Icabode St. John [7]

Nos capítulos anteriores: Drake Sobogo era o único sobrevivente dos três que invadiram o prédio da máfia, para matar o vampiro prisioneiro. Enquanto Drake tentava sobreviver, Troche, o judeu com dentes de ferro o perseguia. No último instante, Icabode surgiu, com olhos vermelhos e presas na boca. O vampiro cativo o transformara para que não morresse completamente. Icabode se agarrou em Drake e os dois voaram para longe do prédio, mas eles lutavam sobre as ruas do Brooklyn, pois naquele momento eram caça e caçador. Icabode estava faminto e irracional. Um vampiro misterioso surgiu do nada e capturou a ambos. Quando Icabode recuperou a consciência, se viu em um julgamento vitoriano, cercado de vampiros.

 

Não faça isso, a voz de Sunday viera em sua mente. Icabode não se lembrava de nada sobre o inferno, mas vira com os próprios olhos o detetive se jogar pela janela, rumo à morte. Como ele estava ouvindo sua voz?

Na sala, havia cerca de dez vampiros, alguns escondidos nas sombras. Mas mesmo assim, Icabode se levantara em desafio, declarando-se um caçador de vampiros. Era em horas assim que seus valores eram testados. Morrer como um herói, ou se curvar ao mal?

Ivanovitch socou a mesa, seguido por uma gargalhada. Ele era imenso, barbudo e cabeludo. Seu dedo era mais grosso que uma linguiça, e ele o apontou para Icabode.

– Esse neófito tem colhões! Ele vai morrer, eu sei, mas ganhou meu respeito!

– Não se eu matar a todos vocês primeiro – Icabode disse com pouca convicção. Não fazia ideia de como sair daquela situação.

– Matar a todos nós? – Ivanovitch cruzou os dedos das mãos diante do rosto, curioso. – E como você faria isso?

Icabode ficou em silêncio, sem saber a resposta. De repente, uma ventania fez as cortinas esvoaçarem, e Ivanovitch aparecera um palmo em sua frente.

– Você certamente nunca ouvira falar sobre Ivanovitch, a Besta do Oriente – o vampiro disse, analisando a feição de Icabode. – Se tivesse ouvido falar de mim, saberia que sou o vampiro mais forte do mundo.

– Supostamente – Fermín o corrigiu. – Você é apenas o mais forte dos vampiros conhecidos. Obviamente existem centenas de outros que o venceriam, mas não são tão exibidos.

– Que eles fiquem com o título de “vampiros desconhecidos mais fortes” – Ivanovitch respondeu, olhando sobre o ombro. – Eu me contento com o título que importa de verdade.

– Antes de me tornar essa aberração – Icabode olhou para as próprias mãos -, quando ainda era um mero mortal, eu matei um de vocês. Só não matei o segundo por misericórdia. Agora que tenho o auxílio de forças sobrenaturais, sou capaz de muito mais.

– Diga-me, você é capaz de fazer isso? – Ivanovitch bateu palmas, e um estampido ressoou pela sala, agudo, com uma lufada forte que fez Icabode cambalear. O vampiro riu. – Eu lhe derrubaria com um estalar de dedos, literalmente – ele ergueu a mão em posição de um estalo. – Dependendo da força que eu usar, posso estourar seus tímpanos – ele encostou os dedos na testa de Icabode. – E se eu fizer isso bem aqui, esmago sua cabeça só com o coice do meu polegar.

A voz da Besta do Oriente era ameaçadora, e Icabode temeu. Sabia que não tinha chance alguma contra ele. Talvez haja, pensou, lembrando-se do crucifixo em seu peito. Suas mãos puxaram a corrente e ele a ergueu. Ivanovitch baixou os olhos para o pingente. Em seguida ele o arrancou do pescoço de Icaobode e o analisou de perto. Então, o jogou boca adentro, e o mastigou lentamente.

– Como você… – Icabode gaguejou, espantado com a cena.

– Você é um de nós agora – Ivanovitch disse, cuspindo os pedaços de metal no chão. – Sinto a sua fé como um aroma distante levado pelo temporal.

