.

– Naquela madrugada, enterrei meus pais. Depois, eu peguei uma das cartas que eles trocaram com Sunday e encontrei seu endereço. Entrei no primeiro ônibus para Manhattan e contei o ocorrido a ele. Sunday chorou, assumindo toda a culpa daquilo. Ele explicou que certamente Anatole o seguira até Montauk em sua última visita. Disse que o vampiro era um forasteiro, e que havia lhe procurado antes, querendo saber o paradeiro do reverendo Peter St. John, meu pai, mas Sunday mentiu, alegando que não o conhecia.

– Como esse vampiro encontrou o amigo de seu pai? – Solomon Saks perguntou.

– Sunday é um detetive muito conhecido no submundo do ocultismo. Provavelmente alguém indicara seu nome a Anatole sem saber que ele e meu pai eram próximos.

– E por que seu pai deveria ser conhecido pelo submundo ocultista? – Solomon perguntou, intrigado.

– Eu também estou atrás dessa resposta – Icabode confessou, olhando para a mesa. Ele ergueu os olhos e voltou à história. – Mas quando Sunday veio nos alertar sobre Anatole em Montauk, certamente o vampiro o seguiu e descobriu nosso esconderijo… Que estranho. Eu nem sabia que estávamos nos escondendo de algo.

– E como você encontrou o vampiro?

– Sunday sabia como encontra-lo. Ele me passou o endereço e eu o alcancei ao norte, fora da cidade. O maldito viera só matar meus pais e já estava voltando para o local de onde viera. Mas eu o ajudei e o mandei direto para o inferno. Durante nossa luta, a gente acabou caindo no carro de Mickey. O resto da história os seus homens já te contaram.

– Meus homens disseram que o vampiro tinha o rosto derretido e o corpo coberto de balas, e mesmo assim ele se levantou e saiu caminhando antes de você finalmente mata-lo.

– Sim. Matar criaturas imortais não é tão fácil quanto parece.

– Mas você o fez – Solomon o lembrou. – E com nenhuma arma em mãos. Imagina com os recursos necessários, as coisas que seria capaz de fazer.

– Sim… – Icabode disse, cauteloso. – Mas eu não sou nenhum assassino. O que fiz, fiz carregado de ódio e tristeza. Algo que nunca tinha sentido antes. Meus pais sempre me ensinaram que o ódio é um pecado mortal, e pretendo nunca mais fazer algo movido por esse sentimento.

– E que tal movido por uma missão santa? Vampiros não são criaturas do mal? Não acha que nossa cidade ficaria mais protegida se acabássemos com elas? O seu pai era um reverendo. O meu era um rabino. Não acha que eles teriam orgulho de nós se fizéssemos algo a respeito? – ele ergueu a página da bíblia e leu: “contra aquela alma porei a minha face, e a extirparei do seu povo.” Isso parece algo bem bíblico pra mim.

Icabode pegou a página e voltou a ler o versículo. Aquilo lhe parecia melhor do que voltar para sua casa vazia em Montauk. Uma “missão santa”, como Saks dissera. O jovem refletiu um pouco e depois assentiu, concordando. Solomon Saks sorriu, satisfeito.

 

Sunday era um homem de cabelo grisalho, solitário e saudosista. Ele bebia um copo de uísque quando alguém bateu em sua porta. Pela janela, viu Icabode todo enfaixado e ferido. O detetive     ficou feliz ao ver que o garoto não tinha morrido. Ao seu lado havia um judeu de grande estatura. Sunday pegou uma pistola e abriu a porta, em alerta.

Em seguida, os três estavam sentados na sala de estar. Troche não disse uma palavra durante a visita. Icabode explicou a proposta de Saks, mas Sunday não se sentiu confortável com aquilo. Como policial aposentado, ele sabia quem eram aqueles poloneses, e principalmente, sabia quem era Solomon Saks.

– Eu nunca cacei um vampiro na vida – Sunday deixou claro. – Olhe para você. Essa foi sua primeira briga, e veja como ficou. Quase morreu! Se fizermos isso, quem sabe o que vai acontecer? Nós nunca conseguiremos limpar as ruas da cidade dessas criaturas. Você não faz ideia de quantas existem por aí.

