O Títere - Um Conto Sobre o Tempo em UVG

O Títere – Um Conto Sobre o Tempo em UVG

À você que assiste esta cena, talvez se pergunte o porquê de tudo isso, engano seu achar que exista uma explicação aplicável, não há ordem natural das coisas. Já não lembrava mais o que era a tristeza por mais que fora a maior delas, contudo, ao se deparar com a falta do tempo e das cores, pode refletir e entender a sua maior motivação para ser quem se é. Também já não lembrava mais a sensação da morte, morrera a tanto tempo que por vezes pensou se realmente chegou a existir e nessa não vida de memórias confusas, houve o dia do confronto.

Enfim, vivi por tanto espaço saltando de corpos, trecos, objetos, coisas, cacarecos, entulhos, pessoas, que nesse movimento antinatural de tomar a força uma vida, coisas velhas se tornaram a preferência. Elas são abandonadas por seus iguais e assim, na solidão emprestada, acabava compartilhando uma vida de sossego, sem perturbações e com desaparecimentos explicáveis, afinal, na “velhitude” o natural de se ocorrer é o falecimento e essa passagem útil, permitia uma escapada suave até um próximo invólucro.

Sozinho havia tempo para a prática dos meus turpilóquios mágicos, pois é, puras obscenidades metacomplexas de pseudobiotiteretices protonecroludicas. Adorava passar o tempo assim. Um “corpitcho” idoso e um comportamento estranho casavam perfeitamente com o que eu queria até aquele momento.
Previsivelmente, quando aquele casco se aproximou da morte e comigo tendo aproveitado ao máximo o tempo desta fase, decidi encostar em uma boa arvore próxima ao refugio da carne que habitei. Não era uma arvore frutífera, então crianças chatas não surgiriam, a copa rala também não atrairia viajantes suados em busca de sombra, minha companhia durante o descanso seria uma família de esquilontras e suas bagas, ok para mim.

Como um saco de ar a murchar, o velho se vai. Salto para a árvore e lá fico.

Chuva, sol, dia, noite, chuva, cresce, noite, dia, sol, tempo, tempo, cresce, tempo, mais crescer, mais tempo, mais chuva e mais sol interrompidos pela lâmina do machado. Desperto de um não fazer nada para agora ouvir o cheiro do sangue no ar. Por mais estático que estivesse, reconhecer o clima de tensão vindo de longe e soprado pelos povos civilizados foi natural.

“GUERRA A VISTA!” Diria o navegante.

Pobres esquilontras, enquanto sou empilhado em uma carroça rangendo num som agudo. Os barrigudinhos vão ficando sem lar. Os coitados que me derrubaram estavam felizes, minha madeira era excelente para o que necessitavam, me estapeavam como uma semifeirante avaliando uma megalancia madura, segundo eles, com a densidade e flexibilidade ali presentes, eu daria as melhores flechas e sim, fora o elogio mais estranho que já recebi. No caminho, nem curto e muito menos longo, consegui captar as motivações da guerra e como qualquer outra, não fez o menor sentido. Como não podia falar me ative a simplesmente estar, questionando se talvez meus companheiros troncos não estivessem passando pela mesma curiosidade.

Chegando a um esquisito galpão iluminado, o som das serras e o cheiro de serragem fresca decretaram meu destino. Partido serei! E foi muito intrigante imaginar até quando minha alma resistiria sendo madeira, qual fração partiria em conjunto minha consciência. Ultraespantosamente a cada processo da marcenaria bélica, minh’alma se unia as lascas lixadas e polidas antes e depois dos adornos de penas e aço em ambas extremidades. Em vez de singular, tornei-me plural.

Aljavas dos mais variados materiais me abrigaram, costas e cinturas me conduziram. Fui disparado de baixo para cima, de cima para baixo, em diagonais, em linha reta, por profissionais e por mequetrefes também.

Atingi em cheio, passei perto, fui no alvo, passei longe, passei muito longe, e dia a dia, disparo a disparo, morte a morte, as batalhas seguiam à um fim obvio. Feliz da vida estava eu cravado literalmente na história e sortudo como sou, estava cravado no lado perdedor. Os guerreiros do outro lado sem força, nem número. Os guerreiros do meu lado, portando ambição não se convenceram por vencer e buscaram o tudo. Além da fronte, existiam os indefesos que precisavam ser protegidos e mesmo sem aparelho ocular, fitei os olhos da maldade. Comecei a ser disparado contra aqueles que nenhum mal fizeram.

Que angustia.

Não, isso não podia acontecer assim, a emoção de zunir por aí se transformou em medo, medo de acertar novamente, me concentrava para tentar desviar trajetórias, mas corações inocentes eram alvos grandes demais, pareciam ter imãs! Uma a uma, as aljavas se esvaziaram.

Restando apenas uma flecha-de-mim, um covarde armado invade um casebre silencioso. Passos contidos, ouvido atento e a detecção de um corpo tremulo. Como uma sombra, o guerreiro surpreende um jovem. O rapaz de vestes simples e de tons assustados carregava um filhote humano, segurava o serzinho como se quisesse sufocá-lo e na verdade apenas domava um choro, tentava.

Momento de tensão. O som fúnebre da corda do arco a estalar. A falta de som quando ambos, atirador e alvo prenderam o respirar. Implorei que aquela flecha errasse o alvo, gritei e jurei qualquer coisa e um pouco mais, eu sabia que de lá eu nada faria, porém, como um milagre diabólico, uma mulher surge ladeando o alvo. Vestida como quem tivesse acabado de parir, a genitora salta frente a mim para proteger seu bem mais precioso. O sorriso do guerreiro contrastando com os olhos vazios da fêmea, com a choradeira livre do infante e com o desespero do homem.

Ali, minha alma também chorou, chorou e escorreu por todas as flechas das quais ainda habitava. Normalmente, saltar de um invólucro à outro é um processo lento de adaptação, mas no anseio do momento, levou-se milésimos de segundos, saltando de cada flecha para cada alvo, ressurgi no auge de minha psicomotricidade. Pluralmente irado, meus turpilóquios mágicos e obscenidades metacomplexas de pseudobiotiteretices protonecroludicas, que ora foram arte, serviram à vingança.

Enquanto eu pranteava, venci e após o acesso de raiva, cessa o dom inesperado. Foi-se levando o apreço a coisas velhas. Não sendo mais madeira, agora decidi ser bebê.

No desejo que o jovem de luto cuide bem de mim, parti para tentar aprender algo novo sobre a vida.

 


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Abraço!

Publicado por

José Lima Júnior

Sou uma bagunça. Psicólogo desde 2010, RPGista desde 1996 e Nerd desde sempre, também gosto muito de música e cinema, variando entre Z-Maguinho do Piauí a Nevermore e entre Uwe Boll a Ingmar Bergman. Pai de gatos e casado com a Bia, só sei que tô aqui para seguir as ordens do professor em busca dos três pontos.

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