– Pare de brincar com a comida, senhor Ivanovitch – disse a juíza, uma criatura de formas animalescas, pontudas e grotescas. – Vamos aos votos?

– Claro, vossa excelência – respondeu o vampiro, voltando para o seu lugar.

– Antes de votarmos – Fermín disse, erguendo um dedo. – Gostaria de voltar a uma afirmação do acusado. Você disse que o mafioso Solomon Saks mantém um vampiro preso. Por quê?

– Ele pretende criar um exército – Icabode respondeu prontamente. – Saks pretende se tornar um vampiro, assim como seus soldados, com o propósito de tomar o controle da cidade, tanto do mundo mortal quanto dos vampiros.

– Ele está mentindo – Ivanovitch disse, incerto.

– Não – pela primeira vez, a senhora de preto, de rosto coberto por um véu, falou. – Ele diz a verdade. Senhor Ritzo, Solomon Saks vive em seu distrito, correto?

– Sim – Anthony Ritzo respondeu, segurando os suspensórios. – Ele é o empresário mais rico do Brooklyn, e um dos mais poderosos de Nova York.

– Então ele tem esse poder de nos incomodar? – Fermín perguntou.

– Se todos os homens que trabalham pra ele, se tornarem cainitas, sim, com certeza – Ritzo respondeu, preocupado.

– Eu resolvo isso – Ivanovitch deu de ombros. – Temos algumas horas antes do amanhecer. Eu dou um pulinho na casa desse cara e arranco seu coração, assim – ele fez o sinal com o polegar e indicador puxando alguma coisa.

– Vossa Excelência? – Fermín olhou para a vampira no canto da sala. – Eu não tenho nenhuma objeção.

– Muito menos eu – a senhora de preto acrescentou.

– Que seja – a Juíza respondeu, olhando a Ivanovitch. – Faça isso. E leve o neófito com você. Faça-o dizer tudo que sabe, inclusive o paradeiro desse vampiro que é refém de Saks, e traga-o junto. Depois votaremos sobre o futuro dos dois.

– Entendido, chefa – Ivanovitch foi até Icabode, segurando-o pela mão e o puxando em direção à sacada.

– Nós dois não conseguiremos fazer isso sozinho! – Icabode relutou. – Eu já tentei e foi um desastre! Ele tem um exército, mais o Troche, um cara de metal…

– Você não confia em mim, confia? – Ivanovitch perguntou, e subiu no parapeito da sacada. – Senhor Ritzo, endereço?

– Brooklyn Heigths, na Furman com Old Fulton. A mansão fica à beira do rio, colada à Brooklyn Bridge.

– Do lado do carrossel?

– Do outro.

– Saquei – Ivanovitch disse antes de saltar.

Icabode foi puxado de repente, centenas de metros acima do asfalto. Os dois aterrissaram no terraço do prédio à frente. Em seguida, Ivanovitch pulou novamente, e os dois foram em direção a outro prédio mais baixo. Como se estivessem em um Grand Canyon de concreto, eles saltavam sobre os abismos colossais de Manhattan, de prédio em prédio. Icabode era levado sob a força bruta da Besta do Oriente. Isso continuou até que chegaram ao chão.

– Vou te ensinar a fazer as coisas na surdina – Na velocidade de um raio, Ivanovitch começou a correr, passando por becos e túneis, sempre por caminhos sem luz e sem testemunhas.

De repente, Icabode percebeu que eles corriam sobre o rio, debaixo de uma ponte monumental, com cabos quilométricos e arcadas gigantescas. Era a Ponte do Brooklyn.

 

Ao chegar do outro lado do rio, Ivanovitch saltou pela última vez, levando os dois a caírem em uma propriedade arborizada.

– Esse é um belo quintal – disse o vampiro olhando ao redor.

No centro, havia uma mansão, e outras casinhas menores ao redor. Poloneses armados vigiavam todos os cantos da propriedade. Ao lado, jazia um carro elegante. Icabode supôs que Solomon Saks devia estar em casa.

