REINO DOS MORTOS [10]

Era de manhã, e a cidade estava vazia novamente. Nenhum zumbi ao redor. Dhazil caminhava no pátio cheio de destroços da explosão da bile de dragão. Ele carregava um barril no ombro. Kvarn estava sentado em cima de uma pedra grande, olhando para a ferida purulenta em sua perna.

– Eu faço o melhor hidromel da cidade – Dhazil colocou o barril no chão, em frente a Kvarn. – Eu pego água do rio Aluin, e o mel da colmeia que encontro na muralha. Depois é só fermentar – ele riu, batendo na tampa do barril. – Leva meio ano pra ficar bom, mas fazer o quê?.

– Você vai nos dar esse hidromel? – Kvarn perguntou, desconfiado.

– Não seja tolo – Dhazil fechou a cara. – Óbvio que não. Mas posso vendê-lo.

– Sor Dhazil? – Galdor chamou, saindo de dentro do poço. Ele trazia um pergaminho na mão. – Onde conseguiu esse grimório?

– Na catedral – o anão apontou para o centro da cidade. – Acho que os sacerdotes estavam tentando queimar objetos de magia. Eu encontrei a pilha de cinzas de uma fogueira antiga. A única coisa que consegui salvar foi isso aí. Mas nunca entendi essas runas.

– Isso é uma magia de cura – Galdor explicou, alisando a longa barba branca. – Você pode não entender nada, mas para um mago, é algo bem simples. Se importaria se…

– Claro que me importaria – Dhazil o interrompeu, marchando em sua direção e arrancando o papiro de sua mão. – Você acha que eu fico arriscando minha pele pra conseguir essas coisas importantes, simplesmente para dar aos outros?

– Eu posso pagar – Galdor puxou uma bolsinha de seu manto, mas o anão a rejeitou com a mão.

– O que você acha que vou fazer com dinheiro? Eu quero é itens, velhote!

– E o que acha disso? – Galdor puxou um cristal do manto, do tamanho de um punho. – “Criassio” – ele sussurrou, e o cristal se acendeu como uma lâmpada. Galdor o estendeu. – É só você falar essa palavra, que o cristal acende ou apaga.

Dhazil pegou o objeto, hipnotizado. Ele riu, satisfeito, e entregou o grimório para o mago.

– Isso vai ser muito bom para as minhas escavações – o anão balbuciou, guardando o cristal sob seu peitoral. Em seguida, se virou para Kvarn. – E você, como vai me pagar pelo hidromel?

Kvarn nunca conseguiu responder. O anão tombou para trás, com uma flecha afundada em seu peito. Ele caiu duro no chão, morto.

– Kvarn! – Galdor gritou, olhando em direção à rua. Duas pessoas caminhavam pela fumaça que saía das cinzas da noite anterior.

– Jim? Clay? – Kvarn ficou de pé com dificuldade, vendo seus dois companheiros surgirem no pátio. – O que estão fazendo? Por que mataram o anão?

Mas os dois não responderam. Eles olhavam diretamente para o corpo de Dhazil, com as expressões de seus rostos tão frias quanto dos zumbis. Kvarn mancou em sua direção, erguendo a mão.

– O que está acontecendo? Por que não respondem? – Jim lhe respondeu com um movimento rápido, erguendo o braço sobre o ombro e depois atirando com o arco.

A flecha acertou o joelho de Kvarn, derrubando-o no chão como uma jaca madura. Enquanto o guerreiro gritava de dor, Jim puxava a próxima flecha. Ele apontou para a cabeça de Kvarn, e soltou a corda.

O guerreiro viu a ponta metálica vir em sua direção, e soube que não conseguiria reagir a tempo. Mas algo inesperado aconteceu. Uma ventania fez a flecha rodopiar, assim como os corpos de Jim e Clay, que voaram para cima e caíram fora do pátio.

Galdor fizera o vento jogá-los longe o suficiente para ele chegar até Kvarn. O mago ficou de cócoras, arrancou a flecha da perna do guerreiro, e impôs suas mãos nas duas feridas. Uma luz brotou desse toque, e os cortes se fecharam. Kvarn mexeu as pernas, surpreso. Não havia mais dor.

