Nos capítulos anteriores: Icabode, Sunday e Drake invadiram o prédio da máfia polonesa para matar o vampiro antes que ele transformasse Solomon Saks em um deles. Mas a missão falhara, e Icabode morrera, logo depois de soltar o vampiro, pois descobrira que ele não era mal. Icabode acordou no inferno, onde foi informado que seu pai vendera sua alma para um senhor do inferno, e por isso, ele fora pra lá. Após uma fuga desesperada, ele se encontrou com Sunday, e ambos correram até um abismo que os separava do paraíso. No último instante, uma força invisível puxou Icabode pra cima, e Sunday se agarrou em suas correntes e foi puxado junto.
O Capitão Drake Sobogo estava cercado no primeiro andar. Mandara Sunday e Icabode terminarem a missão enquanto ele segurava os inimigos. O boxeador pegou uma barra de ferro à vista e acertou a cabeça de Troche com ela. O tinido metálico fez Drake perceber que o judeu tinha placas de ferro debaixo da pele.
– Agora é minha vez – disse o Judeu de Ferro antes de chutar o estômago do outro.
Drake atravessou a sala sem tocar no chão. Suas costas acertaram a parede com força, fazendo todo o ar sair dos pulmões. Antes que pudesse se preparar, Troche já estava o segurando pela gola e dando vários socos em seu rosto. Quando o julaco parou, Drake cuspiu sangue em seu rosto.
– Terminou? – o boxeador era conhecido como Capitão Sangrento nas lutas clandestinas. Um dos principais motivos disso, é que ele podia ficar coberto com o próprio sangue, mas nocaute nunca era uma opção. – Sou eu novamente.
Drake começou a socar o rosto duro de Troche, afastando-o. O outro se assustou com a ferocidade do homem, mas logo em seguida, reagiu. Os dois começaram a trocar golpes em uma velocidade surpreendente. Quando o Capitão Sangrento percebeu que não iria ganhar aquela, decidiu recuar.
Espero ter ganhado tempo o suficiente pra vocês, pensou, esperando que os outros dois conseguissem matar o vampiro. Em seguida, jogou seu corpo para trás, em direção à janela. Ele estava um andar acima do chão, mas o impacto foi pior que os socos que acabara de levar. Demorou um segundo para acertar o chão. O Judeu de Ferro colocou a cabeça pela janela e os dois se encararam. Em seguida, Troche sumiu dentro do prédio.
Tiros e clarões continuavam a vir pelas janelas, e Drake começou a rastejar para longe. Alguns segundos depois, uma janela explodiu, e dois corpos despencaram do terceiro andar. Sunday e Troche acertaram o chão com um baque seco. E para a surpresa de Drake, o Judeu de Ferro foi o único a se levantar. O homem olhou para cima, esperando que seus homens continuassem a perseguição. Depois, ele se virou para Drake, e sorriu.
– Vocês são muito estúpidos – Troche disse, vindo em sua direção.
Drake se levantou com dor, e ficou em posição de luta. Ele iria morrer, obviamente, mas iria lutando.
– Corta essa merda e venha logo! – gritou. – Vou dar uma surra nesse seu traseiro polaco.
Troche partiu pra cima. Mas nenhum de seus golpes acertava o alvo. Drake se esquivava habilmente, revidando sempre que possível. Ele era um boxeador profissional, mas seus oponentes não eram feitos de ferro. Enquanto Troche começava a se cansar, Drake sentia os ossos das mãos doerem, vendo que o adversário não sentia dor alguma.
Nessa hora, Troche o surpreendeu e chutou seu joelho. Drake caiu de lado, e o Judeu de Ferro colocou o pé sobre seu pescoço. Ele sorriu, vendo o boxeador socar sua perna.
– Por fim, é a minha vez – o Judeu disse, pressionando o pescoço de Drake.
Um barulho em suas costas fez os dois virarem a cabeça. Um corpo caiu do último andar. Era Icabode. Drake viu o corpo do jovem, sem vida, no chão. Troche começou a gargalhar satisfeito. O boxeador se sentiu tonto, pela falta de ar. Todos nós morremos.
Mas um vulto chamou a atenção, pelo canto de olho. Ele não sabia o que era, mas vinha em sua direção. Troche foi arremessado para longe. Drake sentou, vendo Icabode sobre o corpo do Judeu de Ferro. O jovem mordia o homem, ferozmente. Troche girou, derrubando-o. Icabode rolou de volta pra cima dele, mordendo-o novamente.
Tem algo errado com ele, Drake notou, tentando ficar de pé, e gritou:
– Ei!
Icabode se virou repentinamente. Seus olhos eram vermelhos, e seus caninos, compridos. Ele era um vampiro sedento de sangue. Uma besta sem consciência.
– Ah não, garoto – Drake suspirou, recuando.