– Acho que estamos no lugar certo – Ivanovitch disse, começando a andar em direção à mansão.

Os primeiros seguranças os avistaram, e começaram a gritar, erguendo suas armas. Ivanovitch se colocou na frente de Icabode.

– Fique atrás de mim. Você não pode morrer ainda.

– Se faz tanta questão – Icabode respondeu, se escondendo atrás do brutamontes.

Os poloneses se aproximaram, dando ordens e mirando as armas. Ivanovitch esperou em silêncio, com os braços erguidos. Assim que eles chegaram perto o suficiente, o vampiro agiu. Rapidamente, ele correu, fazendo uma meia lua, com o braço estendido na direção dos homens. Suas garras cortavam os pescoços dos guardas enquanto ele passava em suas frentes. No fim, todos caíram, agonizando. Demorou alguns segundos antes que o último morresse de fato.

Ivanovitch tirou um lenço do bolso e limpou sua mão coberta de carne, sangue e tendões. Ele olhou para Icabode e o lembrou:

– O vampiro mais forte do mundo.

Os dois se viraram em direção à mansão, e um dos guardas que assistira a cena, se virou e trancou a porta dos fundos. Ivanovitch deu de ombros e foi em direção ao carro. Ele ergueu o veículo com uma mão e o arremessou, abrindo um buraco na parede da mansão.

– Quando Deus fecha uma porta, eu abro um buraco.

O segurança atirou, descarregando sua Thompson no corpo de Ivanovitch. O vampiro agarrou um cadáver e o arremessou, acertando o segurança em cheio. Não havia mais ninguém em seu caminho. Os dois vampiros adentraram a sala, decorada com símbolos hebraicos, móveis caros, pedaços de parede no chão e um carro de cabeça pra baixo.

Três poloneses surgiram no andar superior e começaram a atirar. Icabode se jogou atrás do sofá, mas Ivanovitch ficou parado. Em seguida, ele abriu os braços e mostrou as presas, ameaçador como se fosse o próprio diabo. Os poloneses recuaram e saíram correndo, apavorados.

Em seguida, quando o silêncio se fez completo, uma voz surgiu. Icabode a reconheceu. Era Solomon Saks. O velho de postura invejável e longas barbas e cabelos brancos surgiu no topo da escada. Ele vestia um roupão de seda, negro.

– Boa noite, senhores. Como se já não bastasse o prédio de Green Point, estou recebendo visitas em minha própria casa. A mãe de alguém esqueceu de ensinar boas maneiras.

– Solomon Saks? – Ivanovitch perguntou. Sua voz abalou as estruturas da mansão.

– O próprio – Saks começou a descer a escada, não demonstrando ter medo. – E o senhor, quem seria?

– Aquele quem vai te devorar.

– E eu – Icabode disse, saindo de trás do sofá. – Lembra de mim?

– Ora, nos encontramos de novo – Solomon olhou para Icabode com surpresa. – Parece que você aperfeiçoou suas amizades – Em seguida, ele olhou para Ivanovitch. – Depois de tudo o que você fez em minha casa, irei mata-lo lentamente. Não hesite em fazer o mesmo comigo se tiver a chance.

– Pode deixar. Gosto de saborear minha comida. Não será a primeira vez que como carne polonesa.

– Camarada russo, sua provocação é muito empobrecida. Ela não me afeta em nada – assim que chegou ao térreo, Solomon parou.

– Faça isso rápido – Icabode disse ao vampiro. – E depois precisamos resgatar o vampiro que Solomon prendeu.

– Nós temos tempo suficien… – antes que Ivanovitch terminasse a frase, Solomon abriu o roupão e sacou uma pistola.

Ivanovitch se lançou sobre ele, erguendo a arma pra cima.  Icabode ficou assistindo a cena, em silêncio. As costas de Ivanovitch cobriam tudo, e ele não sabia se Solomon já estava morto. O vampiro estava parado, e Icabode achou que ele devia estar bebendo do pescoço do polonês.

“Iriei mata-lo lentamente. Não hesite em fazer o mesmo comigo se tiver a chance”, foram as palavras de Solomon, e Ivanovitch provavelmente estava aproveitando o momento.