– O que está acontecendo? – perguntou, ficando de pé.

– Eu não sei, mas nós não conseguiremos dialogar com eles. Vamos observar de um lugar seguro – os dois correram até o poço e se esconderam atrás das pedras.

Kvarn não sabia o que dizer. Estava completamente perdido, mas obedeceu as ordens do mago. Os dois ficaram observando quando Jim e Clay surgiram no pátio novamente.

Clay foi até o corpo do anão e arrancou algo de seu pescoço. Um colar. Ele se virou e se afastou, seguido por Jim. Assim que ganharam certa distância, Galdor e Kvarn saíram do esconderijo e foram até o cadáver.

– Eles estão sob efeito de alguma magia – Galdor explicou. – Estão cumprindo ordens de alguém.

– Essa ordem era de roubar o colar de Dhazil?

– Foi o que pareceu – Galdor respondeu, e ficou estático, olhando para o anão. – Mas que diabos…

Os dois ficaram paralisados, olhando para o corpo diante de seus pés. Dhazil não possuía mais pele, carne ou músculo. Seu rosto e braços eram caveira e ossos esbranquiçados. No lugar do nariz, duas fendas. No lugar dos lábios, dentes expostos. Era como se ele estivesse morto há muito tempo. Apenas os olhos continuavam no mesmo lugar.

– Mas que filho de uma porca sebosa! – O esqueleto gritou, sentando-se imediatamente. Sua armadura estava folgada e balançando ao redor dos ossos. Ele segurou a flecha presa no peito e a arrancou. – Quem fez isso? Onde ele está?

Kvarn tapou a boca com as mãos, segurando o grito na garganta. Ele e Galdor se olharam, esperando que um deles pudesse explicar o que estava havendo. Mas nenhum deles podia.

 

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REINO DOS MORTOS [9]

O líder e o arqueiro do grupo desceram o buraco para o subsolo. Clay havia pego uma tocha criada pela explosão da bile de dragão, e ela era a única luz que existia lá embaixo. O esgoto era um túnel circular, feito de tijolos vermelhos, cobertos por musgos e trepadeiras.

– O Rei Jules II construiu esse esgoto – Clay disse. – Não me admira Negressus ter sucumbido tão rápido à praga. Imagine a facilidade que os ratos tinham para percorrer a cidade e se esconder.

– Ouça – Jim o interrompeu, puxando uma flecha da aljava, atento ao som que vinha em sua frente. – São passos de algum ser rastejante.

– O que será? – Clay sussurrou, sem conseguir ver nada fora do halo de luz.

Jim mirou a flecha em direção à escuridão, ergueu um pouquinho o ângulo e soltou a corda. A flecha sumiu no breu, e o som de resposta foi um guincho estridente, seguido pelo fim dos passos. Os dois se aproximaram, e a luz da tocha revelou uma ratazana caída de lado, atravessada pela flecha.

– Eu não sei se fico mais surpreso com sua habilidade de mirar com o ouvido, ou com a possibilidade de encontrarmos mais dessas criaturas por aqui – Clay disse, vendo Jim resgatar sua flecha.

Os dois seguiram pela escuridão, mantendo sempre o fogo aceso, substituindo a haste sempre que encontravam pedaços de paus no caminho. Por três vezes, tentaram subir em bocas de esgoto diferentes, mas não conseguiram sair, por causa das hostes de zumbi do lado de fora. Na quarta tentativa, Clay conseguiu deixar o esgoto para verificar a localização.

– Estamos pertos – os dois saíram para um beco. Eles entraram pela janela de uma casa e subiram até a laje.

Lá de cima, podiam ver a torre onde estava Toiva.  Ela ficava a poucas quadras de distância, e era cercada por uma muralha de pedra. Milhares de zumbis vagueavam ao redor.

– Há uma espécie de jardim no interior da muralha – Jim disse. – E o portão está intacto. Talvez não haja mortos lá dentro.

– Vamos esperar amanhecer – Clay deitou na laje. – Dhazil disse que eles voltam para os esgotos durante o dia. E nós precisamos de um descanso.