– Por isso eu preciso que me diga onde estão. No outro dia,  você comentou que conhecia outros vampiros em Nova York.

– Você não vai querer mexer nesse vespeiro, garoto – Sunday o alertou. – Parabéns, conseguiu matar um deles, mas lembre-se, Anatole era forasteiro. Se você começar uma guerra com um membro da sociedade vampírica daqui, todos eles irão revidar. Acredite.

– Eu não estou sozinho – Icabode olhou de lado para Troche que observava em silêncio. – E pra falar a verdade, não me importaria em começar uma guerra santa.

– Guerra santa? – Sunday repetiu, abaixando a cabeça, decepcionado. – Você não sabe o que está dizendo.

Icabode se levantou, frustrado.

– Se você não vai nos ajudar, eu dou um jeito sozinho. Obrigado – ele se virou e começou a se afastar.

Sunday pensou em seus amigos, Peter e Sandra, e em como ele causara a morte dos dois. O órfão deles estava ali, indo para a morte certa, e tudo isso era sua culpa. Suspirando, ele colocou o copo de uísque na mesinha e disse:

– Espere. Eu sei onde UM deles está. Felizmente é um pobre coitado. Deixe os planos comigo. O papel de Saks será apenas prover as armas e os soldados, entendido?

– Oh – Troche falou pela primeira vez, mostrando os dentes de aço. – Nós entendemos perfeitamente.

Icabode e Sunday passaram o resto da tarde no escritório de Solomon Saks, discutindo sobre seu primeiro plano e explicando as fraquezas dos vampiros. A quantidade de julacos e armas que Saks iria dispor facilitariam bastante a missão. Daria até mesmo para colocá-la em prática naquela noite, e o próprio Saks fazia questão de ir junto.

– Isso é um pequeno exército – Sunday olhava para as anotações sobre a mesa.

– É uma “guerra” santa, camarada. Toda guerra precisa de exércitos – Saks declarou, orgulhoso.

Icabode sabia que o detetive não gostava nem um pouco daquela conversa. Oras, ele próprio não estava gostando daquilo, mas o garoto não conseguia discordar de Saks. Se existisse uma guerra a ser travada em nome da paz, era aquela maldita guerra que eles estavam planejando.

O escritório de Solomon Saks tinha um carpete verde, sofás de veludo, lustres de ouro e cortinas coloniais. A heroína fora substituída por armas em cima da mesa de sinuca, vários julecos adentravam a porta dupla sem parar. As luzes de um grande painel elétrico do outro lado da rua atravessava a janela com cores mistas sobre o exército de homens barbudos com chapéus negros. Havia dezenas deles. Cada um pegou uma arma que estava em cima da mesa e se preparou para a guerra santa.

Lá fora, havia um Rolls Royce Wraith 1946. Troche abrira a porta para que Solomon, Icabode e Sunday entrassem. O exército de Saks foi espalhado em vários outros carros. E a marcha das valquírias seguiu pelas ruas escuras de Green Point, Brooklyn, em direção a algum lugar em Long Island.

Troche era o motorista, e Saks ia ao seu lado. No banco traseiro, Sunday sussurrava para Icabode, tentando falar mais baixo do que o som do rádio.

– Você sabe que fizemos aliança com um dos criminosos mais poderosos de Nova York, não sabe?

– Há males que vem para o bem, Sunday – ele deu dois tapinhas na coxa do policial.

– Isso é um pacto com o diabo, isso sim – Sunday sussurrou para si.

 

O quarteto ficou em silêncio o percurso inteiro. Eles saíram da cidade e continuaram em uma estrada de terra por um bom tempo, ladeados por densos matagais. Depois de vários quilômetros sem ver construção alguma, os carros pararam diante um cercado. No centro do terreno havia uma mansão velha e caindo aos pedaços. As janelas foram fechadas com tábuas, e o jardim, tomado por ervas daninhas e joio.

