Icabode St. John [13]

Nos capítulos anteriores: Após Anthony empalar a Solomon, o polonês percebeu que precisava fazer algo acerca dessa fraqueza. Alguns dias depois da briga, Anthony descobriu que o mafioso se encontrava com um traficante de informações que vivia no cemitério, o Sombra. O grupo foi atrás dele, e descobriram que Solomon pretendia fazer um ritual de bruxaria. Após matarem o Sombra, os mortos se levantaram, e o grupo começou a fugir. No caminho, encontraram com Solomon e seu séquito. Ao tentar empala-lo, Anthony descobriu que Solomon removera o seu coração do peito e o escondera em algum lugar. Em seguida, o polonês o empalara de volta e o matara. Leon fugira, e Icabode se escondera em um mausoléu, onde ouviu o séquito falar sobre alguém chamado de Maxiocan, o único que saberia como reverter o feitiço de Solomon. 

 

Os mortos voltaram para suas tumbas, puxando a terra sobre si com seus dedos esqueléticos. A terra revolvida e os cadáveres atropelados por Anthony Ritzo irão atrair a atenção das pessoas e da polícia, Icabode concluiu, ainda escondido em um mausoléu. Quando seus ouvidos aguçados ouviram o último zumbi se aconchegar em seu caixão, ele saiu do esconderijo. Uma voz idosa e distante o fez parar.

Mas isso de novo?

Icabode forçou os olhos, e viu saindo de um casebre, o zelador do cemitério. De novo? Ele se perguntou. Pelo visto, aquela não era a primeira vez que os mortos se levantavam. Aparentemente essa não seria a primeira vez que ele limparia essa bagunça. Melhor eu dar o fora daqui, Icabode se virou e correu pelo cemitério.

– Leon, você está aí? – ele chamou não muito alto. O companheiro tinha audição aguçada, e caso ele estivesse nas proximidades, iria escutá-lo. – Leon?

Icabode parou ao ver um corpo carbonizado em uma clareira, com um galho atravessado em seu peito. Era Anthony Ritzo. Se aquele brutamontes não foi páreo para Solomon, quem sou eu?

– Leon, pode me ouvir? – ele voltou a correr.

Depois de alguns minutos, desistiu. Olhou para o céu e imaginou que o amanhecer não estava tão distante. Leon provavelmente voltara para seu esconderijo na Estátua da Liberdade. Muito longe, e eu não aprendi a voar ainda, ele pensou, ficando preocupado. Precisava achar um lugar pra se esconder antes que o sol saísse e o pulverizasse.

Só tem um lugar… pensou, receoso.

 

Ele corria há mais de uma hora, sentindo seus músculos da perna se contraírem em uma dor lancinante. E não estava nem na metade do caminho. Decidiu sentar no meio fio, sentindo o desespero tomar conta de seu peito. Nenhum lugar parecia ser um esconderijo bom o suficiente. Todas as portas e estabelecimentos estavam fechados. Os becos eram muito expostos, assim como se esconder debaixo dos carros.

Ele sabia que onde quer que se metesse, alguém viria o seu corpo e o confundiria com um cadáver. Assim que a ambulância viesse busca-lo, ele iria para o sol e puf!

Vá para o esgoto, garoto, Sunday falou em sua mente. Icabode arregalou os olhos, feliz por ouvi-lo.

– Onde você está, Sunday? Diga-me, rápido!

Você não pode vir aqui agora. Corra para um esgoto antes que você vire farinha! Correndo contra o tempo, Icabode se levantou e foi até uma boca de bueiro e tentou erguer a tampa de ferro, pesada. Seu corpo estava faminto e esgotado de tanto correr. Os braços magrelos se esticaram e tremeram, e a tampa mal sacudiu.

Rápido, garoto! Você precisa sobreviver! Preciso de sua ajuda!

Icabode olhou para trás e viu o horizonte clarear. O negrume virou um azulado escuro. Sua pele começou a transpirar sangue, enquanto sua mente se enchia de um pavor intenso. A barra de ferro ergueu alguns centímetros agora.

Isso, força!

Ele conseguiu afastá-la um pouco para o lado. Se não fosse a exaustão, não seria tão difícil. Ele sentou, apoiando as mãos no asfalto, atrás. Seus calcanhares pousaram sobre a borda da tampa e começaram a empurra-la. Com uma careta e muita tremedeira, Icabode conseguiu empurrar mais alguns centímetros. Ele tentou enfiar seu corpo na brecha, mas ficou preso nos quadris. Se debateu como um gato aprisionado, e viu o topo dos prédios serem tomados pela claridade solar.

Aos poucos, se espremeu e deslizou o quadril pelo buraco, se contorcendo. Um paredão de luz já marcava a esquina daquela rua, e ele vinha em sua direção. Icabode se apressou, erguendo os braços pra cima, passando a barriga pelo buraco. Quando chegou nos ombros, ficou preso novamente, e o sol refletia sua luz no asfalto, queimando o rosto de Icabode. Num último grito de fúria, ele se impulsionou para baixo e caiu no chão, batendo o lado do corpo.

Muito bem, Sunday disse. Agora procure um esconderijo. Amanhã nos falamos.

Icabode saiu mancando no meio da escuridão, segurando as costelas doloridas. Ele tentou falar com Sunday novamente, mas o detetive não respondeu mais. Icabode viu frestas de luz passando pelo teto do esgoto, e ele tentou fugir o mais longe possível dessas aberturas. O dia estava nascendo, e seu corpo começara a enfraquecer mais ainda. Ele estapeou o próprio rosto, tentando ficar acordado, até que encontrou um entulho de lixo boiando num córrego do esgoto. Ele entrou na água que batia em seus joelhos, e mergulhou, trazendo o entulho para cima de si. A última coisa que ele fez antes de desmaiar foi chorar.

 

Despertou, assustado. Se levantou da água, empurrando o lixo ao redor. Uma fralda de pano, suja de fezes ficou grudada em seu rosto. Ele a arrancou com nojo. A fome coçava sua barriga com unhas afiadas. Ao redor, ratos corriam aos montes. Ele mordeu o lábio inferior, dividido entre o medo daquelas criaturas e a fome.

– Não farei isso – concluiu, caminhando pelo canal de água entre as calçadas ladrilhadas por onde os ratos cruzavam.

Enquanto procurava uma escada para o mundo de cima, ele atravessou alguns túneis escuros, até que algo chamou sua atenção. Um barulho de água sendo agitada em suas costas.

“Os vampiros não são as únicas coisas perigosas nas noites de Nova York”, Leon dissera na noite passada, alguns minutos antes do cemitério se encher de zumbis.

Houve outro barulho de água revolvida. Icabode se virou lentamente sobre os tornozelos e aguçou o olhar. Duas bolas amarelas reluziam na água, lado a lado. Enquanto ele tentava entender o que era aquilo, as bolas piscaram de forma reptiliana.

Icabode se virou novamente e começou a correr. Ele não sabia se o som de água que estava ouvindo era só de sua corrida, ou se vinha de trás também, mas por vias das dúvidas, preferiu continuar correndo. Ao virar na última curva, se deparou com uma grade de proteção que o impedia de seguir o caminho. Ele foi até o fim e se agarrou às barras de ferro, cansado. Em suas costas, o barulho de água se batendo voltou. Ele girou e pôs as costas na grade, assustado. Estava cercado. No caminho de volta estavam os olhos amarelos. De repente, uma cauda gigantesca, escamosa, se movimentou para lá e para cá, espalhando água pra todos os lados, e voltou a submergir.

Icabode tentou ficar invisível, mas os olhos continuavam focados nele. Faça alguma coisa agora, disse a si mesmo. Decidido, começou a correr pela lateral do túnel, esperando que fosse mais rápido do que aquele crocodilo gigantesco. Mas antes de chegar na metade do caminho, o animal se levantou sobre as patas, revelando uma altura surpreendente, e uma velocidade maior ainda.

Icabode tentou parar, deslizou e caiu de costas no chão. O corpanzil do animal se chocou com a lateral do túnel, esmagando e destruindo todos os canos da parede. Alguns eram gigantescos, e uma enxurrada começou a jorrar sobre Icabode, arrastando-o em direção à grade novamente.

Ele se levantou, indo de um lado para o outro, tentando evitar o raio de largura do crocodilo. Você precisa fazer mais uma investida! Pensou, se recusando a entregar as pontas. Depois de tudo o que você passou, seria idiotice morrer para uma lagartixa gigante. Ele apoiou à grade e se empurrou para o lado oposto. A boca do crocodilo tinha alguns metros de comprimento, e ela se abriu, recheada de dentes imensos, podendo engolir o humano em uma mordida. Seu movimento foi brusco, e o túnel era apertado. Isso fez com que o resto dos canos fossem destruídos.

O ataque da criatura foi rápido, e alcançou Icabode em um movimento. Ele se jogou de costas na água e jogou os pés contra o focinho do animal. Por um milagre, um dos pés se apoiou na parte superior do focinho, e o outro, na inferior. A boca se abriu, esticando as pernas do humano, e o crocodilo avançou, tentando abocanhá-lo. Icabode se equilibrava, enquanto o focinho o empurrava pelo esgoto. A água subia de nível rapidamente, o que aumentava a velocidade dos dois.

Icabode tentava olhar para onde era empurrado, mas a água batia em seu rosto, cegando-o. Por um breve momento, viu luzes descendo em frestas do teto, adiante. Uma escada, pensou. Esperou o momento certo, e assim que se aproximaram, ele se jogou. O crocodilo passou direto, e os dedos de Icabode grudaram na barra da escada. Ele abraçou o metal, tentando não ser levado pela enxurrada.

Um gorgolejar primitivo veio do túnel, e o crocodilo se ergueu da correnteza em um salto, voltando até ele. Diabos! Icabode começou a subir barra por barra, junto com o nível da água. No meio do caminho, sentiu a escada sacudir embaixo de seus pés e mãos. A fera a puxava com os dentes.

Só mais um pouco! Pensou, tentando chegar à tampa do bueiro antes que a escada viesse abaixo. Ele conseguiu enfiar os dedos nos buracos por onde a luz descia no exato momento em que a escada cedeu e afundou na escuridão molhada. A água agora estava a poucos metros, e um monstro de escamas se debatia logo abaixo, se desvencilhando da escada.

– SOCORRO, ALGUÉM! – Icabode gritou ao ouvir o barulho do tráfego alguns centímetros acima de sua cabeça.

A tampa sacudia sempre que um carro passava. A qualquer momento um pneu poderia esmagar seus dedos. Ele pressionou os pés contra a parede e as costas contra a outra, pendurado no ar. O crocodilo saltou da água e rasgou sua jaqueta jeans.

Estou morto, ele concluiu, vendo que não havia escapatória. Tentou se segurar enquanto pôde, mas a água já estava perto o suficiente, e o crocodilo mergulhou para dar o impulso final que o levaria até sua presa.

– Droga… – Icabode sentiu os pés deslizarem, e seu corpo despencou.

Sua visão escureceu enquanto ele afundava nas águas negras. Talvez essa tenha sido sua sorte. O crocodilo não esperava encontra-lo ali, e sua boca ainda não estava aberta. Mas ele já subia com toda velocidade, levando Icabode para cima. O vampiro sentia suas costas se aproximando do teto e se encheu de esperanças.