– Eu irei rezar aos deuses para protegerem Toiva até lá.

Os dois dormiram, e foram acordados pelo sol da manhã. As ruas de Negressus estavam vazias, como uma cidade fantasma. Eles desceram da casa e se aproximaram da muralha. Sem aviso, os portões começaram a se abrir, e Jim sacou uma flecha.

– Isso me cheira a emboscada – Clay disse, hesitante. – Mas se dermos a volta pela muralha, não fará diferença. A pessoa que abriu o portão já sabe da nossa presença, e já tem os olhos sobre nós. Jim, fique mais atrás, e me dê cobertura.

Os dois atravessaram o portão para dentro de uma espécie de floresta negra, densa e volumosa.

– Há magia aqui – Jim observou, vendo as árvores grandes e fortes, com raízes brotando para todos os lados, cipós grossos, e todo tipo de flores. – Essas plantas não cresceram de forma natural.

Os dois atravessaram a trilha pela floresta até o portal da torre. O interior da construção fora tomado pela vegetação, com plantas, raízes, árvores e insetos voando ao redor. No piso, havia uma pintura feita nos ladrilhos, mostrando um demônio sendo perfurado por algum herói lendário.

No lado oposto do salão, havia um pedestal com uma gaiola de ferro no topo. Toiva dormia lá dentro, sentada.

– Lá está ela – Jim começou a correr, mas Clay o segurou pelo braço, censurando-o. Jim entendeu o aviso de cautela, e assentiu.

– Vocês vieram atrás da donzela – uma voz feminina e melódica ecoou pelo salão.

– Você pode até chama-la de donzela – Clay puxou as adagas das costas. – Mas ela é a pessoa mais perigosa que conheço. E sequestra-la foi um erro.

– Eu não pretendo mantê-la em minhas correntes – a interlocutora saiu de trás de uma pilastra.

Seus cabelos curtos eram feitos de folhas sobrepostas. As sobrancelhas eram minhocas peludas, que se mexiam sem sair do lugar. Os olhos eram dois insetos negros que moviam em harmonia. A boca era uma fenda no rosto cheio de penugem. Ela vestia um vestido de seda, branco, sobre a pele azulada.

– Então trate de soltá-la imediatamente – Clay gaguejou e Jim mirou uma flecha, ambos surpresos por sua aparência

– Ela nunca foi o alvo de minha Elena – disse a mulher, e um pássaro do tamanho de um cavalo saltou de uma galera, planando ao redor do salão, até pousar na gaiola de Toiva. A harpia tinha o rosto de uma mulher com nariz adunco e cabelos loiros. – Mas sim, o anão que estava com vocês. Infelizmente ele é uma criatura muito esguia, e difícil de ser capturada. Por isso, preciso que vocês façam isso por mim. Em troca, soltarei sua perigosa donzela.

– Tenho uma contraproposta – Clay fez um sinal para Jim que esticou mais ainda a corda, mirando na cabeça da mulher azul. – Solte-a agora, ou nós plantaremos uma flecha no meio da sua testa.

– Por que você não tenta fazer isso? – ela sorriu, divertida.

– Não era assim que eu pretendia resolver isso, moça – Clay apertou os lábios, desgostoso. – Mas se é isso que você quer – ele olhou para Jim, e o arqueiro soltou a corda.

A flecha atravessou o salão, mas no meio do caminho, uma raiz brotou do chão, fazendo ladrilhos voarem para os lados, e quebrou a flecha ao meio. Antes que Clay ou Jim pudessem reagir àquilo, outras raízes agarraram seus braços, pernas e pescoços, como tentáculos, deixando-os imóveis.

– Pelo visto, faremos do meu jeito – a mulher sorriu, aproximando-se deles. – Podem me chamar de Raíza, a Senhora das Raízes.

Em seguida, brotos saltaram das raízes ao redor de seus pescoços, e pequenas flores se abriram. Clay e Jim as encararam, surpresos. E então, cada flor borrifou um gás azulado nos rostos dos aventureiros, e o que aconteceu em seguida, não foi nada bom.