Icabode franziu o cenho ao ver algo se movendo no casaco do vampiro. Algo começou a se projetar em suas costas, quando de repente um objeto pontudo, banhado em sangue rasgou seu casaco. No momento seguinte, Solomon deu um passo para o lado e atirou várias vezes no jovem. Icabode caiu no chão com vários buracos no peito.

Ele tentou se levantar, mas estava muito ferido. Olhou para estaca em Ivanovitch e não acreditou.

– No momento que eu ergui a arma – Solomon disse, olhando para Ivanovitch -, eu sabia que você iria direto na minha mão. Ela foi apenas um chamariz enquanto eu sacava a estaca com a outra e te empalava. Seu amigo ali conviveu comigo

alguns dias –apontou para Icabode. – Ele deveria saber que eu sou canhoto.

Solomon apertou o bíceps de Ivanovitch, admirado.

– Nenhum músculo é tão forte quanto o cérebro – ele olhou para Icabode e sorriu, mostrando as presas vampirescas.

– Oh não, você é um… – Icabode disse, surpreso.  – Você é um vampiro!

Solomon virou a cabeça e mordeu o pescoço de Ivanovitch, e começou a beber seu sangue. Icabode começou a se arrastar, mas sentia muita dor. Nunca chegaria a tempo.

Se ele beber da alma de outro vampiro, ele absorverá seus poderes! Sunday disse em sua mente. Você precisa pará-lo.

– Eu não… eu não consigo – Icabode tombou, observando Solomon drenar todo o sangue de Ivanovitch.

Em seguida, o brutamontes caiu no chão, ressecado, como se fosse uma grande ameixa. Ao seu lado, Solomon se retorcia, e com o roupão aberto, Icabode percebeu seus músculos dilatando sob a pele. As veias do polonês se engrossaram, e ele estava se transformando em algo mais. Em seguida, o velho se recompôs. Seus olhos estavam vermelhos, as presas, para fora. Ele foi até o carro no meio da sala, colocou as duas mãos sobre o veículo e com um movimento brusco, o repartiu em dois, como se fosse feito de papel.

Parece que temos um novo vampiro mais forte do mundo, Icabode pensou, aterrorizado com a cena.

 

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Icabode St. John [1]

Anatole estava no bar, pensando em sua próxima refeição quando viu um jovem entrar. Ele sabia que o nome do garoto era Icabode St. John, filho do reverendo Peter e da costureira Sandra. Seus olhares se cruzaram, mas Icabode passou reto, rumo ao balcão. Anatole sabia que ele estava ali por sua causa. E era questão de tempo até eles estarem sentados juntos.

Icabode pediu um copo de água para o balconista e foi até a Jukebox, colocar I’ll Never Smile Again. E então o melodramático Frank Sinatra substituiu as baladinhas que os bêbados estavam ouvindo até então. Era década de quarenta, e aquele jovem Sinatra prometia.

Ele se virou e caminhou a passos lentos, balbuciando algo e segurando o copo de água. A luz roxa de um neon iluminou seu rosto, e Anatole pôde ver com mais clareza a face do miserável. Icabode puxou uma cadeira e sentou em frente ao africano. Antes que trocassem qualquer palavra, um garçom suado e com cheiro de peixe velho, perguntou o que iam pedir.

– Nada pra mim – Icabode disse. Sua boca estava torta num sorriso apodrecido.

– O mesmo que ele pediu – Anatole respondeu, sem tirar os olhos do jovem em sua frente.

– É noite de sexta – o garçom lembrou. – Daqui a pouco os marinheiros chegarão, e a maioria das mesas já estão ocupadas. Se não forem pedir nada, meu pai vai coloca-los para fora.

– Nesse caso, vou querer uma torta de nata e um café – Icabode respondeu.

– E como vai o café? Com açúcar? Preto?

– Preto como ele – Icabode olhou para o africano em sua frente -, e doce como eu – sorriso podre novamente.

O garçom se virou para Anatole e perguntou o que ele queria.