Ele subiu com muita força. Sua cabeça jogou a tampa do bueiro para o outro lado da rua, e seu corpo começou a subir a avenida, como se fosse o próprio Super Homem. Ele girou no ar. Estou voando! Finalmente, consegui!

Ele subiu a altura de quatro andares até começar a cair novamente, só que lentamente. Ao pousar de cócoras no chão, sob os sons de pneus cantando e gritos de testemunhas assustadas, o crocodilo atravessou o bueiro, rachando o asfalto ao redor, enquanto a torrente de água enchia a rua. Era um caos.

O crocodilo estava preso no bueiro, se debatendo. Icabode olhou pra ele e sorriu.

– Sei como é a sensação – dito isso, se virou para as dezenas de pessoas que olhavam a cena, assustadas. – Au revoir!

Tentou ficar invisível, mas as pessoas continuavam olhando pra ele. Não deve funcionar quando alguém estiver olhando pra você, pensou. Os motoristas dos carros começaram a descer, amedrontados com a destruição da pista. Icabode decidiu simplesmente correr até um beco e fugir. Ele estava irreconhecível, coberto com as piores sujeiras do esgoto da cidade.

A situação que passara era tão incrível que ele não evitou sorrir da própria desgraça. É como aquele musical diz:  “New York, New York, is a wonderful town”.  O musical “On The Town” fora lançado na Broadway um ano antes do fim da guerra. Icabode se lembrava disso pois seus pais foram assistir.

Broadway, ele pensou, se lembrando das prostitutas que foram mortas por Fermín na casa de Sunday. Elas haviam o comparado com algum garoto da Broadway. Sua consciência o trouxe à realidade. Ele precisava fazer algo. E não tinha como se encontrar com Leon na Estátua da Liberdade. Mas não é pra lá que quero ir.

Depois de uma longa caminhada, ficou invisível e entrou no prédio de Sunday. O porteiro ouvia o rádio, junto com alguns moradores no salão de entrada. O locutor falava sobre uma série de assassinatos que aconteceram naquela noite, e todas as vítimas morreram com uma estaca no coração. Os corpos estavam sem sangue, e alguns deles pareciam se esfarelar, como se fossem múmias.

Solomon está atacando os vampiros de Nova York, Icabode se apoiou na parede com a notícia. Ele subiu todos os lances de escada até chegar no apartamento com a faixa policial. Certamente o lugar estaria sendo vigiado. O Conselho de Nova York não deixava pontas soltas. Muito menos em dias como esses.

No centro da sala, um quadrado livre de poeira no chão indicava onde estavam o tapete e sofá. Leon os jogara em algum canto do rio, junto com os cadáveres das prostituas. Ele sentou numa poltrona e aguardou. Olhou ao redor, se questionando se Sunday passara por ali recentemente. Lembrou que foi nesse lugar que Anatole conheceu o detetive. E dali, ele o seguiu até Montauk, onde matou meus pais, pensou com amargura.

Seus ouvidos aguçados captaram o som de passos na sacada, e em seguida, adentrando a sala.

– Você não devia ter voltado aqui, neófito! – uma voz disse, seguida de uma risada. Era um vampiro desconhecido a Icabode, provavelmente um capanga do Conselho.

– Apenas me leve à Juíza – se levantou, erguendo as mãos.

– Você sabe que eles vão te matar no momento que te virem, não sabe? – o vampiro perguntou, surpreso com sua reação.

– Que eles façam o que tem que fazer – Icabode respondeu, sério. – Agora me leve.

O vampiro deu de ombros e o empalou sem resistência. Icabode sentiu seu corpo ficar imóvel, e as mãos frias do outro o arrastarem pela sala. Um momento antes de sumir pela sacada, seu nariz aguçado indicou um cheiro de nicotina e tabaco frescos. Seus olhos se estreitaram e viram um cinzeiro com uma bituca em seu canto. Ele aguçou a visão, e através das bactérias no ar, conseguiu captar uma leve fumaça subindo das cinzas.

Vampiros têm pavor a fogo, pensou. Um mortal esteve ali. Talvez alguém que soubesse que só seria seguro estar em casa durante o dia.

Sunday!

 

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Icabode St. John [12]

Nos capítulos anteriores: Icabode e Leon se uniram a Anthony Ritzo para caçarem Solomon, mas antes que sequer saíssem do esconderijo, o polonês apareceu com seu séquito, revelando que havia consumido a alma de todos os membros do clã de Anthony. Um confronto teve início, e no final, Anthony empalou Solomon. Mas antes que pudesse matá-lo, o séquito do polonês interveio e resgatou o corpo de seu senhor, levando-o para longe. Como Icabode e seus companheiros falharam em deter o inimigo, eles decidiram fugir, pois sua derrota atrairia a fúria dos vampiros do Conselho. 

 

Quando criança, Icabode fora mordido por um rato dos esgotos de Nova York. Foi uma mordida daquelas que te deixam vários dias doentes. Seu trauma começou aí, e naquela briga de bar ficou mil vezes pior. Ratos vinham de todas as direções e o mordiam como se ele fosse um grande pedaço de queijo.

Nos dias seguintes após a destruição do Portões do Inferno, Icabode continuou sendo perseguido pelas criaturas. Elas estavam sempre escalando seu corpo, penduradas em suas roupas, vindo das ruas, das paredes, do meio da água. Eles estavam em todos os lugares. Uma semana depois ele parou de sentir a dor das mordidas, como se seu corpo tivesse acostumado com a sensação. Mas ainda assim os minions dos esgotos estavam sempre ao seu redor.

Um belo dia eles sumiram. Icabode saiu de seu esconderijo, aliviado pela primeira vez e foi até o parapeito de aço. Ele olhou ao redor, cem metros acima do chão. A ilhota estava cercada de água. As luzes da cidade estavam a quilômetros dali, como se até mesmo os prédio soubessem que era inteligente manter a distância entre eles. Icabode mal se lembrava de como tinham achado aquele esconderijo.

– Você está melhor? – Leon perguntou, se aproximando por trás. – Não acordou gritando hoje.

– Eles sumiram – Icabode gaguejou, olhando a câmara metálica ao redor. – Eu fiquei quanto tempo nesse estado? E onde está Solomon Saks?

– Duas semanas – Leon respondeu, preocupado. – E Saks continua desaparecido.

– Não mais! – Anthony Ritzo subiu as escadas, vestindo uma calça bege e camisa regata, branca. – Eu consegui uma informação sobre o paradeiro do polonês.

– Ele voltou à mansão? – Leon perguntou, surpreso.

– Não, mas eu encontrei um de seus capangas.  – Anthony respondeu e jogou dedos decepados no chão. – O polonês fez uma visitinha ao Sombra. Ele é um traficante de informação que mora em um cemitério aqui de Nova York. É pra lá que vamos – ele olhou para Icabode. – Você parece lúcido. Virá conosco?

– Essa é uma pergunta idiota – Icabode respondeu, vestindo a jaqueta que trazia pendurada no ombro.

– Acalme-se, garoto – Anthony mostrou a palma da mão. – Iremos no meio da madrugada, quando a cidade estiver dormindo.

 

Às três da manhã, os três saltaram o muro de pedra como se fosse uma cerca para cachorros. Dentro do cemitério, não se podia ver o chão debaixo da névoa. As árvores pareciam dedos pelados, numa teia de galhos que cobriam suas cabeças. As lápides eram cobertas de musgo e teias de aranha, como se nenhum zelador passasse ali há anos.

– Quando alguém diz “cemitério”, em minha mente sempre vem o Cemitério Nacional de Arlington, um grande campo verde, cheio de lápides brancas e alinhadas – Leon disse, estalando os dedos, assustado.

– Pensei que vampiros não tivessem medo de cemitério – Icabode comentou, segurando o revólver.

– Não tem nem um mês que você é um de nós e já quer bancar o sabe tudo – Leon deu um soco em seu ombro. – Os vampiros não são as únicas coisas perigosas nas noites de Nova York.

– Silêncio! – Anthony ia à frente, com a escopeta encostada no ombro. – Vocês conseguem ouvir algo?

Leon e Icabode ativaram seus ouvidos aguçados e olharam ao redor.

– Ouço o barulho de correntes – Icabode disse, engolindo seco. – O som vem dali.

– Por que não vai na frente, valentão? – Leon o empurrou de leve.

Os três avançaram, cada um segurando sua arma. E Anthony ergueu a escopeta assim que viram um mausoléu antigo, com uma gárgula em seu topo. Icabode abriu seus ouvidos e escutou batidas abafadas e rítmicas, bem baixinhas vindo do mausoléu.

– Estou ouvindo o coração… é um humano.

– Sombra, saia do seu esconderijo! Se preferir, eu o trago arrastado! – Anthony gritou, cuspindo saliva.

Um gemido veio do mausoléu. Em seguida, correntes sacudiram e caíram no chão. O portão de ferro rangeu enquanto era aberto por mãos de unhas compridas. Um sujeito negro e corcunda apareceu, mancando. Usava calças de couro e um colete folgado. Em seu peito, havia uma corrente da cruz ansata, um Ankh.

– Qual o seu assunto com Solomon Saks? – Anthony perguntou, mostrando-lhe o cano da escopeta. – O que ele veio fazer aqui?

– Saiba que eu não sou a única pessoa em risco aqui – Sombra respondeu com sotaque estrangeiro, erguendo as mãos. Ele parecia assustado. – Se fizer algo comigo…

– Você está me ameaçando, seu merdinha? – Anthony se aproximou, colando a escopeta no rosto do homem. – Antes que você faça qualquer coisa, eu mando seu cerebelo para o topo daquela gárgula.

– Tudo bem – ele gaguejou. – Não precisamos fazer loucuras aqui. Mas no momento que eu quebrar o sigilo que tenho com o meu cliente, nunca mais confiarão em mim – ele viu a impaciência no olhar de Anthony e começou a falar. – Ele veio atrás de ingredientes para um ritual de bruxaria. Eu não sei qual ritual, ainda mais porque ele não tinha motivos de revelar uma coisa tão pessoal pra mim, um traficante de informações, não é? – ele sorriu, nervoso. – E os ingredientes serviriam para vários rituais diferentes, então não poderia nem lhe dizer algo específico. Depois ele me pagou e eu agradeci pela confiança – ele olhou para o cano em seu rosto.

– Eu acredito nele – Icabode disse, olhando ao redor.

– Eu também – Anthony disse, e apertou o gatilho.

O Sombra foi arremessado, e seu corpo rolou pelo chão. Ele segurou a barriga aberta e olhou para os três, surpreso.

– Ele disse o que queríamos! – Icabode gritou, se colocando na frente de Anthony. – Por que você fez isso?

– Não quero deixar um rastro de onde estive – Anthony respondeu, encarando-o nos olhos. – Ele entregou a Solomon, não entregou?

– Vocês deveriam ter saído daqui – Sombra disse, fazendo careta de dor. – Eu teria deixado vocês partirem.

– Do que você está falando? – Leon perguntou, se aproximando dele.

– Ei, se afaste daí – Anthony disse, receoso.

Uma luz verde emanou por dentro do moribundo, refletindo por seus olhos, como uma pequena explosão, e no instante seguinte, Sombra estava morto. Os três olharam ao redor, atentos.

– Vamos sair daqui, rápido – Anthony disse, se afastando do mausoléu. E no terceiro passo, ele tropeçou na raiz de uma árvore e caiu, ou pelo menos ele achou que fosse uma raiz.