 

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REINO DOS MORTOS [8]

Uma criatura alada havia sequestrado Toiva e a levado até uma torre no centro de Negressus. Os aventureiros não iriam abandonar sua companheira assim. Jim e Clay estavam escondidos em um beco, cercados por centenas de zumbis, sem saber o que fazer.

– Veja – Clay apontou para um cano que saía da parede de uma construção. Depois apontou para outro na parede ao lado. E mais outro. – É por onde passavam os dejetos dos antigos moradores.

– Um rato pode passar por esses canos, mas nós nunca caberíamos.

– Eu sei, mas… – Clay apontou para baixo, onde o chão ficava curvo. – Estamos sobre uma vala inclinada. Olhe para onde ela vai – ele apontou para a rua onde os zumbis caminhavam. Seu dedo subiu e indicou uma coluna de vapor que se projetava acima das cabeças das criaturas. – Do outro lado há uma boca de esgoto.

– E os zumbis estão todos na superfície! – Jim entendeu onde ele queria chegar. – Se passarmos por esse grupo de mortos, conseguimos entrar no esgoto e seguir nossa viagem em segurança.

– Não sabemos se lá embaixo o caminho estará completamente livre – Clay o alertou. – Mas deve estar melhor do que aqui. Ainda assim, como faremos para atravessar essa multidão?

Os dois ficaram em silêncio quando um zumbi parou diante do beco, olhando para baixo. Ele se movia como um pêndulo, para frente e para trás. Seu rosto pútrido, com carne arroxeada e cheia de larvas se virou na direção do beco.

– Ele nos ouviu? – Jim perguntou, preocupado. Os dois estavam de cócoras, no meio das sombras, mas não havia nada no beco que pudesse lhes dar cobertura.

– Teremos que mata-lo silenciosamente – Clay disse, apertando o punho de sua adaga. – Eu farei isso.

Os olhos do zumbi vaguearam pela escuridão até que congelaram em cima dos aventureiros. Ele ergueu os braços e começou a morder o ar, avançando sobre eles. Clay girou a adaga entre os dedos e a enfiou no olho do morto. E nesse momento, tudo deu errado.

O zumbi começou a cair para trás, e Clay tentou puxar a faca de seu olho. Acontece que a lâmina havia fincado no crânio da criatura, e não estava tão solta quanto ele pensava. Quando a cabeça tombou, Clay sentiu o punho da arma escorregar de sua mão. Tentou segurá-la no ar, em vão. A faca quicou no chão de pedra, fazendo o metal tilintar pelo beco. Imediatamente, os zumbis mais próximos da entrada se viraram para eles… dos dois lados do beco.

– Eu matei a nós dois – Clay olhou para Jim, culpando-se. – Me perdoe, garoto.

– Nós estamos indo conhecer os nossos deuses – Jim puxou uma flecha da aljava. – Isso não pode ser tão ruim.

Clay ergueu as adagas, e Jim esticou a corda do arco, prontos para o último combate de suas vidas. Os zumbis se aproximavam, sedentos por sangue, quando uma ventania forte fez os aventureiros cobrirem os próprios olhos. Eles se viraram para trás e viram a rua vazia novamente. Galdor estava parado próximo ao beco, com os braços abertos, provocando uma lufada forte o suficiente para manter os zumbis afastados.

– O que estão esperando? – o mago gritou. – Venham logo!

Jim e Clay passaram por Galdor, voltando para o pátio de Dhazil. Ao longe, Kvarn vinha mancando, com uma tocha na mão.

– Vocês acham que ficaríamos lá em cima da muralha assistindo vocês dois morrerem? – o guerreiro perguntou. – Nós viemos correndo para assistir mais de perto.

Dhazil vinha correndo, carregando uma jarra de barro pesada.

– Saiam da frente, rápido! – ele gritou, passando pelos aventureiros, em direção à rua. – Movam, seus bufões!

Clay e Jim ficaram olhando enquanto o anão jogava a jarra no meio da rua, espatifando-a em mil pedaços. O conteúdo líquido se espalhou pelo chão, próximo das pernas de Galdor. O mago e o anão voltaram correndo para trás, e ficaram ao lado dos outros.