Icabode avançou em sua direção, agarrando-o e voando pelo terreno cheio de materiais de construção. Drake tentava segurar a cabeça do jovem que tentava mordê-lo freneticamente. Os dois subiram vários metros acima, e o boxeador gritava para que ele acordasse, em vão.
Antes que se afastassem mais do chão, Drake usou a única arma que tinha. Seus socos não foram tão precisos naquela confusão, mas foi o suficiente para atordoar o animal em fúria. Icabode despencou, e os dois atravessaram copas de árvores, e caíram em um parque no centro do Brooklyn. Drake se levantou e tentou correr, mas com um golpe de Icabode, ele atravessou a rua, acertando uma parede de tijolos. O boxeador ficou sentado, vendo o vampiro voar em sua direção com as presas e garras prontas para o golpe final. Ao seu lado, um vira-lata latia, abanando o rabo.
Uma silhueta surgiu do nada, e uma mão agarrou o pescoço de Icabode no ar. O cachorro ganiu assustado com a aparição. O sujeito tinha o tamanho de um armário. Ele vestia roupas apertadas, suspensórios e quepe. Ele virou o rosto de lado e disse:
– Você é um mortal.
– Sim – Drake respondeu sem saber se aquilo era uma pergunta ou afirmação. Enquanto isso, Icabode tentava se desvencilhar da mãozorra do homem. – Não o machuque, ele está…
– Faminto – interrompeu o outro. Ele jogou Icabode no chão com força, fazendo a calçada rachar. Em seguida pegou o cachorro e o pressionou contra o rosto do jovem.
Drake assistiu a cena espantado. Icabode agarrara o vira lata e abria sua barriga com os próprios dentes. O animal chorava e se debatia enquanto grande parte de seus órgãos eram rasgados e caíam no chão. Alguns segundos depois, o homem misterioso jogou Icabode contra a parede.
– Já chega! – disse ele. Sua voz era grossa como trovão.
Drake foi até Icabode e tentou despertá-lo. O jovem piscava, confuso. Estava coberto com sangue, e suas presas pressionavam o lábio inferior. Ele olhou para a carcaça do cachorro e depois para Drake. Por último, para o homem de suspensórios.
– A primeira vez que vocês apareceram neste distrito, quebrando tudo, eu deixei passar – a voz grossa ribombou. – Mas o que vocês aprontaram hoje, ultrapassou os limites.
Ele puxou uma estaca de madeira da cintura e empalou a Icabode no coração. Drake se jogou contra ele, socando seu rosto. O homem segurou seus braços e lhe deu uma cabeçada fatal.
Icabode despertou, sentado em uma cadeira de espaldar alto, acolchoada com veludo, em uma sala coberta de tapeçarias vermelhas. Uma mesa de mogno estava na parte alta do cômodo. Uma ventania gélida invadia o lugar através de uma larga sacada, centenas de metros acima do solo. Atrás da mesa de mogno, havia três pessoas. Eles olhavam em sua direção, sérios.
– Eu digo para começarmos – disse um deles. Era um homem magrelo, de rosto ossudo e cabelos colados no crânio. Sua pele era pálida como a dos outros dois.
– Ninguém vai começar até a Juíza chegar! – o homem do meio parecia mais um urso, com seus cabelos e barbas frondosos e ruivos. Sua mão era quase do tamanho da cabeça do primeiro sujeito.
A terceira pessoa era uma senhora de roupas negras e uma renda que cobria o rosto. Ela se manteve em silêncio.
– Pelo menos para adiantar o assunto, senhor Ivanovitch – o magrelo insistiu. – Não está curioso pra saber o motivo desse alvoroço todo que nos trouxe o senhor Anthony Ritzo? – ele apontou para o sujeito de suspensórios que empalara Icabode.
O jovem olhou para baixo e viu que tinha uma taça vazia no colo, suja de sangue, e que não havia mais nenhuma estaca em seu peito. Ao lado, Anthony Ritzo estava em pé, olhando para o trio atrás da mesa.
– Mas ele já disse, oras! – Ivanovitch respondeu, irritado. – Esse neófito estava causando um caos em seu distrito. Voando sobre as ruas do Brooklyn, metido em perseguição policial e tiroteios em Green Point. Ele chamou tanta atenção como o Hindenburg em chamas.
– Eu sei que seu intelecto é capaz de ser saciado com tão pouco conhecimento, mas um catedrático como eu sempre busca entender plenamente o objeto de seu trabalho – disse o magrelo de cabelos colados. Ele se levantou e se aproximou da cadeira de Icabode. – Diga-me, rapaz. Antes de tudo, quem foi o cainita que te abraçou?
Icabode franziu o cenho, confuso. Antes que perguntasse o que significava aquelas palavras, o homem explicou.
– “Cainita” significa “descendente de caim”, vampiro. “Abraçar” é o termo que usamos quando um de nós transforma alguém em um membro de nossa sociedade.