Dedos começaram a abraçar seu tornozelo, prendendo-o no chão. Uma mão ossuda saiu de outra parte da areia e agarrou a outra perna. Outros dedos surgiram, segurando sua cabeça e braços. Um esqueleto de terno e gravata, cheio de vermes, saiu da terra agarrando o vampiro. 

– Os mortos estão se levantando – Icabode disse, se virando a tempo de ver centenas de mãos se projetando para fora das covas.

A escopeta cuspiu algumas vezes, e Anthony estava em pé novamente.

– Rápido! – gritou ele. – Sigam-me!

Anthony começou a correr, e Icabode e Leon iam em seu encalço pulando sobre os esqueletos derrubados no caminho.

– Ele é um rinoceronte! – Leon disse, vendo Anthony derrubar dezenas de cadáveres, deixando um caminho de zumbis esmagados no chão.

Depois de percorrerem o labirinto de lápides, uma bola de fogo acertou uma cripta logo em frente ao grupo, fazendo-os parar. Uma figura comprida e esguia pousou diante deles.

– SAKS! – Icabode gritou ao ver o polonês.

Em seguida, Rabin surgiu ao seu lado, e Troche, o Judeu de Ferro, do outro. Solomon segurou suas mãos nas costas, sorrindo. Os zumbis fizeram um círculo ao redor do grupo, parados.

– Eles não vão nos atacar? – Solomon perguntou.

– Eles sabem que somos aliados do Sombra – Rabin respondeu.

– Perfeito. Não quero interrupções.

– Parece que você quer levar outra surra – Anthony jogou a escopeta no chão e foi até a árvore ao lado, arrancar um galho grosso.

– Na verdade estou surpreso de vê-los aqui – Solomon disse, observando Anthony tornar aquele galho em uma grande estaca. – Mas acho que precisamos terminar aquela nossa disputa, sim.

– Dessa vez, terminamos isso aqui – Anthony respondeu e marchou ao seu encontro com uma estaca improvisada na mão direita.

Ele avançou sobre Solomon e esticou o braço sem qualquer resistência. Solomon nem sequer saiu do lugar. A estaca entrou em seu peito e saiu em suas costas.

– Isso! – Leon gritou, excitado.

Icabode se manteve em silêncio. Rabin e Troche estavam sérios, olhando para o seu senhor. Nenhum deles fez qualquer tentativa de impedir Anthony. Tinha algo de errado.

– Funcionou? – Troche perguntou, subitamente.

– Claro que sim – Rabin respondeu. – Mestre?

Solomon Saks olhou para baixo, deixando os oponentes perplexos. Em seguida, ele arrancou a estaca do peito e a enfiou no coração de Anthony com tanta força que o empurrou alguns metros para trás. O polonês tirou seu sobretudo e mostrou seu torso nu, branco e pálido. Havia um buraco sobre seu peito, por onde Icabode e Leon podiam ver através. O coração de Solomon não estava ali.

Icabode ficou imóvel ao ver que o polonês removera o próprio coração, mas ao ver Anthony empalado e paralisado, saiu do transe e correu em sua direção.

– Rabin, termine isso – Solomon disse, e uma bola de fogo nasceu na mão do feiticeiro.

Rabin a arremessou, e ela virou uma coberta de fogo ao redor do corpo de Anthony. Icabode voou para trás, sentindo um pavor pior do que quando sentira com os ratos. Ver o fogo assim tão perto era como se tocasse o próprio sol infernal.

– Venha, rápido! – Leon o ajudou a se levantar e o puxou dali.

– Matem esses dois vermes – Solomon disse, e os zumbis começaram a avançar novamente.

– Use seu poder, rápido! – Leon disse, e desapareceu do nada.

Icabode se encolheu atrás de uma lápide e também ficou invisível. Os zumbis ao seu redor olhavam de um lado para o outro, procurando-o. Com muito cuidado, ele entrou em um mausoléu com o portão tombado, e sentou no chão de mármore. A luz da lua cobria seus pés, mas ninguém o via, mesmo se olhasse direto em seus olhos. Diante do portal, cadáveres bamboleavam e mancavam, com pedaços de pele e musgo pendurados em seu corpo.

Icabode abriu os ouvidos e escutou a voz de uma quarta pessoa se juntando ao séquito de Solomon. Ele reconheceu a voz do homem que lhe mandara os ratos, era Gólgota.

Mestre, eles mataram o Sombra! – Gólgota avisou.

– Malditos! – Solomon disse, furioso.

Acalme-se – Rabin pediu, tranquilo. – Veja o lado bom disso.

– Lado bom? – Troche perguntou, impaciente. – O Sombra finalmente encontrou o endereço de Maxiocán, o único que pode reverter o feitiço de Solomon, e agora o Sombra está morto. Como iremos encontrar esse mexicano? Como iremos mata-lo?

– Se Maxiocán é o único que pode reverter o feitiço de Solomon – Rabin explicou com calma –, e o Sombra é o único que pode encontra-lo, nossos problemas estão resolvidos. Com o Sombra morto, ninguém encontrará Maxiocán.

– E ninguém saberá onde eu escondi meu coração – Solomon finalizou. – Finalmente me tornei Solomon Saks, o Imortal!

Icabode se lembrou do dia em que atacaram o esconderijo de Leon, ao lado de Saks e Sunday, quando pensava que Solomon iria iniciar uma “Guerra Santa” contra os vampiros. No final da noite ele os traíra, e dissera que todos ouviriam falar em “Solomon Saks, o Imortal”. Sua profecia estava se cumprindo.

Icabode abraçou os próprios joelhos e ficou balançando pra frente e para trás.

 

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Icabode St. John [11]

Nos capítulos anteriores: O mafioso Solomon Saks consumiu a alma dos vampiros Anatole e Ivanovitch, dois cainitas poderosos. O Conselho de Nova York decidiu colocar a culpa disso em Icabode, Leon e Anthony Ritzo, ordenando que os três dessem um fim no mafioso. Eles se encontraram no bar Portões do Inferno e começaram os preparativos para a missão. 

 

Icabode, Leon e Anthony pegaram diversas armas e munições do arsenal que ficava no porão do bar “Portões do Inferno”. Anthony vestira uma máscara de demônio e mandou que seu empregado, Brad, fechasse o bar.

– Eu não me sinto bem com armas – Leon disse, segurando uma pistola com má vontade. – Eu sei que é preciso, mas…

– Não fode – Anthony o interrompeu, saindo do porão para a cozinha. Ele olhava para o relógio, tenso. – Por que eles não me ligaram ainda?

– Eles quem? – Icabode perguntou, seguindo-o.

– Meus homens estão vigiando a mansão do polonês. Eles ficaram de ligar para me atualizar sobre seu paradeiro.

– Talvez ele não saiu de casa – Icabode falou. – Ou não voltou da noite passada.

– Não podemos esperar mais – Anthony resmungou, decidido. Os três estavam na cozinha, aguardando o bar esvaziar.

– Anthony – Brad, o bartender surgiu pela porta. – Os clientes estão se recusando a sair. Eles disseram que são veteranos, que está cedo e que querem mais bebida. O que eu digo?

– Era só o que me faltava – Anthony chutou a porta da cozinha, entrou no bar e ergueu a escopeta. – VOCÊS TEM TRÊS SEGUNDOS PRA DAR O FORA!

Icabode e Leon assistiram o lugar se esvaziar em poucos segundos. O bar era só deles. A jukebox tocava uma música do sul, e a fumaça dos fumos pairava sobre suas cabeças.

Anthony Ritzo tinha uma rixa antiga com a máfia polonesa. Ambos comercializavam armas no mesmo bairro. Icabode via a fúria do vampiro, e tinha medo de que ele fizesse alguma tolice como foi com Ivanovitch.

Lá fora, o motor da moto do último cliente se afastou, e os vampiros trouxeram suas armas para as mesas do bar, e começaram a debater se deviam ir até a mansão ou não. A resposta veio sozinha. A porta se abriu, jogando a luz da rua no assoalho.

– O bar está fechado – Brad avisou ao suposto cliente.

– Você não sabe o quanto isso é verdade – Solomon Saks respondeu.

Os três vampiros se viraram pra ele, incrédulos. O polonês puxou uma cadeira e sentou, calmo. Ele vestia um sobretudo negro por baixo de todo aquele cabelo e barba brancos. Ele sorriu, e as pontas de seus caninos pressionaram os lábios inferiores.

– Saia daqui – Ritzo ordenou a Brad, e o bartender foi para a cozinha. Em seguida, ele olhou para Solomon, fechando os punhos – Onde estão os meus homens?

– Lá fora – Solomon informou.

– Algum deles está morto? – Anthony perguntou, engolindo seco.

– Não estamos todo? – Solomon brincou. – Acalme-se, eles estão ali fora, junto com meus homens. Assim que o sol nasceu, meus empregados mortais visitaram covil por covil e os levaram até mim, empalados, é claro. Foi uma operação muito difícil e meticulosa. Eu fiz a proposta para cada membro do seu clã, assim como farei a vocês – ele olhou para Icabode, notando-o pela primeira vez. – Por que eu não suspeitei que você estaria aqui, no esconderijo do meu concorrente? Ontem você saiu sem dizer nada, e fiquei me perguntando onde teria ido.

– Por que não procurou na casa da sua mãe? – Icabode perguntou, cruzando os braços.

– Quê isso? – Leon olhou para o companheiro, surpreso. – Pensei que você fosse religioso.

– Agora sou um vampiro – Icabode deu de ombros.

– Acha que é isso que vampiros fazem? – Leon perguntou. – Xingam as mães dos inimigos?

– Calados – Ritzo rosnou, e ergueu a arma para Solomon. – Você é muito corajoso para entrar aqui sem os seus homens.

– Se tem uma coisa que eu sempre fui, foi ser corajoso – Solomon garantiu. – Por isso cheguei onde cheguei. E se você quiser fazer parte disso que estou construindo, dobre seu joelho e jure sua lealdade a mim.

Os vampiros se olharam, receosos. Ele estava muito confiante. Isso era um sinal assustador. Icabode ergueu sua arma também e olhou para Anthony.

– Desculpe, mas não vou esperar você pensar no assunto.

– Não pensarei – Ritzo assegurou, sem tirar os olhos de Solomon. Em seguida, ele tensionou o braço da escopeta e apertou o gatilho.

O disparo foi alto e ensurdecedor. No susto, Icabode fez o mesmo. Leon a contragosto começou a atirar também. Solomon tombou para trás, junto com a cadeira, e sumiu de suas vistas. Anthony continuou disparando, transformando sua mesa em estilhaços.

– Esse maldito deixou o poder subir à cabeça – ele cuspiu para o lado.

– Isso foi muito fácil – Leon reconheceu, admirado.

Icabode se manteve em silêncio, desconfortável. Solomon ficou de pé repentinamente, olhando para o próprio sobretudo, desgostoso. Nenhum tiro pareceu ter feito grande estrago. Os três ficaram surpresos. A porta se abriu novamente e um homem de barba e cabelos encaracolados, negros, entrou. Ele vestia trajes pretos e uma pequena cartola.

– Mestre? – ele perguntou, preocupado. – Está tudo bem?

– Sim, Gólgota – Solomon disse para o outro vampiro. – Eles não querem fazer o acordo. Traga os membros do clã do senhor Ritzo, por gentileza.

Anthony olhou de um para o outro, tenso. Ele não sabia o que aquilo queria dizer. Gólgota saiu correndo e sorrindo. Depois, ele voltou com um sujeito místico, com medalhões, anéis e uma maquiagem de caveira. Os dois carregavam um grande saco de batatas.