– O que era aquilo? – Clay perguntou, vendo os zumbis enchendo a rua novamente. Tanto os que já estavam ali, quanto os do beco que vieram do outro lado. – É alguma espécie de pez? Eles ficarão presos?

– Eles não estão ficando presos – Jim alertou, vendo os zumbis passarem sobre o líquido viscoso, vindo em suas direções.

– Oh, não – Dhazil mostrou para eles um sorriso amarelo, sem alguns dentes. Ele bateu no meio elmo enferrujado, ansioso. – Aquilo é bile de dragão.

– Abram caminho para Kvarn, o Poderoso – Kvarn disse, passando por eles e arremessando a tocha numa espiral de fumaça e fogo.

Assim que a chama atingiu o chão sob os pés dos zumbis, uma explosão derrubou todo o muro de madeira e o arco que dividia o pátio da rua. Os aventureiros foram jogados para trás, tendo seus cabelos e barbas chamuscadas. Eles rolaram no chão, esfumaçando.

De repente, foram cobertos por uma chuva de tripas e sangue. Dhazil gargalhou.

– Eu realmente não estava esperando por uma explosão desse tamanho – o anão sentou, com o rosto fumegante. – Era a minha última jarra de bile de dragão, mas valeu a pena!

– Ótimo – Galdor disse, olhando para o anão. – Temos um novo Kvarn no grupo.

– Rápido – Clay ficou de pé, meio zonzo, e apontou para Jim. – O caminho até a entrada do esgoto está livre. Precisamos ir!

– Vocês não deram nem dez passos e já foram encurralados – Dhazil protestou. – Continuar nessa missão é suicídio!

– Você entende bem de suicídio – Galdor disse com mal humor, apagando o fogo da ponta da barba.

Clay e Jim ignoraram a advertência do anão e seguiram seu caminho, rumo à boca de esgoto, e rumo ao resgate de Toiva. No dia seguinte, um deles morreria, infelizmente.

 

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REINO DOS MORTOS [4]

O grupo batizou o beco sem saída como “Baixada da Égua”, uma viela de barro cercada por muros prestes a tombar sobre eles. Se alguma horda os visse ali, eles estariam encurralados.

– Não sei se alguém reparou, mas anoiteceu – Kvarn observou.

– Acredito que todo mundo reparou nisso – Toiva rebateu, mal humorada.

– E então? – Kvarn perguntou batucando o escudo com os dedos. – Não vamos sair?

– Você ainda não entendeu nada, seu bruto? – Galdor perguntou, impaciente. – Existem zumbis corredores nesta cidade. Se sairmos, estaremos mortos!

– Então vamos ficar para sempre aqui, é isso? – Kvarn sussurrou com sua voz grave. – Pois isso não me parece uma opção muito melhor.

– Não – Clay se intrometeu. – Vamos apenas ter certeza de que o perímetro está seguro.

– E como vamos saber disso se ficarmos aqui? – Kvarn perguntou.

– Eu esperava receber algum sinal – Clay assumiu, decepcionado. – Algum barulho longe daqui, alguma pista de que eles estão longe… Mas não ouço nada. O jeito é fazermos uma varredura.

– Eu vou – Toiva se ofereceu.

– Não – Clay balançou a cabeça. – Sou o mais silencioso do grupo. Eu irei.

– E se você ficar cercado? – Jim perguntou.

– Eu afastarei os zumbis – Galdor disse, olhando para Clay.

– Obrigado – o líder assentiu para o velho, e ambos deixaram a Baixada da Égua.

– A gente espera aqui – Kvarn brincou. – A não ser que fiquemos entediados.

Clay ignorou o comentário do guerreiro, e cobriu sua cabeça com um capuz. Galdor o seguiu, erguendo as mãos para realizar sua magia, caso fosse preciso. A rua era iluminada pela luz da lua, e o silêncio era tamanho que eles podiam ouvir o som das ondas quebrando nos cais. Desceram a rua em sentido sul, cuidadosos. Chegaram até um local onde podiam ver a rua por vários quilômetros à frente, numa longa descida. Clay sorriu.

