Muralha

REINO DOS MORTOS [6]

Eles corriam pela muralha em direção ao desconhecido que acenava de longe. Ao chegarem até a torre, o sujeito os fez passar pelo portal e descer a escadaria até o térreo, onde ficava um pequeno pátio cercado por um muro de madeira. Clay olhou para cima e viu a aberração correndo entre as ameias da muralha. Ela iria alcança-los em poucos instantes.

– Me sigam! – o estranho disse, indo em direção a um poço de pedra.

O sujeito era um anão, usando meio elmo e uma armadura enferrujada. Sua barba era da cor da ferrugem, e ela se abria como um leque sobre o peito. Ele subiu no peitoril do poço e saltou. Os aventureiros cercaram o buraco e olharam para o fundo, mas não viram nada além de escuridão.

– Podem pular – a voz veio lá de baixo. – Há feno o suficiente para aguentar a queda de um cavalo.

– E como vamos subir de volta? – Toiva perguntou, indecisa.

– Por Spólios! – a voz gritou, impaciente. – Olhem para a parede interna! As pedras formam sulcos de escalada. Eu entro e saio desse poço todos os dias!

Toiva e Clay se olharam e assentiram. Ele pulou primeiro e avisou que estava tudo bem. Kvarn estava com a perna ferida, e pulou com a ajuda dos outros.

– Eu acho que ele começou a descer as escadas – Jim alertou, olhando para a torre atrás do grupo. – Ele está vindo.

Toiva ajudou o mago e o arqueiro a pularem primeiro, e ela foi por último. Assim que se soltou do parapeito, sua visão foi tomada pela escuridão, e seus pés se enfiaram em um bolo fundo de feno. A queda não fez barulho. Mas antes que se levantasse, ele congelou, olhando para cima, onde as estrelas eram cercadas por um anel de escuridão. Dedos gigantescos surgiram do nada, se apoiando na pedra, e uma cabeça se enfiou na frente do céu. Trapos soltos esvoaçavam ao redor dos olhos que vasculhavam o interior do poço.

Toiva ficou imóvel, esperando que seu grupo tivesse notado a aberração lá em cima. A criatura era imortal e sanguinária. Se alguém fizesse um barulho sequer, seria o fim. Mas ninguém fez. O silêncio se tornara completo. Nuvens passavam acima da cabeça de trapos, no céu estrelado, e a aberração movia a cabeça lentamente, como se esperasse ouvir os batimentos cardíacos de alguém. Subitamente ela se virou e saiu. Toiva conseguiu respirar novamente.

– Venham – o anão sussurrou, e alguém pegou na mão de Toiva.

– Não vá se apaixonar – Kvarn avisou, dando duas pressionadas leves na mão da bárbara. – Eu sou um lobo solitário. Não sou do tipo que se casa.

– Claro que não – ela respondeu. – Nenhuma mulher seria tão tola para casar com você.

– Por Spólios. Silêncio – o anão os censurou, enquanto caminhavam por um túnel. Eles chegaram até uma área espaçosa, e de repente, faíscas de uma pederneira acenderam uma lâmpada. O anão surgiu no halo de luz e começou a acender as velas ao redor.

Eles estavam em uma câmara rochosa e úmida. O lugar estava cheio de entulhos, como um covil de dragão. Em pouco tempo, dezenas de velas foram acesas.

– Sejam bem vindos ao meu humilde lar – o anão disse, mostrando um sorriso sem muitos dentes. – Eu sou sor Dhazil, o Cavaleiro da Sucata.

– Eu sou Clay – o líder apertou sua mão, e apresentou os outros integrantes do grupo. – Muito obrigado por nos salvar, Dhazil.

– “Sor” Dhazil – o anão o corrigiu.

– Então o lance de “Cavaleiro da Sucata” é real? – Kvarn perguntou, sentando em uma cadeira de espaldar alto, almofada vermelha e encosto de veludo.

– Claro! – o anão apontou para a própria armadura velha. – Fui ungido por Sor Kardum de Altopico, escolhido e treinado para lutar em nome do deus Spólios!

– Spólios não é um deus – Kvarn sorriu, balançando o dedo em sua direção. – Espólios são as coisas que você pega depois de uma batalha.

– O quê? – o anão sacudiu os braços, ofendido. – Como ousa blasfemar contra o meu deus?

– Só que “Spólios” não é um deus – Kvarn deu de ombros. – Então não houve blasfêmia.

– Cale-se! Ele é um deus, sim. Meu único deus e senhor!

– Não – Kvarn olhou para as unhas da mão, distraído. – Esse nome não existe. É ridículo.

– Eu deveria ter te jogado para a aberração! – Dhazil apontou para cima. – Você deve ser punido…

– Por favor, acalmem-se – Clay ficou entre os dois. Ele se virou para Kvarn. – Por que você está fazendo isso? Nunca desonre o deus de alguém!

– Como eu vou desonrar algo que não existe… – Kvarn começou a falar, mas Toiva chutou sua perna ferida. – AH! Sua filha da…

Ela lhe lançou um olhar desafiador. Ele colocou a mão na boca e não terminou a frase. Jim deu um passo para a frente.

– Espero que Spólios perdoe nosso amigo – o arqueiro disse, colocando a mão no peito, humildemente. – Se houver algo que possa fazer para compensar, me coloco à disposição.

– Algum dia eu penso em uma compensação – Dhazil abanou para eles com descaso. – Por enquanto temos que fazer algumas buscas pela cidade. Minha despensa durará poucos dias. Precisamos de mais mantimentos.

– Na verdade, não pretendemos ficar em Negressus – Clay informou. – Se você permitir que passemos a noite aqui, amanhã cedo deixaremos a cidade.

– Deixar a cidade? – Dhazil gargalhou, segurando a própria barriga. – Deixar a cidade! Essa é boa! Vocês acham que vão conseguir fugir!

O grupo se entreolhou, e o lugar ficou mais frio e escuro repentinamente.

 

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Publicado por

Felipe Cangussu

Felipe Cangussu é advogado, teólogo, professor, escritor e narrador de RPG há mais de uma década. Amante de todos os gêneros de literatura e filmes, gosta de rock e pagode, fala "biscoito" e "bolacha", crê no casamento de religião e ciência, gosta do calor e do frio.

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