– Rabin – Gólgota disse para o companheiro -, coloque nessa mesa aqui.

Os dois colocaram o saco sobre a mesa, e o viraram de cabeça pra baixo. Várias bolas peludas rolaram sobre a madeira. Ao ver que elas tinham olhos, Icabode percebeu que eram cabeças humanas. Solomon sorriu pra eles.

– Seu clã inteiro era muito delicioso – afirmou. – Não posso reclamar de um sequer.

– Você os capturou durante o dia, seu maldito! – Anthony arregalou os olhos, assustado. – Você… você invadiu suas casas… e os…

– Os consumi – Solomon terminou. Em seguida ele ergueu os punhos como um boxeador. – E agora estou louco pra testar meus novos poderes. Vamos ver se você é tão forte quanto me contaram.

Anthony apertou o gatilho de sua escopeta, mas só ouviu o clique seco, sem munição. Ele jogou a arma no chão e puxou a Thompson de cima da mesa. A metralhadora cuspiu as cápsulas para o lado como mergulhadoras de nado sincronizado. Solomon inclinava o corpo de um lado para o outro, tentando evitar que levasse todos os tiros. Quando o disco de munição acabou, Anthony jogou a arma no chão.

– Estou sentindo o poder em meu corpo – Solomon disse, limpando o sangue no canto da boca. Seu corpo parecia uma peneira, mas as balas não haviam afundado tanto.

Icabode tirou o pino de uma granada e a jogou em sua direção. Solomon se virou sobre o tornozelo e deu um tapa nela, jogando-a para trás do balcão. No instante seguinte, a explosão jogou estilhaços e vidros sobre todos. Leon havia desaparecido, e segundos depois, surgiu atrás do polonês, se jogando em seu pescoço para tentar derrubá-lo. Solomon pegou seus dois braços e o arremessou contra a parede.

– Chefe? – Troche entrou no bar, preocupado. – Tudo certo por aqui?

– Está tudo ótimo! – Gólgota interveio, sorrindo. – Venha assistir conosco, Judeu de Ferro.

Anthony disparou pelo bar como um raio, fazendo as mesas voarem para os lados, e se jogou contra Solomon. Os dois rolaram no chão, como duas rochas pesadas, destruindo tudo em seu caminho.

Icabode ajudou Leon a se levantar, e os dois ficaram imóveis, vendo a luta se espalhar para todos os lados. Os lutadores tinham uma velocidade sobrenatural, e ninguém mais naquele lugar tinha condições de se meter no meio.

Solomon agarrou Anthony pela gola e o empurrou contra a mesa de sinuca, quebrando-a no meio. O dono do bar bateu nos braços do mafioso, se desvencilhando de suas mãos, e começou a soca-lo no rosto.

A briga era barulhenta, e Solomon mantinha Anthony no chão. Todos assistiam, ansiosos, quando o polonês se inclinou para cima, com um pedaço de taco de sinuca enfiado em seu peito. Ele recuou, assustado, mas Anthony não perdeu a oportunidade. Ainda deitado, ele chutou a extremidade da estaca, empalando Solomon, finalmente. O polonês caiu para trás, duro como um manequim.

– Puta que pariu! – Gólgota gritou, arrancando a cartola da cabeça. – Rápido, façam alguma coisa!

Rabin, o feiticeiro, levitou pelo bar, estendendo as mãos em direção a Anthony, e uma bola de fogo do tamanho de uma laranja explodiu do nada, fazendo o vampiro cobrir o próprio rosto e correr para longe do corpo.

– Rápido, vamos acabar com isso! – Icabode gritou, e correu com Leon em direção ao mafioso empalado.

Gólgota subiu numa cadeira e começou a pular sobre as mesas e alcançou uma mesa em  frente aos dois. Ele abriu os braços e disse:

– O chefe ta em reunião agora, então é melhor vocês pararem por aí.

– Saia da frente, maldito! – Icabode gritou, avançando em sua direção.

Gólgota mexeu os dedos para ele, sorrindo. De repente, Icabode viu ratos saírem das costas do maníaco, e correrem por seus braços, pela mesa e pelo chão, vindo em sua direção. Ele parou de correr e recuou, surpreso. Eram centenas de ratos, e todos começaram a subir em seu corpo, dilacerando-o com seus dentinhos afiados.

Leon estava parado, vendo Icabode girar, se debatendo, como se estivesse coberto de algo invisível. Ele olhou para Gólgota, e o vampiro disse:

– Agora vamos acrescentar uma pitada de pavor! – Gólgota ergueu os braços de baixo para cima, e repentinamente, Icabode começou a gritar mais ainda, caindo ao chão.

Anthony Ritzo correra para o cantinho do bar, fugindo das bolas de fogo que Rabin arremessava em sua direção. Enquanto isso, Troche alcançava o corpo de Solomon e removia a estaca.

Do outro lado, Leon pegou uma cadeira e a jogou em Gólgota, derrubando-o da mesa. Icabode parou de se debater, mas ele ainda gritava, olhando ao redor com pavor.

– Acalme-se, Icabode – Leon o segurava pelos ombros. – Era apenas uma ilusão! Olhe pra mim, olhe pra mim!

Brad, o bartender, veio da cozinha, atirando com dois revólveres nos inimigos, fazendo Rabin sair voando às pressas. Gólgota esfregava a têmpora cortada pela cadeira, e também fugiu, mancando. Por fim, Solomon começou a se afastar com os olhos arregalados. Ele estava muito ferido e espantado. Troche o acompanhou enquanto saíam pela porta.

Leon olhou para Anthony e o viu acuado em um canto, abraçando o próprio corpo enquanto olhava para o fogo que se alastrava nas mesas ao redor. Ele olhou para baixo e viu Icabode tremendo em seus braços, balbuciando palavras de socorro, e virando os olhos para todas as direções, apavorado.

Brad pegou um balde com água e apagou o fogo, e Anthony finalmente saiu de seu canto, com os olhos vermelhos. Ele se aproximou dos vampiros, olhou o bar destruído, as cabeças de seus homens espalhadas pelo chão e a lastimável situação de Icabode. Ele colocou a mão no ombro de Leon, olhou para Brad e disse:

– O Conselho tem olhos em todos os seus pontos de interesse. Neste exato momento, eles devem estar notificando todos os membros de Nova York sobre nossa derrota, e jogando a culpa sobre nós.

Leon assentiu.

– Precisamos fugir imediatamente.

 

Algumas quadras longe dali, enquanto Troche dirigia o Wraith, com Gólgota ao seu lado, Solomon e Rabin iam conversando no banco de trás.

– Eu fiquei completamente paralisado e vulnerável – Solomon dizia, tocando no buraco de seu peito, conseguindo sentir o próprio coração com o dedo indicador. – Que sensação terrível! Eu fui um tolo, arrisquei tudo e quase fui destruído! Maldito coração! Tão útil em vida, tão desgraçado na não-vida. És o meu Tornozelo de Aquiles!

– Meu senhor – Rabin disse, fazendo um movimento com as mãos, e toda a poeira e sangue no corpo de Solomon evaporou do nada. – Eu faço parte de uma linhagem de feiticeiros. Uma linhagem muito antiga, você sabe disso. Por que não vamos para a minha casa, onde estão todos os meus livros arcanos? Talvez eu tenha algo que possa lhe interessar.

– O que quer dizer, mago?

– Aquiles foi mergulhado de cabeça pra baixo no rio Estige, ficando só com o tornozelo de fora, onde a deusa o segurava. A única parte que não foi protegida pelas águas do rio e, portanto, seu ponto fraco.

– E o que isso tem a ver comigo?

– Talvez eu possa fazer algo que nem os deuses conseguiram. Proteger o seu Tornozelo de Aquiles.

 

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Icabode St. John [10]

Nos capítulos anteriores: Após o infrutífero ataque à propriedade de Solomon Saks, Icabode foi separado de Sunday e Drake, sendo capturado pelo vampiro responsável por aquele setor do Brooklyn. O vampiro Anthony Ritzo o levou até o Conselho, onde estavam os cainitas governantes de Nova York. Icabode revelou que Solomon Saks pretendia criar um exército de vampiros, e em seguida, um dos membros do conselho, Ivanovitch, o levou para matarem o mafioso pessoalmente. Ocorre que ao chegarem lá, foram surpreendidos por Solomon, que já era um vampiro. Ele empalara a Ivanovitch e consumira sua alma, se tornando incrivelmente forte. Icabode foi resgatado por Leon, o prisioneiro de Saks, e ambos foram para o apartamento de Sunday, esperando que encontrassem o detetive desaparecido por lá, coisa que não aconteceu. 

 

Icabode abriu os olhos sem saber se era o dia seguinte. Ele não sonhara. Não se sentia descansado. Ligou o rádio ao lado da cama, e descobriu que se passara mais de doze horas desde que fechara os olhos. A sensação que tinha era de que apenas dera uma longa piscada. Como se seu corpo estivesse…. morto… esse tempo todo.

Seu estômago doía e, e suas mãos tremiam. A fome estava pior do que na noite passada. Ele precisava sair imediatamente para se alimentar, caso contrário, a besta tomaria conta. Olhou para baixo e viu que vestia apenas um par de calças rasgadas. Abriu o guarda roupa de Sunday, e escolheu uma jaqueta de couro, camiseta branca e calças jeans.

Enquanto se vestia, ouviu um barulho de porta vindo da sala. Ele aguçou o seu ouvido e descobriu que Leon conversava com uma mulher, não, eram duas.

Esse relógio é de ouro mesmo? – uma delas perguntou. – Se não for…

Eu não mentiria pra vocês, garotas – Leon prometeu. – E vocês sabem onde moro. Eu não daria um relógio falso a vocês. 

Icabode abriu a porta do quarto e viu o vampiro sentado no sofá, entre duas mulheres de roupas coloridas, com maquiagens fortes, plumas no pescoço e lantejoulas nos ombros. Leon vestia calças largas e uma bata branca.

– Olhe só, Matilda – uma delas disse, olhando para Icabode. – O amigo dele é realmente uma gracinha!

– Ele parece aquele ator que conhecemos na Broadway. Como era mesmo o nome?

– Dean Martin? Sim, a roupa pelo menos é igualzinha à da peça!

– Icabode, está com fome? – Leon perguntou. Em seu olhar, havia um alerta, como se pedisse para ele colaborar.

Icabode viu que Matilda tinha um relógio de ouro na mão. Provavelmente Leon havia encontrado nas coisas de Sunday. Aquilo era furto. Mas a fome não o deixava pensar muito sobre o caso. Ele precisava comer imediatamente, contando que não matassem as prostituas.

– Como vamos fazer isso? – Icabode perguntou, engolindo seco.

Antes que alguém respondesse, a porta de entrada tombou no carpete. Várias pessoas começaram a invadir a sala, todas encapuzadas, com espadas presas às cinturas. Depois, um homem magrelo, de chapéu coco, e pince-nez pendurado no nariz, adentrou o ambiente, olhando ao redor com nojo. Em seguida, uma dama com véu negro escondendo o rosto se pôs ao seu lado. Por último, uma criatura grotesca se enfiou no meio deles. Ela tinha dentes deformados, que atravessavam suas próprias bochechas.

Essa última, que Icabode conhecia como “Juíza”, olhou para as garotas no sofá e apontou seu dedo escamoso para elas.