– O caminho inteiro está livre.

– Então vamos chamar os outros – Galdor sugeriu.

Eles fizeram o percurso de volta até a Baixada da Égua, quando encontraram o grupo acuado, todos com armas em mãos. Eles pareciam assombrados.

– Vocês viram? – Toiva inquiriu, olhando ao redor. – Vocês o viram?

– De quem você está falando? – Clay indagou, preocupado.

– Ele era grande – Jim disse, umedecendo os lábios secos. – Ele era… era muito grande.

– Mas de quem diabos vocês estão falando? – Galdor perguntou, impaciente.

– Depois que vocês saíram – Toiva sussurrou –, ele passou em frente ao beco. Graças aos deuses, não olhou em nossa direção. Ele caminhava como uma pessoa normal, de forma calma e coordenada. Esse monstro não era como os outros. Eu nunca vi um zumbi assim.

– Seu rosto era coberto por trapos – Jim acrescentou. – Seu martelo se arrastava pelo chão, abrindo um sulco na terra. Espinhos compridos saíam de suas costas…

– Espere – Galdor o interrompeu. – Martelo? Zumbis não usam armas. Eles são criaturas irracionais. Incapazes de manusear qualquer objeto.

– Então o que vimos não era um zumbi – Kvarn garantiu, soturno. – Precisamos dar o fora daqui.

– Temos que sair desta cidade – Jim disse, colocando a mão no ombro de Clay.

– Mas o nosso contratante… – Clay começou a responder.

– Foda-se o contratante – Kvarn o interrompeu. – Existem zumbis corredores e uma aberração nesta cidade. O contratante não falou nada disso. O nível de dificuldade da missão subiu consideravelmente.

– Não sabia que você fazia o tipo assustado – Toiva disse.

– Eu não faço o tipo filantropo – Kvarn rebateu. – Se vocês quiserem que eu continue, o meu pagamento precisa subir também.

– Eu concordo com ele – Galdor ficou ao lado de Kvarn. – Zumbis corredores e uma aberração são coisas demais para mim.

– Todos pensam assim? – Clay se virou para Toiva e Jim que concordaram com a cabeça. – Então a missão está cancelada. Vamos dar o fora de Negressus.

O grupo deixou o beco e seguiu de volta ao norte. Todos seguravam suas armas em prontidão, atentos a qualquer barulho. Não demorou para chegarem na muralha da alfândega, recheada de cadáveres pelo chão e corredores.

– Oh, me foda! – Kvarn disse assim que adentraram o pátio entre os portões.

O grupo olhou em direção à saída da cidade e se depararam com o imenso portão levadiço fechado. As válvulas e correntes para abri-lo não estavam mais ali. Foram arrancadas à força e levadas para algum lugar. Seria impossível abrir aquele portão. Clay olhou ao redor, para o muro interno da alfândega e percebeu que só havia uma passagem disponível, a que levava de volta para dentro da cidade. E sob o umbral dessa passagem, um homem gigantesco os observava.

– Emboscada! – Clay gritou.

 

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REINO DOS MORTOS [2]

O grupo seguiu pela rua de pedras, prestando atenção a cada esquina que cruzavam. Havia vários tipos de mortos, e nem todos eram lentos e fracos. O grupo já encontrara zumbis que corriam tão rápidos quanto os vivos. Havia também os nobres e ricos. A maioria dos camponeses passavam fome, e por isso eram magrelos e fracos. Após virarem zumbis, eles continuaram magrelos e fracos. Mas aqueles que viviam em castelos com banquetes fartos, comendo o dia inteiro enquanto os empregados faziam tudo, esses eram mais difíceis de matar. Seus corpos eram maciços, e não era qualquer pessoa que podia matar um desses zumbis gordos e ensebados.

– Alguém consegue matar um gordo? – Clay perguntou, olhando para os companheiros. Toiva e Kvarn negaram com a cabeça. Suas armas eram muito fracas para isso.

– Eu consigo afastá-lo – Galdor disse, tocando na bolsa que guardava seu papiro.

– Eu mato – Jim respondeu, mostrando a flecha um pouco mais grossa que o normal.