– Diga para todos os carros virarem os faróis para a casa – Solomon Saks disse, saindo do Wraith 46. – Vamos capturar esse filho da mãe.

– Capturar? – Icabode franziu a testa, surpreso.

Os carros ainda estavam manobrando quando Icabode se pôs diante de Solomon. O velho de postura invejável e peito estufado, encarava o garoto, sério. Sua barba e cabelo esvoaçavam com o vento frio que se adensava ao seu redor. Sunday se colocou ao lado do jovem, desafiador.

Todas as luzes estavam apontando para a mansão, e o exército se reuniu diante do portão. Todos de preto, todos com armas, todos com uma missão diferente do que Icabode esperava.

– Obrigado pela ajuda, garoto. Todas as informações que vocês nos passaram sobre os vampiros foram bem úteis – Solomon disse, colocando a mão no ombro de Icabode. – Mas você está dispensado. Eu assumo daqui pra frente.

Quando Sunday fez menção de avançar, Troche lhe mostrou a arma, fazendo os dois saíram de frente. Saks e seu capanga os deixaram sozinhos. Icabode olhou para o detetive, envergonhado por ter causado aquela situação. Os dois não fizeram nada além de assistir a operação de Saks.

O exército adentrou a mansão, arrebentando as portas da frente e das laterais com chutes e tiros. Lá dentro, mais explosões e clarões dos disparos. Balas costuravam as paredes, e um soldado fora arremessado pela janela. Em seguida, veio o silêncio. Um grupo de julacos saiu pela porta da frente, arrastando um corpo. O vampiro tinha uma estaca no coração, mas aparentemente ainda estava vivo. Eles o jogaram em um dos carros, e o comboio foi embora dali. O Rolls Royce se aproximou dos dois observadores quando Saks colocou a cabeça pra fora.

– Vocês fizeram parte do que está por vir – disse ele, satisfeito. – Depois desta noite, nenhuma outra família será tão grande quanto a nossa. Todos ouvirão falar de Solomon Saks, o Imortal!

O carro se afastou, deixando os dois para trás, sozinhos no meio do nada. Icabode e Sunday se entreolharam.

– “O Imortal”? – Icabode perguntou, confuso.

– Ele pretende se tornar um vampiro – Sunday explicou. – Garoto, essa guerra não será tão santa assim.

 

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Icabode St. John [1]

Anatole estava no bar, pensando em sua próxima refeição quando viu um jovem entrar. Ele sabia que o nome do garoto era Icabode St. John, filho do reverendo Peter e da costureira Sandra. Seus olhares se cruzaram, mas Icabode passou reto, rumo ao balcão. Anatole sabia que ele estava ali por sua causa. E era questão de tempo até eles estarem sentados juntos.

Icabode pediu um copo de água para o balconista e foi até a Jukebox, colocar I’ll Never Smile Again. E então o melodramático Frank Sinatra substituiu as baladinhas que os bêbados estavam ouvindo até então. Era década de quarenta, e aquele jovem Sinatra prometia.

Ele se virou e caminhou a passos lentos, balbuciando algo e segurando o copo de água. A luz roxa de um neon iluminou seu rosto, e Anatole pôde ver com mais clareza a face do miserável. Icabode puxou uma cadeira e sentou em frente ao africano. Antes que trocassem qualquer palavra, um garçom suado e com cheiro de peixe velho, perguntou o que iam pedir.

– Nada pra mim – Icabode disse. Sua boca estava torta num sorriso apodrecido.

– O mesmo que ele pediu – Anatole respondeu, sem tirar os olhos do jovem em sua frente.

– É noite de sexta – o garçom lembrou. – Daqui a pouco os marinheiros chegarão, e a maioria das mesas já estão ocupadas. Se não forem pedir nada, meu pai vai coloca-los para fora.

– Nesse caso, vou querer uma torta de nata e um café – Icabode respondeu.

– E como vai o café? Com açúcar? Preto?

– Preto como ele – Icabode olhou para o africano em sua frente -, e doce como eu – sorriso podre novamente.

O garçom se virou para Anatole e perguntou o que ele queria.