– São cainitas ou mortais?

– São mortais, excelência – a dama de véu respondeu.

– Matem-nas – a Juíza disse, olhando para o lado.

Um dos homens encapuzados desembainhou a espada e avançou.

– O que é isso? Vocês sabem pra quem nós trabalhamos? – uma prostituta começou a gritar.

– Vocês não vão matar ninguém aqui! – Icabode se pôs entre eles, mas de repente, a dama de véu ergueu a mão em sua direção, e ele começou a flutuar, ficando preso no teto. – Me solte! Parem já com isso! Deixem as garotas em paz!

As prostitutas se agarravam em Leon que estava de olhos fechados, resignado. Elas gritavam ao aproximar do encapuzado. O homem enfiou a espada na barriga de uma e girou o punho vários vezes, perfurando vários órgãos internos. Depois ele foi até a outra e fez o mesmo. Icabode gritava sem conseguir se soltar do teto. Leon abraçou as duas mulheres, olhando para o encapuzado com ódio.

– Por que você não fez o serviço direito? Precisava dar uma morte lenta e cruel a elas? – ele as puxou para si e fechou os olhos.

Elas choravam com desespero. Leon fez suas presas surgirem e mordeu a Matilda, bebendo seu sangue até que ela desmaiasse. Depois, ele fez o mesmo com a outra que olhava para ele, como uma garotinha espantada.

A dama de véu pousou Icabode no sofá, e os encapuzados ao redor sacaram suas espadas, ameaçadoramente.

– Onde está Ivanovitch? – a Juíza perguntou a Icabode. – Ele não nos deu notícias desde ontem.

Ao ver que Icabode tentava controlar sua raiva, Leon interferiu.

– Ivanovitch está morto. Solomon Saks o empalou e consumiu sua alma.

– Mas que loucura está dizendo? – Fermín Pedralbes perguntou, exasperado. – Saks é um vampiro?

– Sim! – Icabode ficou de pé. – O seu amigo Ivanovitch foi um tolo! Ele estava todo confiante, partindo pra cima de tudo e de todos, como se fosse intocável! Mas Solomon nos fez de bobos, a mim e a vocês!

– Você disse que Solomon era mortal! – Fermín o lembrou. Os olhos estavam arregalados. – Isso tudo fazia parte do seu plano! Se livrar de Ivanovitch e fugir do julgamento do Conselho! Acha que iria nos enganar, não é? Mas você não contava com meus poderes telepáticos. Graças ao seu amigo negrinho, nosso prisioneiro, eu descobri onde era o seu refúgio! E agora, para onde irão fugir?

– Se você realmente tem poderes telepáticos – Icabode se aproximou dele. – Então entre na porra da minha cabeça e veja o que aconteceu de verdade! Caso contrário, pare de achar culpados pela sua derrota!

– Minha derrota? – Fermín olhou para a Juíza. – Vai permitir que ele fale assim com um membro do Conselho, excelência? Estripe-o, agora! Eu exijo!

– Não faça isso – a dama do véu negro disse. – Conforme o extraído do nosso prisioneiro, foram eles três quem fizeram com que Solomon se tornasse o que é. Eu sugiro que eles resolvam o problema. Assim que os membros cainitas de Nova York descobrirem o que aconteceu com Ivanovitch, eles procuração culpados. Se nós interferirmos agora, eles pensarão que poderíamos ter feito isso a qualquer momento. Mas se essa responsabilidade não for nossa, não há motivos para levarmos a culpa.

–  Isso – Fermín olhou para ela com admiração. – E também que culpem a Anthony Ritzo. De Green Point a Brooklyn Heights, todo aquele território é dele! Se ele tivesse nos avisado a tempo, isso não teria acontecido. Que eles culpem a Ritzo também! Aquele maldito permitiu que tudo acontecesse bem debaixo de seu nariz. E por sua causa, Ivanovitch está morto!

A dama de véu negro e Fermín olharam para a Juíza. Esta assentiu:

– Eu condeno os réus a uma ordália, cuja missão seja destruir Solomon Saks e cada vampiro ou testemunha mortal criada pelo mesmo. Caso os réus fracassem, sua pena é a morte final, assim como a morte do prisioneiro que vocês conhecem como Capitão Sangrento. E agora vamos até Ritzo. Sabem onde é o bar dele?

– Fica na Quarta com a rua Keap, em frente a um parque – Fermín disse, e se virou para Icabode. – Vocês precisarão se aliar. Ritzo tem muitas armas. O nome do bar é Portão do Inferno – ele se virou e saiu, junto com a Dama do Véu Negro e a Juíza.

O séquito do Conselho de Nova York deixou o apartamento tão subitamente quanto chegaram.

– O que é uma ordália? – Icabode perguntou, ainda exasperado com a visita.

– É uma prova judiciária para provar se alguém é culpado ou inocente. Caso o réu fracasse, ele é considerado culpado – Leon virou o rosto, como se ouvisse algo. – Rápido, precisamos sair daqui. Estou ouvindo sirenes. Certamente alguém ligou para a polícia depois dos gritos – ele olhou para as prostitutas. – Beba tudo o que conseguir. Depois vou levar os corpos pela janela para não acharem que Sunday fez isso.

Icabode se alimentou de Mtailda, plenamente consciente de que estava ingerindo sangue de uma pessoa morta. As tripas da mulher caíram em seu próprio colo, pelo buraco feito com a espada. O sangue ainda vertia pelo vestido e fazia uma poça sobre o vestido.

– Precisamos levar esse tapete sujo de sangue, sofá e os cadáveres para fora daqui – Leon apontou para a sacada. – Eu consigo fazê-los levitar, mas você terá que voar por conta própria. Você tem esse poder, Icabode, e precisa usá-lo agora! Não posso erguer tudo sozinho.

– Certo, leve-as. Eu darei um jeito – Icabode disse, pegando o relógio de Sunday de volta. Leon ergueu as mãos e fez o sofá sair do chão, seguido pelo tapete. Os cadáveres estavam deitados para não caírem. Com muito cuidado, Leon passou tudo pela varanda, e voou atrás das coisas.

Icabode se inclinou sobre o parapeito e viu as viaturas parando em frente ao prédio. Ele fechou os olhos e esperou que seus pés saíssem do chão, mas nada aconteceu. Ele ativou os sentidos aguçados, e ouviu os policiais subindo as escadas do prédio. Vamos, garoto, saia daí! Sunday disse em sua mente. Onde está você? Icabode perguntou, surpreso. Por que não está em casa?

Agora não é hora pra falarmos sobre isso! Sunday ripostou. Saia daí! E Icabode tentou mais uma vez. Ele sentiu uma pressão no centro de seu corpo. Em seguida, sentiu-se sendo puxado para cima. Oscilou sem sair do lugar por mais um tempo, quando ouviu os policiais adentrando o apartamento. Você precisa agir agora! Sunday gritou.

– Foda-se – Icabode não conseguira sair mais que dez centímetros do chão. Então subiu no parapeito e saltou. A queda era alta, e os dados foram rolados. Para sua infelicidade, ele não conseguiu voar. O chão vinha em sua direção quando a queda foi interrompida dois metros acima da avenida, só pra continuar em seguida.

Icabode caiu de peito no asfalto, e alguns carros buzinaram, desviando do caminho. Ele olhou ao redor e se enfiou no primeiro beco que viu. Não conseguira voar, mas amortecera a queda em pleno ar. Isso era um avanço. Parou o primeiro táxi que viu e mandou que fosse para o Brooklyn, na Quarta com a Keap.

Levou quinze minutos para chegar no local. O bar Portão do Inferno tinha janelas temperadas coloridas. Em frente, uma fila de motos ladeavam a calçada, a maioria, Harleys. Nada japonês ou alemão, obviamente. Ele deu o relógio de Sunday ao taxista incrédulo e entrou no bar.

O estabelecimento estava cheio de clientes, tomado por fumaça de cigarro, jukebox alta e luzes coloridas. No balcão, Leon conversava com um homem que Icabode reconhecia da noite anterior, musculoso, vestindo suspensórios e quepe. Era Anthony Ritzo. Eles trocaram olhar, e Ritzo indicou uma porta com a cabeça. Leon reparou que Icabode chegara, e os três foram em direção à porta. Ritzo olhou para um sujeito mal encarado e mandou que cuidasse do balcão.

A cozinha estava cheia de sacos e barris, com legumes, bebidas e cigarros. Um rato fugiu ao vê-los. Ritzo enrolou o tapete do chão, revelando um alçapão escondido. Ele o abriu e mandou que os dois descessem.

Icabode e Leon olharam ao redor, surpresos. O subsolo do Portão do Inferno era um armazém de armas. Ritzo começou abrir caixas e mostrar seus brinquedinhos.

– O Conselho saiu de seu esconderijo no Upper East Side e veio pessoalmente até o meu bar – ele disse, com deboche. – Acho que estão mesmo com medo do polonês.

– Se eles tivessem levado a sério o meu aviso, Solomon Saks poderia estar morto agora. Mas Ivanovitch agiu como se a ameaça não fosse real – Icabode disse, amargo.

– Quem diria que aquele filho da mãe fosse derrubado por um neófito? – Ritzo parou um momento, reflexivo. Depois ele olhou para os dois, ressentido. – Não sei como eles deixaram vocês vivos depois de tudo que fizeram.

– Eles precisam de um bode expiatório – Leon explicou. – Se você faz parte da sociedade, deveria conhecer o modus operandi do Conselho. Quando todos descobrirem que Ivanovitch morreu, a Juíza fará questão de dizer que a culpa é minha e de Icabode, e que tudo isso ocorreu no seu domínio, senhor Anthony.

– Sim, sim – Ritzo o interrompeu, irritado. – Eu sei como as coisas funcionam por aqui. E a culpa de tudo isso é de vocês! – ele fechou os punhos, inconformado.

– A culpa de tudo isso é de Saks! – Icabode o corrigiu. – E se não nos unirmos para impedi-lo, ele ficará mais forte a cada dia. Saks tem dinheiro, armas e capangas.

– Eu sei disso – Anthony apontou para as próprias armas. – O polonês e eu vendemos armas no mesmo território. Nossos homens já trocaram tiros algumas vezes. Mas isso acaba hoje!

– Hoje? – Leon perguntou. – Você quer que o ataquemos hoje? Mas não seria melhor gastarmos um tempo preparando um plano à prova de falhas? Não foi por causa desse impulso que Ivanovitch está morto?

– Eu concordo com ele, Leon – Icabode disse, pegando uma pistola de uma caixa. – O tempo é aliado de Solomon. Acho que sou o único que entendeu até agora que o mafioso é ardiloso e astuto. Ele deve estar articulando coisas maléficas neste exato momento, e quero derrubá-lo antes que continue.

– Mas nós nem sabemos onde ele está – Leon disse, receoso.

– Sabemos sim – Anthony respondeu, erguendo um cinto de granadas ao redor do ombro. – Desde o tiroteio de ontem, tenho homens vigiando a mansão do polonês.

– E quando partimos? – Icabode perguntou, examinando uma metralhadora Thompson.

– Agora – Ritzo tirou uma máscara de carranca da parede e colocou no próprio rosto. – Esse filho da puta vai morrer hoje.

