— Aqui está. — Diz a garçonete cuidadosamente, olhando-me em quanto coloca o pedido sobre a mesa. Pela primeira vez, reparo em suas feições. Ela é baixa e magra, com, no máximo, 59 ou 60 kg. É mulata. Possui olhos castanhos e cabelo cacheado. Além disso, teve ter entre 19 ou 20 anos. — Dois chopes e um Alligator Tenderloin Po-Boy.
Agradeço cordialmente, com um aceno. Quando ela, finalmente, sai, continuo:
— O Criador é uma mulher? Sério?
— Sim. É tão difícil acreditar? Veja como ela é perfeita. — Diz Mariah, sobre a garçonete. — A pele, o cabelo. O maneirismo! A forma como se porta com os clientes. Atente-se a roupa! Acredita mesmo que detalhes tão sutis, tão complexos, tão profundos, poderiam ser estruturados por outro, se não uma de nós? Não é a estética e a preocupação com ela a maior virtude feminina?
— Tá. Realmente, confesso que faz sentido. — Respondo, pegando um dos chopes e levando-o até a boca. Após um gole, continuo. — O universo, como um todo. Como Ela o concebeu?
— Não sabia que a sua espécie podia consumir tais coisas. A maldição dada por nós enfraqueceu tanto assim?
— Não é bem isso. Alguns preservam, mesmo depois do Abraço, características mortais essenciais. Muitos não são tão pálidos quanto deveriam. Outros, como eu, podem consumir alimentos e bebidas normalmente, ainda que seja preciso removê-los de nosso organismo, cedo ou tarde.
— Fascinante. Deve ser bem útil, em certas circunstâncias.
— Não faz ideia. Continuando…
— Ah, sim. Perdão. — Diz ela, pegando o outro chope e levando-o até a boca, também. — No princípio, havia duas infinidades: a infinita ausência, ou aquilo que não era Deus, e a infinita existência, aquilo que era Deus. Uma continha a outra, eternamente separadas. Porém, em um dado instante, o Criador, para iluminar a fronteira entre estas duas, criou os primeiros anjos. O propósito deles era propagar a sua vontade. Traçar o equilíbrio perfeito entre o ser e o não-ser. Consegue compreender?
— Não perfeitamente.
— Veja bem… — Diz, com um suspiro. — Deus era tudo, todas as coisas. O que não era ele, nada era. A função dos primeiros anjos, os Anjos da Aurora, era distinguir os fundamentos divinos daquilo que o Criador poderia ser e não poderia ser. A partir desta distinção, originou-se o cosmo: a forma discreta e básica que seria trabalhada, posteriormente, pelos outros de nós.
— E esse foi o primeiro dia?
Ela ri, por alguns segundos.
— Sim, basicamente. Ainda que esta distinção seja equivocada, é claro. Noções de tempo e duração, simplesmente, eram complexas naquela época. O todo era constituído por realidades variadas e inter-relacionadas, com cada qual a revelar diferentes experiências e pontos de vista. Assim, um acontecimento em uma realidade, com duração de um dia, poderia ter centenas de anos em outra. — Responde Mariah.
— Compreendo. Estes ditos Anjos da Aurora, fizeram algo mais? Os outros, que você mencionou, quem eram? Em que se diferenciavam?
— Bem, Deus, em sua sabedoria, criou Sete Casas Celestiais. Sete grupos distintos, com funções diferentes. A primeira, já mencionada, era a mais próxima dele. Nossos líderes, se quer saber, pois eram encarregados de nos comunicar as decisões e vontades do Criador. O nome é esse mesmo: Casa da Aurora. Depois deles vieram a Casa do Firmamento, a Segunda Casa. Senhores dos ventos e do movimento, eles foram incumbidos de transmitir a vida para cada criatura. Também deveriam zelar por estas, agindo como guardiões e protetores invisíveis.
— Quase como “anjos da guarda”, certo? — Indago.
— No passado, bem poderiam ser chamados assim. Muito se comentou, durante os primeiros dias, sobre as capacidades que estes anjos possuíam. Ao sentir quaisquer ameaças sob os seus protegidos, partiam imediatamente, a fim de defende-los.
Ao fim da sentença, seu telefone toca, anunciando o recebimento de uma mensagem. Não me acostumei muito com isto, mas, se bem me lembro, os mortais o chamam de WhatsApp. Mariah o olha, imediatamente, recolhendo o aparelho de uma pequenina bolsa que carrega consigo. Alguns segundos se passam, mediante a leitura da mensagem e a sua resposta, por parte dela.
Ao fim disto, enquanto guarda o celular, ela pergunta:
— Onde eu estava mesmo?
— Me explicando as Casas da Criação. Tinha acabado de revelar a função da Segunda Casa e, se não fosse o celular, certamente estaria a me explicar a função da terceira. — Respondo, com certa indelicadeza.
— Perdão por isso, gatinho. — Diz ela, com um sorriso. — Possuo certas ocupações que tomam, muito, o meu tempo. Não fique “chateadinho”, sim? — Diz, tomando, novamente, o chope. — Sobre isto… A Terceira Casa era o Fundamento. A Casa da Matéria, do Tangível. Tudo o que tocamos, hoje, é trabalho deles. A função desses artesões era a de desacelerar a energia, para que ela se tornasse matéria. Após isso, de transformá-la. De moldá-la, segundo a necessidade e o desejo de Deus.
Mariah, então, para, permanecendo pensativa por alguns novos instantes. Certamente, estava ela a relembrar desta época:
— Fiz muitos amigos entre eles, sabe? Principalmente durante o embate, após o nosso rompimento. Eram, acima de tudo, artistas. Escultores dos aspectos mais acessíveis e observáveis do mundo. Depois deles, os Fados. A Casa das Esferas. A Quarta Casa. Foram encarregados de estabelecer a trajetória dos astros e das luzes cósmicas. Estavam tão distantes da Terra quanto os membros da Primeira Casa, mas sempre a influenciavam, principalmente após a imersão dela no tempo. Como você bem sabe, esta noção está diretamente interligada ao movimento que este planeta executa, em relação aos outros corpos celestes. Isto foi ideia deles.
Esta história foi escrita por Rafael Linhares que faz parte da Guilda Aliada Recanto das Trevas. O Recanto das Trevas é o maior servidor brasileiro do Discord dedicado a Mundo das Trevas. Lá você vai encontrar todo o suporte de narradores e jogadores para que todos tenham a melhor experiência em RPG.
Lembranças da Criação #2
Autor: Rafael Linhares.
Padronização: Douglas Quadros.
Artista da Capa: Raul Galli.
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