– Quero que você suma da minha frente – respondeu, girando o dedo na direção do homem.

O garçom se afastou, assustado. Icabode e Anatole voltaram a ficar sozinhos.

– Por que você pediu algo, já que não ficaremos muito tempo aqui?

– Como sabe disso?

– Você veio me matar, não foi?

– Era o que eu tinha em mente durante toda a viagem que fiz até aqui – Icabode confessou, girando o dedo no copo, cuja água não dera um gole sequer.

– Você me seguiu desde Long Island? – Anatole estava curioso.

– Manhattan. Primeiro tive que enterrar meus pais.

– Sinto muito por isso.

– Não, não sente. Você os matou – Icabode puxou um maço do bolso e acendeu um cigarro. – Por isso vim atrás de você.

– O reverendo te ensinou a ser uma pessoa santa, garoto – Anatole o lembrou, achando aquilo divertido. – Você nunca seria capaz de ferir alguém. Pelo menos trouxe alguma faca aí? Pois eu não vejo nada na sua cintura.

– É verdade, meu pai tentou me ensinar o caminho do perdão – ele deu um trago forte o suficiente para fazer as bochechas afundarem e o fogo iluminar seus olhos vermelhos. – Mas agora que ele está morto, eu nunca saberei a lição de moral que vem no final.

– Eu não estava esperando por essa, garoto, de verdade – Anatole se inclinou pra frente, fascinado com o jovem que estava prestes a mata-lo. – Você faz jus ao seu próprio nome. Você sabe o que ele significa, não sabe?

– Icabode significa… – ele parou para jogar as cinzas no cinzeiro, e fez questão de encarar o homem nos olhos – “foi-se a glória de Deus”.

O bar onde eles estavam, ficava numa estrada situada à beira do mar. Ali, o som da música competia com as gaivotas, as ondas e com o barulho que os marinheiros faziam enquanto desembarcavam.

– E como você pretende fazer isso? – Anatole perguntou se recostando na cadeira. – Eu não imaginava que você estava me seguindo. Pensei que teria uma noite tranquila… mas, bem – ele abriu os braços, resignado. – Aqui estamos. Você vai querer comer primeiro ou nós vamos lá pra fora e que vença o melhor?

– Lá pra fora? – Icabode perguntou, intrigado. – Você acha que vai sair vivo daqui?

Anatole congelou. Pela primeira vez seu sorriso foi tremido. O bar estava cheio, e a maioria daquelas pessoas portava algum tipo de arma consigo. Se Icabode fizesse algo, ele mesmo estaria morto em poucos segundos. Os olhos do africano desceram mais uma vez em direção à cintura do garoto, esperando ver algum revólver, faca ou estaca. Mas Icabode apenas fechou os dedos ao redor do copo de água que permanecia cheio.

– Depois que eu pedi esse copo – ele olhava para o objeto em suas mãos. – Eu enrolei para chegar aqui por um motivo – seus olhos subiram, e eles quase pegavam fogo. – Eu fui na jukebox, andei devagar…

– O que você fez, garoto? – os olhos de Anatole tremiam. – Deixe de suspense. Diga logo por que não bebeu essa água.

– Porque eu a trouxe pra você! – Icabode jogou no rosto do sujeito a água que benzera no caminho do balcão até ali

Anatole derrubou a cadeira para trás, aos gritos. Ele cobria o rosto com as próprias mãos enquanto uma fumaça negra subia por entre seus dedos. Todos os clientes se viraram assustados, encarando o homem que agonizava no meio do bar. O próprio Icabode ficou surpreso com o que acontecera. O que veio em seguida, foi a coisa mais assombrosa que qualquer uma daquelas pessoas iria ver em toda a sua vida.

– Jesus, Maria e José! – um velho gritou, apontando para as pernas de Anatole. O africano estava flutuando dois palmos acima do chão.

Todos se afastaram, apavorados, menos Icabode. Apesar da bruxaria, o garoto não se permitiu ser intimidado. Ficou em alerta, esperando que aquilo fosse o suficiente para acabar com seu inimigo. Infelizmente, não era. Anatole abaixou as mãos trêmulas, e revelou o rosto comido pela água benta. Agora havia uma caveira com olhos sem pálpebras encarando a Icabode.