Eu já te expliquei isso, Icabode, a voz de Sunday veio em seu ouvido. Ele olhou ao redor, procurando o detetive, sem sucesso. Não fazia ideia de onde vinha a voz.
– Então, diga-me – pediu o vampiro em sua frente. – Quem lhe deu a Não Vida?
– Eu não sei o nome dele – Icabode respondeu, cooperativo. Precisava ganhar tempo para fugir dali. – Mas ele me transformou para que eu não morresse… completamente. Diferente do que eu esperava, ele se mostrou bastante humano.
– Por que a surpresa? – ele abriu os braços, arqueando a sobrancelha. Sua fala era lenta e condescendente. – Vampiros não podem demonstrar bondade e misericórdia?
Aquela pergunta pegou Icabode de surpresa. Ele olhou nos olhos do homem, tentando decifrar se aquilo era puro cinismo. Mas para todos os efeitos, o vampiro no prédio polonês tentara salvá-lo, mesmo sabendo que Icabode estava ali para mata-lo.
– Começaram sem mim? – uma voz feminina, rouca, perguntou, quando a juíza adentrou a sala. Ela olhou para o vampiro magrelo. – Senhor Fermín?
Ela era corcunda, careca e sua pele tinha cor de cimento seco. Olhos vermelhos, nariz torto e vários dentes pontiagudos que iam para várias direções. Alguns iam até o queixo, outros perfuravam a bochecha, estando sempre expostos.
– Estava apenas sondando o réu, vossa excelência – Fermín respondeu, voltando para seu lugar atrás da mesa. – É sempre bom conhecer a fundo todos os fatos dos nossos julgamentos, já que acontecem tão poucas vezes.
A juíza sentou em uma poltrona num canto da sala, e alguns homens brotaram das sombras em suas costas e estenderam seus pulsos em sua direção. Ela fez alguns cortes e começou a bebericar direto das veias. Depois, limpou a boca com as costas das mãos e fez o sinal com o indicador para que começassem.
– Ritzo! – bradou Ivanovitch. – Diga exatamente o que aconteceu com esse aí.
Anthony Ritzo deu um passo à frente, e explicou:
– Semana passada, esse cainita apareceu com aquele forasteiro, Anatole, que pedira permissão para fazer umas buscas na cidade. Os dois sobrevoaram as ruas de Green Point, e mataram alguns policiais diante de várias testemunhas. Um de meus rapazes viu tudo e me avisou. Quando cheguei no local, eles já estavam em um local cheio de judeus altamente armados. Por isso nós não agimos.
– Por medo das armas ou de ser descoberto como um vampiro? – Ivanovitch perguntou, rindo.
– Ignore-o senhor Ritzo, por favor – Fermín pediu, educadamente.
– Nós ficamos de olho no prédio pelos próximos dias, tentando descobrir algo. Até que recentemente a proteção do prédio triplicou.
– Solomon Saks é o mafioso com o maior número de associados – Fermín observou. – Ele tem um pequeno exército. Os italianos estão perdendo seu espaço. Perdoe-me, continue.
– Eu deixei todos de meu clã em alerta, e hoje a noite, um tiroteio teve início. Nós corremos até o local, e vimos esse aqui – ele apontou para Icabode -, sobrevoar o prédio com o mortal para longe da zona de risco. Foi aí que o pegamos. Houve muitas testemunhas, conselheiros, juíza. E eu não pretendo assumir essa culpa. Fiz o que podia pra impedir que eles quebrassem o sigilo da Máscara.
– Fez o que podia, senhor Ritzo? – Fermín perguntou, curioso. – Mas você não nos informou da primeira vez que eles quebraram a Máscara. Não acha que deveria ter feito isso também?
O grandalhão gaguejou, tentando se justificar.
– Oh, não – Fermín sacudiu a cabeça. – Não falaremos sobre isso agora. Depois você terá a chance de se explicar. Agora desejo fazer algumas perguntas ao acusado – ele olhou para Icabode, interessado. – Como você se chama?
– Sou Icabode St. John – ele respondeu, sentindo a presença maligna naquele homem. Fermín tinha sede de sangue, e isso era visível em seu olhar.
– E o que aconteceu com Anatole depois daquela noite?
– Eu o matei.
Os vampiros se entreolharam, surpresos. Icabode não parou por aí.
– E foi por esse mesmo motivo que invadi o prédio de Saks, para matar o vampiro que ele mantém preso.
– Por quê? – Ivanovitch perguntou, se inclinado pra frente, intrigado. – Por que você está matando esses vampiros?
– Porque é isso que faço – Icabode se levantou pela primeira vez, deixando a taça cair e rolar pelo chão. Ele olhou para todos na sala e estalou o pescoço. – Eu sou um caçador de vampiros.
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