 

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Icabode St. John [9]

Nos capítulos anteriores: Após a missão desastrosa de derrotar Solomon Saks, Icabode foi capturado pelos vampiros que governavam a cidade. Sem saber o paradeiro de Sunday e Drake, Icabode revela os planos do mafioso polonês, alertando os vampiros. Eles enviam Icabode com Ivanovitch, o vampiro mais forte do mundo, para matarem Solomon. Ocorre que os dois não sabiam que o mafioso já se transformara em vampiro e que se alimentara de Anatole, uma criatura antiga. Com as defesas baixas, Ivanovitch foi empalado e consumido por Solomon, que era mais forte do que ele esperava.

 

Icabode assistia a cena, assombrado. Solomon Saks matara Ivanovitch, a Besta do Oriente, e agora possuía um poder terrível. O próximo a ser morto e consumido seria o próprio Icabode, que estava ferido, caído no chão.

Fuja, garoto, fuja! Sunday disse em sua mente.

– Onde você está? – Icabode sussurrou, ainda sem saber como o detetive se comunicava com ele.

De repente, uma figura se materializou em sua frente. Um homem, cobrindo os próprios lábios com o dedo, pedindo silêncio. Ele tinha barba e cabelos sedosos, compridos. Suas roupas eram trapos cheios de sangue. Icabode o reconheceu imediatamente. Era o vampiro que ele libertara da fundição em Green Point. Ele colocou a mão no ombro de Icabode e olhou para Solomon. O mafioso gargalhava, diante do carro que acabara de dividir ao meio. Em seguida, ele olhou para onde Icabode estava e seu olhar ficou perdido. Girou sobre os calcanhares, procurando algo.

– Onde ele está? – ficou repetindo. – Onde está aquele maldito? – gritou.

Você está invisível, garoto, Sunday explicou. Não faça barulho.

Furtivamente, Icabode saiu com o vampiro pelo buraco da sala, e os dois foram para o quintal.

– Você sabe voar, não sabe? – o outro sussurrou.

– Ouvi dizer que estava voando por aí, mas não lembro de nada.

– Se pendure em meus ombros – o vampiro disse com desgosto.

Icabode se agarrou às costas dele, e o chão começou a se afastar de seus pés. Os dois sobrevoavam a quadra, indo para longe da mansão.

– Depois que você fugiu da fundição – o vampiro disse -, eu não vi para onde foi. Fiquei te procurando em todos os cantos do Brooklyn. Você estava irracional, faminto. Eu temi que você saísse por aí fazendo besteira, ou que ao amanhecer, o sol te fulminasse.

– E por que você está tão preocupado comigo? 

– Eu te transformei em um cainita – o outro explicou. – É o meu papel garantir que você sobreviva e que não faça nenhuma besteira… pelo menos até ter autonomia. Meu nome é Leon, e o seu?

– Icabode – ele respondeu, olhando para o pescoço de Leon. Debaixo daquela pele, havia sangue. E Icabode estava com muita fome. – Mas como você me achou?

– Eu consigo ouvir coisas a quilômetros de distância. Posso ouvir bolas de algodão caindo no chão, se estiver muito perto. Quando o tiroteio começou, imaginei que tivesse algo a ver com você. Felizmente, eu estava certo. E agora, pra onde quer que te leve?

Montauk, pensou Icabode, mas não podia ir pra casa, sabendo que Sunday e Capitão Sangrento estavam em algum lugar, em perigo. Então ele disse para leva-lo até à casa do detetive. Só depois lembrou que foi Sunday quem entregou o esconderijo de Leon a Solomon Saks.

– Leon – Icabode disse, enquanto atravessavam o rio. – Eu sei que você conhece o detetive Sunday. Ele estava comigo na fundição. Ele me disse que você era seu informante.

– E onde ele está? – Leon virou o rosto, surpreso. – Ele foi me resgatar?… – ele virou o rosto para frente novamente. – Acabo de lembrar que você foi até lá para me matar. Sunday descobriu que eu fui preso, e decidiu me matar antes que eu causasse algum problema maior.

– Na verdade foi Sunday quem o entregou a Saks – Icabode corrigiu, temendo ser solto vários metros acima do chão. Ele viu que o vampiro virou o rosto novamente, sem dizer nada. – Eu pedi pra ele me entregar o endereço de um vampiro. Ele relutou, mas eu o obriguei. Não foi pessoal.

Leon assentiu.

– Ele fez o certo. Eu mereço mesmo morrer. Todos nós merecemos.

– Mas você é tão diferente dos outros – Icabode disse, perplexo. – Como pode pensar dessa forma?

– Isso é questão de tempo… você verá quando a fome começar a tomar controle do seu… – ele se lembrou de algo. – Você está racional agora. Como fez isso? Como se alimentou?

– Um cachorro… – Icabode se lembrou de quando Anthony Ritzo o empalou na calçada. Tinha o corpo de um cachorro ao seu lado. – Eu acho.

– Você deve estar faminto. Depois falamos sobre Sunday. Precisamos alimentá-lo.

– Esquece. Não vou beber sangue.

– Você vai sim – Leon retrucou. – Se você não beber agora, a besta que há dentro de você, irá lutar contra a fome. Ela tomará o controle de seu corpo, e sua mente ficará inconsciente. Você matará a primeira coisa que estiver em sua frente pra se alimentar. Não subestime a sua fome, Icabode. Eu já subestimei, e as coisas não acabaram muito bem.

– Quais opções eu tenho para não condenar a minha alma? – Icabode perguntou, inconformado.

– Tarde demais, meu amigo – Leon disse, resignado. – Por que acha que não me matei ainda? Além de ser vampiro, ser suicida? O meu lugar está garantido no inferno.

– Você acha que todos eles se preocupam com isso? Os outros vampiros?

– Provavelmente sim. Mas chega um momento onde todos aceitam a sua natureza. Ou você abraça a besta para “viver” nesta não-vida, ou você luta contra ela, e acaba sendo destruído e mandado para o inferno.

– Pelo visto você ainda não fez a sua escolha – Icabode disse, tanto para ele quanto para si próprio, percebendo que sua fome aumentava.

– Escolha? – Leon franziu o cenho. – Não existe tal coisa… olhe só, uma construção embargada. Achamos o nosso restaurante.

– Restaurante? – Icabode olhou para o prédio com mais de dez andares, incompleto e antigo.

– Indigentes, meu amigo, indigentes.

– Tudo bem, mas não precisamos matar ninguém.

Os dois pousaram no terraço cheio de musgo, cocô de pombo, garrafas e latas. O rosto de Leon parecia com a imagem de um Jesus católico, mas ao encarar Icabode, suas presas tornaram o sagrado em profano. Ele tirou sua camisa suja de sangue e fez o sinal para Icabode fazer o mesmo. Ele não queria assustar as presas antes da hora.

– Você tem os mesmos poderes que eu – Leon informou. – Você pode voar, pode ficar invisível e pode ter os sentidos aguçados. Estes últimos não ficam sempre funcionando. Você precisa prestar atenção. Nós entraremos em uma área escura, e você precisa abrir seus olhos malditos.

Icabode olhou ao redor, e piscou várias vezes, tentando ativar o poder. O vento deslizava frio em seu corpo igualmente gélido. Manhattan era como uma cabeça, e os prédios eram os fios de cabelo. Havia milhares deles ao redor, todos pontilhados com janelas acesas, decorados com propagandas da Coca, com marca de cigarro, atrações da Broadway, marcas de bebida, um zepelim da Kodak voando acima de suas cabeças.

Pela janela de um quarto, Icabode viu um asiático colocar uma camisa vermelha. Na mesa em sua frente havia dois incensos acesos, ladeando a foto de um general de seu país. No canto superior da foto, havia o símbolo comunista.

-Uau! – Icabode piscou, percebendo que o quarto estava muito longe dali, e que vira detalhes tão pequenos que nem um binóculo conseguiria revelar. Ele se virou para Leon. – Estou pronto.

Os dois desceram o primeiro lance de escadas, e descobriram um piso abandonado, sem paredes e cheio de lixo. Eles continuaram descendo até os ouvidos aguçados de Icabode ouvirem os primeiros sons. Era um ronco.

 

George discutira com seus pais extremamente religiosos quando ainda era adolescente. Ele fugiu de sua casa no Tennessee e foi viver no litoral. Depois de quinze anos viajando, decidiu ficar em Nova York, onde ficou por mais duas décadas. Os últimos cinco anos de sua vida foram os piores. Ficara desempregado, sem teto e sem dinheiro. Dormindo em vários lugares diferentes. Aquele prédio estava sendo seu lar nos últimos meses. Os outros indigentes tinham jogos completos de panela, isqueiro, garrafas de alambiques e cigarros. Eles se ajudavam sempre que podiam.

Era madrugada e ele dormia profundamente, quando de repente, algo o despertou. Dois homens estavam em pé, encarando-o. Eles não vestiam camisas. Um deles parecia Jesus, e o outro não tinha alguns dedos da mão.

– Não acorde os outros – Jesus dissera. – Eu tenho uma proposta pra você.

– Eu não sou nenhuma bicha – George respondeu calmamente, sem saber se estava falando com um anjo ou com um nóia.

– Nem nós – o jovem respondera com uma careta.

– Deixe-nos beber um pouco de seu sangue, e pagaremos bem – Jesus propusera. – O que acha?

– Isso não é errado? – George perguntou, completamente confuso. Talvez estivesse sonhando.

– Nós poderíamos pegar à força, se quiséssemos – Jesus explicou de maneira ponderada. – Mas nós queremos pagar por isso.

– Nesse caso – George olhou ao redor e viu que estava sozinho. Era um péssimo dia para ficar sozinho no sexto andar. Aquilo não era Jesus, porra nenhuma. Aquilo era um dos demônios que ele ouvia falar nos becos do submundo. – Prometem que não vão me matar… ou me transformar em um de vocês?

– Nós prometemos – o garoto assegurou, incomodado com a pergunta.

– Como querem fazer isso? – George perguntou, ainda deitado.

O que parecia com Jesus ficou de cócoras, e o garoto o imitou. Em seguida, cada um pegou um de seus braços e os levou até suas bocas. Os lábios eram frios e secos. O hálito parecia um sopro invernal. George esperou mordidas doloridas e profundas, mas tudo o que sentiu foi uma leve picada de mosquito, seguida por uma coceira. Seu corpo inteiro foi tomado por aquela sensação, e havia uma certa dormência. Ele sentiu o sangue correr pela virilha, e logo seu membro ficou ereto. A sensação era realmente boa. Ele se sentiu fraco e tonto. Piscou lentamente, e de repente, escuridão.

 

– Ele está bem? – Icabode perguntou, afastando o braço de sua boca com muita relutância. Ele queria continuar bebendo o sangue do mendigo, mas agora estava assustado. – Ele desmaiou?

– Sim, ele está vivo – Leon o acalmou. – Se você prestar atenção, pode ouvir as batidas de seu coração. Mas por hora, a besta não tomará conta de nosso corpo. Podemos procurar mais um indigente.

– Não! – Icabode pediu. – Não podemos simplesmente ir pra casa? Amanhã a gente continua – ele olhava para o homem desmaiado, pálido. O gosto do sangue em sua boca era doce e quente, como um resquício da vida que ele nunca mais teria.

– Por mim, tudo bem – Leon deu de ombros. – Eu também relutei bastante quanto à beber sangue. Mas hoje, decidi que é melhor beber um pouco e não matar ninguém, do que não beber nada, e me tornar uma fera assassina. É melhor você superar essa fase logo.

– Eu irei – Icabode prometeu. – Só não hoje, por favor.