–  O QUE VOCÊ FEZ, GAROTO?

Icabode ergueu um crucifixo, tendo medo pela primeira vez. Ele não esperava que as coisas tomassem aquele rumo. Em sua cabeça, o plano parecia ser mais fácil, mas naquela hora, não fazia ideia de como alcançar o desfecho que queria.

O vampiro girou lentamente no ar, olhando ao redor. Todas aquelas pessoas se encolhiam, apavoradas. Ele viu uma janela, lançou um último olhar a Icabode e voou em direção à saída.

– Não fuja, demônio! – Icabode gritou, subindo na cadeira e correndo sobre as mesas. – Não ouse fugir!

O garoto se lançou sobre Anatole um momento antes de os dois atravessarem a janela para fora. Os dedos de Icabode agarravam firmemente o terno surrado do demônio. As pernas abraçaram a cintura do outro. Agora eles estavam cara a cara, no meio da noite. O voo do vampiro ganhava velocidade entre as árvores, e os dois cortavam a bruma, desgovernados.

Anatole tentava mordê-lo enquanto ganhavam altitude. Mais ao sul, as luzes ofuscantes de Nova York ganhavam espaço, e o vento gelado começava a atrapalhar a respiração de Icabode. Suas mãos e músculos já doíam, e ele sentia que estava prestes a ceder. Eles voavam muito rápido, e estavam a centenas de metros acima do chão.

Icabode estava ficando tonto, e nesse momento, em sua mente veio a imagem do reverendo Peter mordendo uma maçã à beira do lago. O suco da fruta escorria por seu queixo. Sua mãe afastava as folhas outonais para colocar a manta do piquenique. O sol era colorido e os perfumes das flores os deixavam prazenteiros. Em seguida, viu os túmulos de seus pais.

– VOCÊ… – ele disse com muito esforço. – VAI… MO-MORRER!

Soltou o terno do vampiro e ficou pendurado apenas pelas pernas. Ele pegou o crucifixo com uma mão e agarrou a nuca de Anatole com a outra. A criatura tentava mordê-lo enquanto os dois giravam no meio do negrume do céu. Icabode esperou o momento certo. Ele enfiou o crucifixo dentro da boca da criatura no momento em que a mordida se fechava.

Os dois corpos começaram a girar ininterruptamente em uma queda livre. O vampiro soltava uma coluna de fumaça de sua boca, e Icabode segurava a sua própria mão, olhando para o lugar onde estavam seus dedos.

 

Na avenida Madison, um dos chacais do mundo dos negócios deixava o restaurante de elite juntamente com os seus novos clientes. Aquele pequeno grupo tinha dinheiro suficiente para comprar um país. Eles sorriam e comemoravam a nova parceria, e também a vitória sobre a Alemanha nazista. O momento foi interrompido quando algo passou por cima de suas cabeças em alta velocidade, batendo nas bandeiras penduradas do prédio. O chacal milionário sentiu algo quente acertar sua testa e começar a escorrer pelo rosto. Enquanto seus parceiros olhavam para cima com espanto, ele tocou o líquido em sua cabeça e viu as pontas de seus dedos sujas de sangue.

 

Os dois sobrevoavam as ruas de Manhattan, prestes a baterem em algo que causaria suas mortes. Mas a queda final de Anatole os jogou no assento traseiro de um conversível em alta velocidade. Sirenes policiais os perseguiam freneticamente. O motorista do conversível olhou para trás assustado, e puxou sua pistola. Icabode usou o corpo do vampiro como um escudo no último instante, e balas rechearam seus órgãos. Gritando, Anatole se desvencilhou de Icabode e se jogou contra o pescoço do motorista, arrancando um grande pedaço de carne. Em suas costas, três viaturas policiais tentavam pará-los.

– Nós fomos parar logo no meio de uma perseguição – Icabode sussurrou, ainda deitado no banco traseiro do carro.