– Quero que você suma da minha frente – respondeu, girando o dedo na direção do homem.

O garçom se afastou, assustado. Icabode e Anatole voltaram a ficar sozinhos.

– Por que você pediu algo, já que não ficaremos muito tempo aqui?

– Como sabe disso?

– Você veio me matar, não foi?

– Era o que eu tinha em mente durante toda a viagem que fiz até aqui – Icabode confessou, girando o dedo no copo, cuja água não dera um gole sequer.

– Você me seguiu desde Long Island? – Anatole estava curioso.

– Manhattan. Primeiro tive que enterrar meus pais.

– Sinto muito por isso.

– Não, não sente. Você os matou – Icabode puxou um maço do bolso e acendeu um cigarro. – Por isso vim atrás de você.

– O reverendo te ensinou a ser uma pessoa santa, garoto – Anatole o lembrou, achando aquilo divertido. – Você nunca seria capaz de ferir alguém. Pelo menos trouxe alguma faca aí? Pois eu não vejo nada na sua cintura.

– É verdade, meu pai tentou me ensinar o caminho do perdão – ele deu um trago forte o suficiente para fazer as bochechas afundarem e o fogo iluminar seus olhos vermelhos. – Mas agora que ele está morto, eu nunca saberei a lição de moral que vem no final.

– Eu não estava esperando por essa, garoto, de verdade – Anatole se inclinou pra frente, fascinado com o jovem que estava prestes a mata-lo. – Você faz jus ao seu próprio nome. Você sabe o que ele significa, não sabe?

– Icabode significa… – ele parou para jogar as cinzas no cinzeiro, e fez questão de encarar o homem nos olhos – “foi-se a glória de Deus”.

O bar onde eles estavam, ficava numa estrada situada à beira do mar. Ali, o som da música competia com as gaivotas, as ondas e com o barulho que os marinheiros faziam enquanto desembarcavam.

– E como você pretende fazer isso? – Anatole perguntou se recostando na cadeira. – Eu não imaginava que você estava me seguindo. Pensei que teria uma noite tranquila… mas, bem – ele abriu os braços, resignado. – Aqui estamos. Você vai querer comer primeiro ou nós vamos lá pra fora e que vença o melhor?

– Lá pra fora? – Icabode perguntou, intrigado. – Você acha que vai sair vivo daqui?

Anatole congelou. Pela primeira vez seu sorriso foi tremido. O bar estava cheio, e a maioria daquelas pessoas portava algum tipo de arma consigo. Se Icabode fizesse algo, ele mesmo estaria morto em poucos segundos. Os olhos do africano desceram mais uma vez em direção à cintura do garoto, esperando ver algum revólver, faca ou estaca. Mas Icabode apenas fechou os dedos ao redor do copo de água que permanecia cheio.

– Depois que eu pedi esse copo – ele olhava para o objeto em suas mãos. – Eu enrolei para chegar aqui por um motivo – seus olhos subiram, e eles quase pegavam fogo. – Eu fui na jukebox, andei devagar…

– O que você fez, garoto? – os olhos de Anatole tremiam. – Deixe de suspense. Diga logo por que não bebeu essa água.

– Porque eu a trouxe pra você! – Icabode jogou no rosto do sujeito a água que benzera no caminho do balcão até ali

Anatole derrubou a cadeira para trás, aos gritos. Ele cobria o rosto com as próprias mãos enquanto uma fumaça negra subia por entre seus dedos. Todos os clientes se viraram assustados, encarando o homem que agonizava no meio do bar. O próprio Icabode ficou surpreso com o que acontecera. O que veio em seguida, foi a coisa mais assombrosa que qualquer uma daquelas pessoas iria ver em toda a sua vida.

– Jesus, Maria e José! – um velho gritou, apontando para as pernas de Anatole. O africano estava flutuando dois palmos acima do chão.

Todos se afastaram, apavorados, menos Icabode. Apesar da bruxaria, o garoto não se permitiu ser intimidado. Ficou em alerta, esperando que aquilo fosse o suficiente para acabar com seu inimigo. Infelizmente, não era. Anatole abaixou as mãos trêmulas, e revelou o rosto comido pela água benta. Agora havia uma caveira com olhos sem pálpebras encarando a Icabode.