– Claro. Amanhã continuaremos – Leon bateu em seu ombro, com um sorriso. – Antes de partir, precisamos fazer mais uma coisa – ele ergueu o braço do mendigo e lambeu o local da mordida. Os buracos sumiram imediatamente. – Faça isso sempre que se alimentar pra cauterizar a ferida.

Icabode pegou o outro braço e fez o mesmo. No próximo instante não havia marcas de mordidas no mendigo.

– Você disse que iria pagar pelo sangue – Icabode o lembrou, puxando os bolsos vazios da calça.

– Eu menti – Leon respondeu, se aproximando da borda do andar. – Nós dois precisávamos do sangue com urgência, e eu não tenho um tostão furado comigo. Você vai ter que fazer coisas assim a partir de agora. A sobrevivência é uma arte – ele olhou para o céu. –  O apartamento de Sunday é aqui perto. Devemos ir logo. O sol está prestes a nascer.

– Espero que ele esteja lá – Icabode se pendurou novamente no vampiro, e os dois saíram do prédio. – Assim que o encontrarmos, podemos ir atrás do Capitão Sangrento.

– De quem?

– Era o nosso terceiro mosqueteiro – Icabode explicou. – Uns vampiros o capturaram.

– Quem? – Leon perguntou, sobrevoando alguns prédios.

– Uns tais de Fermín, Anthony Ritzo, uma juíza, e Ivanovitch. Este último foi morto por Sacks.

– Sacks matou a Besta do Oriente? – Leon quase gritou. – Se você conhece o Conselho de Nova York, então já está mais envolvido à não-vida do que eu esperava.

Os dois pousaram na sacada do apartamento de Sunday, e adentraram o imóvel, mas o detetive não estava lá. Em seguida, eles isolaram o local contra a luz solar, e apagaram.

 

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Icabode St. John [8]

Nos capítulos anteriores: O paradeiro de Drake Sobogo era desconhecido desde que Anthony Ritzo o capturara. Sunday também não era visto desde a derrota na fundição da máfia. Icabode estava sendo julgado pelo Conselho de Nova York, onde os vampiros burocratas diziam ter toda a autoridade. Após ele revelar os planos de Solomon Saks de se tornar vampiro para governar a cidade, o Conselho decidiu caçar o mafioso. Enviaram Icabode e Ivanovitch, o vampiro mais forte do mundo para se livrarem de Saks. Ao chegarem na mansão, Ivanovitch matou todos os seguranças e avançou sobre o mafioso, mas Saks os enganara, empalara o vampiro e atirou em Icabode. O mafioso revelou que já havia sido transformado, e em seguida consumiu a alma de Ivanovitch, e ficou super poderoso. Antes que matasse Icabode, descobriu que o garoto não estava mais lá. 

 

Alguns dias atrás, Solomon Saks fora chamado por seus homens até um de seus galpões, pois algo acontecera. Havia um conversível batido no interior do depósito, com o motorista morto. E no chão, um cadáver estava coberto por um lençol. O capanga ao lado puxou o lençol e Solomon viu que o morto estava carbonizado, e tinha uma estaca no coração.

– O que está acontecendo aqui? – Solomon perguntou.

– Senhor, este aqui é o Rabino – um capanga apresentou um homem de roupas informais, cheio de tatuagem e colares.

– Eu não sou exatamente um judeu praticante – Solomon respondeu, olhando para o novato, sem paciência.

– Eu não sou exatamente um rabino – o outro respondeu, mostrando os colares com pingentes de várias crenças. – Estou mais para feiticeiro. O Gólgota aqui me chamou para explicar a situação – ele apontou para um dos capangas.

– Por que você trouxe um forasteiro para o meu galpão, Gólgota? – Solomon olhou para o capanga de cabelos e barbas encaracolados.

– Acredite em mim, chefe. Você precisa de alguém como o Rabino para explicar essa loucura – o capanga sorria de forma demente. Ele foi até o cadáver carbonizado e arrancou a estaca de seu coração.

O corpo começou a se mover, estendendo os braços para Gólgota, enquanto este sorria, dando tapas nas mãos do defunto. Os caninos que saíam da boca do cadáver eram compridos, e seus olhos, vermelhos. Rabino ficou de cócoras ao lado de Anatole, e ficou passando a mão diante de seu rosto, provocativo.

– Senhor Saks, isso é um vampiro. E pelo grau de queimadura, ele deveria estar morto. Acho que temos uma criatura antiga aqui. Se você quiser leva-lo para um lugar protegido, podemos estuda-lo. Seu sangue tem propriedades muito especiais para o organismo humano.

– Quem fez isso com ele? – Solomon olhava com espanto para Anatole.

– É um garoto, Icabode – Gólgota respondeu, limpando a baba do canto da boca. – Ele está na enfermaria. Ele viu nossas armas e tudo mais, quer que demos um fim nele? – ele passou o indicador pelo pescoço.

– Quem quer que seja – Rabino pegou a estaca manchada com o sangue do coração de Anatole. – Ele sabia o que estava fazendo. Se eu fosse você, faria umas perguntas antes de se livrar dele.

– Você consegue mesmo estuda-lo? – Solomon perguntou para Rabino. – Será que ele tem escapatória?

Rabino sorriu pra ele, ansioso.

 

Nos dias seguintes, Solomon acompanhou os estudos de Rabino acerca do vampiro. Anatole recuperou a consciência e se regenerou plenamente. O feiticeiro garantiu que ele estivesse o tempo inteiro amarrado e cercado por cruzes. Solomon assistia tudo com fascínio. Em sua frente estava o segredo para a imortalidade.

Somente depois ele foi conhecer Icabode. O garoto convidara Sunday, o expert em vampiros, e aparentemente eles sabiam do paradeiro de outras criaturas como aquelas. Eles se uniram e foram atrás do esconderijo de um vampiro. Solomon o capturou e dispensou a Icabode e Sunday. Agora ele tinha dois vampiros cativos, e cada um deles tinha habilidades sobrenaturais diferentes.

Rabino explicou que assim que Solomon virasse um deles, ele poderia absorver os poderes dos vampiros cujas almas ele consumisse. O processo parecia ser simples. Bastava ingerir completamente o sangue do outro vampiro, que a alma viria junto, assim como seus poderes.

Não era seguro manter os dois prisioneiros no mesmo lugar, então Solomon deixou Anatole em seu bunker subterrâneo, e Leon na fundição de Green Point, ambos cercados por crucifixos, pois aparentemente a fé cristã tinha bastante poder sobre eles.

Acompanhado de Rabino e Gólgota, Solomon decidiu se transformar. Eles cortaram o seu pulso e o penduraram de cabeça para baixo para deixa-lo exangue. Depois tiraram uma gota de sangue do vampiro de Green Point e a pingaram em sua língua. Quando Solomon acordou, ele estava preso no banheiro, cercado de galinhas mortas que foram usadas para saciar sua primeira fome.

Rabino e Gólgota ficaram maravilhados e pediram para também serem transformados, mas Solomon disse para esperarem. Depois, ele foi até o bunker e mandou colocarem quadros com imagens de cruz no meio do cômodo, todos virados para Anatole. Solomon ficava atrás desses quadros, em segurança.

– Por que você não pediu para eu transforma-lo? – Anatole perguntou, prestativo. – Eu poderia fazer isso pra você. Eu tenho séculos de idade. Minha força é muito maior do que qualquer vampiro de Nova York.

– Do que você está falando? – Solomon olhou para ele com desprezo. – Acha que eu me tornaria cria de um negro? Você deve estar louco!

– Então me dê outra tarefa – Anatole pediu, engolindo o orgulho. – Faço qualquer coisa em troca de minha liberdade.

– Liberdade? – Solomon sorriu com deboche. – Você é a minha melhor carta na manga. Por que eu deixaria você ir?

– Diga-me, se eu tirasse esses quadros agora – Solomon disse, tocando na parte de trás da parede de cruzes. – Sua força voltaria ao normal, não voltaria? Quão forte você é?

– Muito – Anatole assegurou. – E eu poderia ensiná-lo a ficar assim.

– Você conseguiria quebrar uma parede com um soco?

– Facilmente – Anatole sorriu pra ele. – Solte-me e te mostro como fazer.

– Ensinar pra quê, se posso apenas consumir sua alma?

Anatole arregalou os olhos.

– Eu ficaria incrivelmente forte, não é? – Solomon perguntou, fechando os punhos, pensativo.

 

Não se passaram dois dias depois dessa conversa quando Solomon recebeu a ligação de que estavam invadindo a fundição. Era Icabode, Sunday e um homem negro. Solomon mandou que Troche protegesse ao vampiro. Poucos minutos depois, o Judeu de Ferro ligou, avisando que Icabode era um vampiro, e que fugira com o negro. E o prisioneiro havia fugido. Irritado, Solomon mandou que Troche voltasse à mansão imediatamente.

– Eles virão até mim – disse ele, e mobilizou os guardas da mansão para ficarem em alerta. Depois, foi até o bunker.

– Parece que sua hora chegou – declarou a Anatole, atrás dos quadros. – Eles virão me matar.

– Então me solte! – o vampiro pediu. – Eu posso ajudá-lo!

– Você vai me ajudar, sim. Mas não irei te soltar.

– Você precisa de aliados, Saks! Sozinho, você nunca irá vencer o Conselho de Nova York.

– Você está certo. Eu já estou em negociação com alguns aliados. Mas você não está entre eles. Como já disse, tu és minha carta na manga.

O barulho de tiros veio pela portinhola do bunker. Solomon fez um sinal para que seus capangas seguissem com o plano. Alguns deles foram até Anatole com estacas nas mãos.

– Eu posso ser muito útil! Sei de tantas coisas que você não iria acreditar.

– Eu sei que você sabe – Solomon respondeu com as mãos para trás. – E eu gostaria muito de ouvir sobre elas, mas infelizmente não temos tempo. Terei que usá-lo como meu último recurso.

Anatole chorou quando os capangas o empalaram direto no coração. Em seguida, eles derrubaram a parede de quadros, liberando o caminho para Solomon. Ele se aproximou e bebeu todo o sangue do vampiro, sugando até sua alma, enquanto os capangas subiam para enfrentar os invasores. Depois, o corpo de Anatole se desintegrou em um montículo de cinzas.

Solomon sentiu as veias de seu corpo pulsarem, e seus músculos bombearem. Ele sentia o poder percorrer o seu corpo, mais ainda do que quando sentira ao despertar como vampiro pela primeira vez. Anatole era poderoso, e agora seu sangue se misturara ao corpo do polonês. Ele tocava o próprio rosto, maravilhado. Controlou-se para não sair quebrando tudo ao redor. A tentação de explorar seu novo poder era grande, mas ele precisava lidar com os invasores.

– Você terá tempo de sobra para testar sua nova força – disse para si mesmo. Então pegou uma pistola e uma estaca e os guardou em seu roupão.

A portinhola do bunker dava para dentro de uma sala da mansão. Ele subiu as escadas para o segundo andar e encontrou com Gólgota, Rabino e outro capanga.

– Chegou a vez de vocês se tornarem imortais – Solomon declarou. – Façam os invasores pensar que nossa defesa é fraca. Deixe-os baixarem a guarda. Quando nos vermos novamente, vocês serão divindades.