Anatole ficou em pé, com a caveira toda banhada de vermelho. A polícia aproveitou a exposição e começou a disparar. Icabode se encolheu mais ainda. Quando levou os primeiros tiros, o vampiro se virou para trás e encarou os policiais. Ele perdera qualquer resquício de sua civilidade. O vampiro se tornara completamente bestial. E então ele atacou.

Anatole se jogou do conversível em direção aos policiais. O motorista do meio tentou desviar do corpo que vinha em sua direção e jogou o carro para o lado, se chocando com a outra viatura. Os dois veículos rodaram na pista, para fora do jogo.

Icabode ergueu a cabeça e viu apenas um dos carros vindo em sua cola. Ele olhou para o motorista do conversível e viu que ele segurava o pescoço dilacerado, lutando para não desmaiar. O próprio Icabode sangrava bastante. Perdera três dedos da mão, mas o calor do momento não o deixava sentir dor… ainda.

Tiros o fez olhar novamente para a viatura. Anatole estava no capô do carro, pegando o motorista e o jogando pela janela. A perseguição policial acabara ali, mas isso era o de menos.

Icabode causara muita dor ao vampiro, e agora ele teria que pagar por isso. Anatole saltou da última viatura que ficara desgovernada e caiu na traseira do conversível.

– Quem são vocês? – o motorista gritou, pálido e sujo de sangue.

Icabode rolou para o chão do carro quando Anatole saltou sobre ele. Agora estava encurralado de todos os lados. As garras do vampiro cresceram, e sua caveira vermelha descia lentamente em sua direção. Os caninos vampirescos estavam imensos. Lá no céu, um bimotor arrastava uma faixa da Goodyear.

Icabode estava com a mão ferida, e não poderia se defender do ataque, mas numa última tentativa, empurrou a barriga do vampiro com os pés. As garras de Anatole passavam rente ao seu rosto, abrindo pequenas linhas de sangue em sua pele. Por alguns segundos os dois lutaram ferrenhamente no chão do carro, até que o vampiro segurou as duas mãos do jovem cansado. Ergueu a cabeça para a mordida final.

O carro atravessou um galpão subitamente. A porta caiu sobre o vampiro, e tudo ficou escuro. Os pneus passaram por cima de vários objetos, fazendo todos saltarem de seus lugares. E uma batida final fez o conversível parar. Icabode não via nada, mas sabia que tinham invadido algum lugar. Pedaços da porta de madeira caíram pra todo lado. Ele sentiu algo em sua mão esquerda. A caveira vermelha voltou, mostrando as presas novamente. Eles fizeram seu último ataque, onde um deles causaria a morte do outro.

Vozes surgiram de todos os lados, e passos apressados cercaram o carro. Apenas Anatole se levantou dali. Todos os homens recuaram com gritos de susto. O motorista estava morto sobre o volante, e um demônio da noite saía lentamente do conversível.

– O que é aquilo? – alguém perguntou.

Quando Anatole olhou para baixo, viu uma lasca de madeira se projetar de seu peito. O vampiro ficou completamente paralisado. Em seguida, Icabode se levantou, todo ferido. Ele acendeu seu cigarro e depois ateou fogo no terno do vampiro. O jovem se afastou e se encostou no conversível, enquanto Anatole se tornava uma coluna de fogo.

– O que está acontecendo, e quem matou o Mickey? – um dos homens apontou para o motorista morto.

Icabode analisou o galpão onde estava e percebeu que era algum esconderijo ilegal. Os homens ao redor vestiam roupas e chapéus pretos, barbas grandes e costeletas bizarras. Um deles carregava uma metralhadora Thompson com o disco de munição encaixado próximo ao gatilho.

– Não vê que eu acabei de matar um vampiro? – Icabode perguntou, cansado. – Foi ele quem matou seu amigo – ele apontou o dedo para os mafiosos. – Vocês são judeus?

– Judeus poloneses – um deles respondeu. – Você disse… vampiro? – ele se aproximou um pouco, e o fogo de Anatole bruxuleava em seu rosto. Ele parecia muito interessado.

 

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