–  O QUE VOCÊ FEZ, GAROTO?

Icabode ergueu um crucifixo, tendo medo pela primeira vez. Ele não esperava que as coisas tomassem aquele rumo. Em sua cabeça, o plano parecia ser mais fácil, mas naquela hora, não fazia ideia de como alcançar o desfecho que queria.

O vampiro girou lentamente no ar, olhando ao redor. Todas aquelas pessoas se encolhiam, apavoradas. Ele viu uma janela, lançou um último olhar a Icabode e voou em direção à saída.

– Não fuja, demônio! – Icabode gritou, subindo na cadeira e correndo sobre as mesas. – Não ouse fugir!

O garoto se lançou sobre Anatole um momento antes de os dois atravessarem a janela para fora. Os dedos de Icabode agarravam firmemente o terno surrado do demônio. As pernas abraçaram a cintura do outro. Agora eles estavam cara a cara, no meio da noite. O voo do vampiro ganhava velocidade entre as árvores, e os dois cortavam a bruma, desgovernados.

Anatole tentava mordê-lo enquanto ganhavam altitude. Mais ao sul, as luzes ofuscantes de Nova York ganhavam espaço, e o vento gelado começava a atrapalhar a respiração de Icabode. Suas mãos e músculos já doíam, e ele sentia que estava prestes a ceder. Eles voavam muito rápido, e estavam a centenas de metros acima do chão.

Icabode estava ficando tonto, e nesse momento, em sua mente veio a imagem do reverendo Peter mordendo uma maçã à beira do lago. O suco da fruta escorria por seu queixo. Sua mãe afastava as folhas outonais para colocar a manta do piquenique. O sol era colorido e os perfumes das flores os deixavam prazenteiros. Em seguida, viu os túmulos de seus pais.

– VOCÊ… – ele disse com muito esforço. – VAI… MO-MORRER!

Soltou o terno do vampiro e ficou pendurado apenas pelas pernas. Ele pegou o crucifixo com uma mão e agarrou a nuca de Anatole com a outra. A criatura tentava mordê-lo enquanto os dois giravam no meio do negrume do céu. Icabode esperou o momento certo. Ele enfiou o crucifixo dentro da boca da criatura no momento em que a mordida se fechava.

Os dois corpos começaram a girar ininterruptamente em uma queda livre. O vampiro soltava uma coluna de fumaça de sua boca, e Icabode segurava a sua própria mão, olhando para o lugar onde estavam seus dedos.

 

Na avenida Madison, um dos chacais do mundo dos negócios deixava o restaurante de elite juntamente com os seus novos clientes. Aquele pequeno grupo tinha dinheiro suficiente para comprar um país. Eles sorriam e comemoravam a nova parceria, e também a vitória sobre a Alemanha nazista. O momento foi interrompido quando algo passou por cima de suas cabeças em alta velocidade, batendo nas bandeiras penduradas do prédio. O chacal milionário sentiu algo quente acertar sua testa e começar a escorrer pelo rosto. Enquanto seus parceiros olhavam para cima com espanto, ele tocou o líquido em sua cabeça e viu as pontas de seus dedos sujas de sangue.

 

Os dois sobrevoavam as ruas de Manhattan, prestes a baterem em algo que causaria suas mortes. Mas a queda final de Anatole os jogou no assento traseiro de um conversível em alta velocidade. Sirenes policiais os perseguiam freneticamente. O motorista do conversível olhou para trás assustado, e puxou sua pistola. Icabode usou o corpo do vampiro como um escudo no último instante, e balas rechearam seus órgãos. Gritando, Anatole se desvencilhou de Icabode e se jogou contra o pescoço do motorista, arrancando um grande pedaço de carne. Em suas costas, três viaturas policiais tentavam pará-los.

– Nós fomos parar logo no meio de uma perseguição – Icabode sussurrou, ainda deitado no banco traseiro do carro.