– Agora sim, me sinto mais seguro – Kvarn mandou um beijo para Jim. – “Garoto, o meu salvador”.

– Deixe-o em paz – Toiva sorriu. – Essa é a primeira missão dele fora de Deloran. Não o assuste.

– Assustado? – Jim perguntou, divertido. – Pelo contrário. Estou excitado. Não vejo a hora de matar uns zumbis.

– Se você está excitado para lutar com zumbis, você é um tolo – Galdor o repreendeu. – Não existe nada tão desesperador quanto ficar cercado por uma horda de mortos. Eles não sabem o que é ter medo. Eles simplesmente se jogam e te atacam com tudo o que tem.

– Eu não sou do tipo que fica cercado – Jim assegurou. – Caso uma horda apareça, a primeira coisa que faço é encontrar um lugar afastado e seguro, e…

Ele parou de falar assim que seu pé acertou um elmo de ferro no meio do caminho. O capacete rolou para dentro de um beco, direto para uma escadaria subterrânea de pedra. A cada degrau que acertava, o metal ecoava pelo túnel escuro, ribombando em meio a todo aquele silêncio.

O grupo ficou imóvel, olhando para a passagem no beco. Jim fechara os olhos, furioso consigo mesmo. Galdor deu um passo para frente. Seus olhos estavam arregalados e atentos. Ele virou o ouvido para ver se captava algum barulho.

– Não ouço nada – sussurrou, aliviado.

Mas antes que o grupo suspirasse, um som veio de baixo. Era um lamurio longo e rouco, seguido por um gemido agudo. Toiva se aproximou da escadaria e perguntou:

– O que é isso? Uma adega?

– Me parece mais um acesso aos esgotos – Galdor respondeu.

– Esgotos? – Kvarn perguntou, tentando parecer despreocupado. – Tipo aquele labirinto subterrâneo onde cabe milhares de pessoas? Certeza que é um esgoto?

– Definitivamente é o acesso de manutenção para o esgoto – Clay disse, olhando para a escuridão das escadas.

– Parabéns garoto – Kvarn se virou para Jim, pousando a mão em seu ombro. – Você começou bem.

Jim deixou os ombros caírem, envergonhado.

– Talvez seja só um – Toiva disse, se aproximando mais do buraco.

A resposta veio imediatamente em forma de gemidos. Várias vozes subiam do túnel, roucas e sem sentido. E estavam bem perto. O grupo se afastou da escada.

– Nós estamos mal equipados – Galdor se virou para Clay. – É melhor fugirmos.

– Ah, por favor! – Kvarn pediu, chateado com o conselho. Ele apoiava a espada sobre o ombro. – Nós vamos fazer essa desfeita com os nossos anfitriões?

– Galdor está certo, vamos procurar um refúgio – Clay disse, voltando a seguir seu caminho. – Venham todos.

O grupo o seguiu imediatamente. A poucos metros à frente, a rua virava para a direita, e logo estariam longe do campo de visão das criaturas que sairiam do esgoto. Assim que alcançaram a esquina, todos pararam de súbito. Não poderiam seguir adiante. A estrada estava bloqueada por zumbis. Dezenas deles. Os mortos vinham em sua direção, se arrastando lentamente. Os olhares das criaturas se moveram até o grupo, e começaram a estender seus braços, querendo alcança-los.

– São zumbis lentos – Toiva identificou. – Mas são muitos. Trinta, no mínimo.

– Se eles não andassem tão juntos – Clay mordeu o beiço.

– Precisamos voltar, Clay. Não podemos enfrenta-los – Galdor se virou pelo caminho que vieram, mas também teve que parar.

Zumbis saíam do beco, vindo do esgoto. Já havia cerca de cinco deles na rua, e no instante seguinte, esse número dobrou.

– Você disse que não era do tipo que ficava cercado – Galdor olhou para Jim. – Parece que você é um mentiroso filho da puta. Ainda excitado para matar zumbis?

– Primeira lição sobre Terras Mortas – Kvarn ergueu a espada do ombro. – As coisas escalonam muito rápido por aqui.

 

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