Anatole ficou em pé, com a caveira toda banhada de vermelho. A polícia aproveitou a exposição e começou a disparar. Icabode se encolheu mais ainda. Quando levou os primeiros tiros, o vampiro se virou para trás e encarou os policiais. Ele perdera qualquer resquício de sua civilidade. O vampiro se tornara completamente bestial. E então ele atacou.

Anatole se jogou do conversível em direção aos policiais. O motorista do meio tentou desviar do corpo que vinha em sua direção e jogou o carro para o lado, se chocando com a outra viatura. Os dois veículos rodaram na pista, para fora do jogo.

Icabode ergueu a cabeça e viu apenas um dos carros vindo em sua cola. Ele olhou para o motorista do conversível e viu que ele segurava o pescoço dilacerado, lutando para não desmaiar. O próprio Icabode sangrava bastante. Perdera três dedos da mão, mas o calor do momento não o deixava sentir dor… ainda.

Tiros o fez olhar novamente para a viatura. Anatole estava no capô do carro, pegando o motorista e o jogando pela janela. A perseguição policial acabara ali, mas isso era o de menos.

Icabode causara muita dor ao vampiro, e agora ele teria que pagar por isso. Anatole saltou da última viatura que ficara desgovernada e caiu na traseira do conversível.

– Quem são vocês? – o motorista gritou, pálido e sujo de sangue.

Icabode rolou para o chão do carro quando Anatole saltou sobre ele. Agora estava encurralado de todos os lados. As garras do vampiro cresceram, e sua caveira vermelha descia lentamente em sua direção. Os caninos vampirescos estavam imensos. Lá no céu, um bimotor arrastava uma faixa da Goodyear.

Icabode estava com a mão ferida, e não poderia se defender do ataque, mas numa última tentativa, empurrou a barriga do vampiro com os pés. As garras de Anatole passavam rente ao seu rosto, abrindo pequenas linhas de sangue em sua pele. Por alguns segundos os dois lutaram ferrenhamente no chão do carro, até que o vampiro segurou as duas mãos do jovem cansado. Ergueu a cabeça para a mordida final.

O carro atravessou um galpão subitamente. A porta caiu sobre o vampiro, e tudo ficou escuro. Os pneus passaram por cima de vários objetos, fazendo todos saltarem de seus lugares. E uma batida final fez o conversível parar. Icabode não via nada, mas sabia que tinham invadido algum lugar. Pedaços da porta de madeira caíram pra todo lado. Ele sentiu algo em sua mão esquerda. A caveira vermelha voltou, mostrando as presas novamente. Eles fizeram seu último ataque, onde um deles causaria a morte do outro.

Vozes surgiram de todos os lados, e passos apressados cercaram o carro. Apenas Anatole se levantou dali. Todos os homens recuaram com gritos de susto. O motorista estava morto sobre o volante, e um demônio da noite saía lentamente do conversível.

– O que é aquilo? – alguém perguntou.

Quando Anatole olhou para baixo, viu uma lasca de madeira se projetar de seu peito. O vampiro ficou completamente paralisado. Em seguida, Icabode se levantou, todo ferido. Ele acendeu seu cigarro e depois ateou fogo no terno do vampiro. O jovem se afastou e se encostou no conversível, enquanto Anatole se tornava uma coluna de fogo.

– O que está acontecendo, e quem matou o Mickey? – um dos homens apontou para o motorista morto.

Icabode analisou o galpão onde estava e percebeu que era algum esconderijo ilegal. Os homens ao redor vestiam roupas e chapéus pretos, barbas grandes e costeletas bizarras. Um deles carregava uma metralhadora Thompson com o disco de munição encaixado próximo ao gatilho.

– Não vê que eu acabei de matar um vampiro? – Icabode perguntou, cansado. – Foi ele quem matou seu amigo – ele apontou o dedo para os mafiosos. – Vocês são judeus?

– Judeus poloneses – um deles respondeu. – Você disse… vampiro? – ele se aproximou um pouco, e o fogo de Anatole bruxuleava em seu rosto. Ele parecia muito interessado.

 

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