Rabino assentiu, e Gólgota riu, ansioso. O outro capanga sentia apenas medo, mas os três foram em direção aos invasores. Solomon aguardou e ouviu o último tiroteio. Seus homens estavam todos mortos. Agora é a minha vez de agir, pensou, surgindo na galeria de sua sala de estar. Icabode e um vampiro corpulento estavam no térreo, esperando-o. Ele fez questão de descer, repassando o plano em sua mente.

Ele iria sacar sua pistola para trazer a atenção dos dois adversários pra ela, enquanto com a mão esquerda, iria enfiar a estaca no peito do grandão. Assim que chegou a hora, ele sentiu o sangue de seu corpo inteiro se mover com força para o braço esquerdo. Suas pernas ficaram bambas e ele ficou tonto. Sentiu os lábios secarem, e usou a maior parte do sangue para fazer um simples movimento. Se aquilo desse errado, ele seria morto, sem dúvida.

Sacou a pistola, e como esperava, o vampiro se jogou contra ela, erguendo-a para cima. Solomon puxou a estaca do roupão e a enfiou no peito do outro. No início, houve grande resistência. Ele achou que iria falhar, mas o sangue que ele gastara para aquela ação, mais a força sobrenatural de Anatole fizeram a diferença. Seus bíceps ficaram cheios de veias, e cinco vezes maiores. Seus dedos seguraram firmes a estaca, e ela penetrou a pele pétrea do vampiro. Os olhos de Ivanovitch ficaram molhados, e a ponta de madeira atravessou seu coração.

Eu estou fraco e posso cair a qualquer momento, e Icabode irá me destruir, Solomon pensou, deixando o vampiro paralisado em sua frente. Ele puxou a pistola, deu um passo para o lado e atirou várias vezes contra o garoto. Icabode caiu no chão, terrivelmente ferido.

O plano de solomon funcionara, e ele tinha mais duas fontes de vitalidade vampírica para consumir. Icabode e o vampiro corpulento. Com eles, ele teria ingerido a alma de três vampiros, e isso já lhe daria a força necessária para enfrentar a maioria dos cainitas de Nova York.

Para não perder tempo, Solomon mordeu o pescoço de Ivanovitch e bebeu todo o sangue, até sentir sua alma adentrar seu corpo. No fim, o grandalhão parecia uma grande ameixa com braços e pernas.

Em seguida, Solomon se sentiu a força e o poder correrem de volta em seus músculos, e ele sabia que era invencível. Foi até o seu carro que por algum motivo estava no meio da sala de estar, e o partiu em dois. Estou terrivelmente forte! Ele queria gargalhar, e estava ansioso para consumir a alma de Icabode também. Aquela sensação era boa, e ele estava ficando viciado nisso. Mas ao olhar para o lado, o garoto havia sumido.

Procurou desesperadamente por ele, mas nunca o achou. Troche chegou logo depois, e Solomon disse para ajuda-lo a levar os corpos para o bunker.

– O sol vai nascer daqui a pouco – Solomon disse ao Judeu de Ferro depois de colocarem o último corpo no bunker.  – E a polícia virá antes disso. Você precisa dizer a eles que estou em uma viagem, incomunicável. Reúna alguns homens e diga que eles trocaram tiros com bandidinhos que tentaram assaltar a mansão. Diga que os delinquentes fugiram assustados – ele girou a mão, como se não tivesse importância.

– E o carro na sua sala de estar? – Troche perguntou, olhando para o buraco na parede. – O que devo dizer?

– Se você quiser ser meu braço direito, terá que ser criativo e independente – Solomon rosnou para ele. – Se vire! E amanhã, ao anoitecer, leve comida ao bunker.

Solomon desceu a escada do bunker e fechou a portinhola. Havia mais de quinze cadáveres de seus capangas no centro. Ele sugou o sangue de todos eles, deixando-os completamente secos. Em seguida, fez um corte no braço e pingou uma gota na boca de cada um. Não tinha tempo de pegar animais para que eles se alimentassem ao acordar, e provavelmente a loucura da fome os fariam atacar uns aos outros.

– Que a lei do mais forte me dê os melhores – Solomon disse, se trancando em um quarto de metal.

No início da noite seguinte, ele abriu a porta e olhou ao redor. Havia tripas e pedaços humanos em todas as direções. A batalha fora sangrenta, e apenas dois sobreviveram. Rabino e Gólgota se viraram para ele, instintivamente. Ao verem seu mestre, ambos curvaram a cabeça em submissão. Seus olhos ainda estavam levemente vermelhos.

A portinhola abriu e Troche desceu. Solomon olhou para os três, todos caminhando sobre restos mortais, e disse:

– E assim começa a nova ordem de Nova York. Eles serão meus súditos, e eu serei seu rei. E vocês, meus caros – Solomon olhou para os três, mostrando um sorriso -, serão os príncipes desta cidade.

 

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Icabode St. John [7]

Nos capítulos anteriores: Drake Sobogo era o único sobrevivente dos três que invadiram o prédio da máfia, para matar o vampiro prisioneiro. Enquanto Drake tentava sobreviver, Troche, o judeu com dentes de ferro o perseguia. No último instante, Icabode surgiu, com olhos vermelhos e presas na boca. O vampiro cativo o transformara para que não morresse completamente. Icabode se agarrou em Drake e os dois voaram para longe do prédio, mas eles lutavam sobre as ruas do Brooklyn, pois naquele momento eram caça e caçador. Icabode estava faminto e irracional. Um vampiro misterioso surgiu do nada e capturou a ambos. Quando Icabode recuperou a consciência, se viu em um julgamento vitoriano, cercado de vampiros.

 

Não faça isso, a voz de Sunday viera em sua mente. Icabode não se lembrava de nada sobre o inferno, mas vira com os próprios olhos o detetive se jogar pela janela, rumo à morte. Como ele estava ouvindo sua voz?

Na sala, havia cerca de dez vampiros, alguns escondidos nas sombras. Mas mesmo assim, Icabode se levantara em desafio, declarando-se um caçador de vampiros. Era em horas assim que seus valores eram testados. Morrer como um herói, ou se curvar ao mal?

Ivanovitch socou a mesa, seguido por uma gargalhada. Ele era imenso, barbudo e cabeludo. Seu dedo era mais grosso que uma linguiça, e ele o apontou para Icabode.

– Esse neófito tem colhões! Ele vai morrer, eu sei, mas ganhou meu respeito!

– Não se eu matar a todos vocês primeiro – Icabode disse com pouca convicção. Não fazia ideia de como sair daquela situação.

– Matar a todos nós? – Ivanovitch cruzou os dedos das mãos diante do rosto, curioso. – E como você faria isso?

Icabode ficou em silêncio, sem saber a resposta. De repente, uma ventania fez as cortinas esvoaçarem, e Ivanovitch aparecera um palmo em sua frente.

– Você certamente nunca ouvira falar sobre Ivanovitch, a Besta do Oriente – o vampiro disse, analisando a feição de Icabode. – Se tivesse ouvido falar de mim, saberia que sou o vampiro mais forte do mundo.

– Supostamente – Fermín o corrigiu. – Você é apenas o mais forte dos vampiros conhecidos. Obviamente existem centenas de outros que o venceriam, mas não são tão exibidos.

– Que eles fiquem com o título de “vampiros desconhecidos mais fortes” – Ivanovitch respondeu, olhando sobre o ombro. – Eu me contento com o título que importa de verdade.

– Antes de me tornar essa aberração – Icabode olhou para as próprias mãos -, quando ainda era um mero mortal, eu matei um de vocês. Só não matei o segundo por misericórdia. Agora que tenho o auxílio de forças sobrenaturais, sou capaz de muito mais.

– Diga-me, você é capaz de fazer isso? – Ivanovitch bateu palmas, e um estampido ressoou pela sala, agudo, com uma lufada forte que fez Icabode cambalear. O vampiro riu. – Eu lhe derrubaria com um estalar de dedos, literalmente – ele ergueu a mão em posição de um estalo. – Dependendo da força que eu usar, posso estourar seus tímpanos – ele encostou os dedos na testa de Icabode. – E se eu fizer isso bem aqui, esmago sua cabeça só com o coice do meu polegar.

A voz da Besta do Oriente era ameaçadora, e Icabode temeu. Sabia que não tinha chance alguma contra ele. Talvez haja, pensou, lembrando-se do crucifixo em seu peito. Suas mãos puxaram a corrente e ele a ergueu. Ivanovitch baixou os olhos para o pingente. Em seguida ele o arrancou do pescoço de Icaobode e o analisou de perto. Então, o jogou boca adentro, e o mastigou lentamente.

– Como você… – Icabode gaguejou, espantado com a cena.

– Você é um de nós agora – Ivanovitch disse, cuspindo os pedaços de metal no chão. – Sinto a sua fé como um aroma distante levado pelo temporal.

– Pare de brincar com a comida, senhor Ivanovitch – disse a juíza, uma criatura de formas animalescas, pontudas e grotescas. – Vamos aos votos?

– Claro, vossa excelência – respondeu o vampiro, voltando para o seu lugar.

– Antes de votarmos – Fermín disse, erguendo um dedo. – Gostaria de voltar a uma afirmação do acusado. Você disse que o mafioso Solomon Saks mantém um vampiro preso. Por quê?

– Ele pretende criar um exército – Icabode respondeu prontamente. – Saks pretende se tornar um vampiro, assim como seus soldados, com o propósito de tomar o controle da cidade, tanto do mundo mortal quanto dos vampiros.

– Ele está mentindo – Ivanovitch disse, incerto.

– Não – pela primeira vez, a senhora de preto, de rosto coberto por um véu, falou. – Ele diz a verdade. Senhor Ritzo, Solomon Saks vive em seu distrito, correto?

– Sim – Anthony Ritzo respondeu, segurando os suspensórios. – Ele é o empresário mais rico do Brooklyn, e um dos mais poderosos de Nova York.

– Então ele tem esse poder de nos incomodar? – Fermín perguntou.

– Se todos os homens que trabalham pra ele, se tornarem cainitas, sim, com certeza – Ritzo respondeu, preocupado.

– Eu resolvo isso – Ivanovitch deu de ombros. – Temos algumas horas antes do amanhecer. Eu dou um pulinho na casa desse cara e arranco seu coração, assim – ele fez o sinal com o polegar e indicador puxando alguma coisa.

– Vossa Excelência? – Fermín olhou para a vampira no canto da sala. – Eu não tenho nenhuma objeção.

– Muito menos eu – a senhora de preto acrescentou.

– Que seja – a Juíza respondeu, olhando a Ivanovitch. – Faça isso. E leve o neófito com você. Faça-o dizer tudo que sabe, inclusive o paradeiro desse vampiro que é refém de Saks, e traga-o junto. Depois votaremos sobre o futuro dos dois.

– Entendido, chefa – Ivanovitch foi até Icabode, segurando-o pela mão e o puxando em direção à sacada.

– Nós dois não conseguiremos fazer isso sozinho! – Icabode relutou. – Eu já tentei e foi um desastre! Ele tem um exército, mais o Troche, um cara de metal…

– Você não confia em mim, confia? – Ivanovitch perguntou, e subiu no parapeito da sacada. – Senhor Ritzo, endereço?

– Brooklyn Heigths, na Furman com Old Fulton. A mansão fica à beira do rio, colada à Brooklyn Bridge.

– Do lado do carrossel?

– Do outro.

– Saquei – Ivanovitch disse antes de saltar.

Icabode foi puxado de repente, centenas de metros acima do asfalto. Os dois aterrissaram no terraço do prédio à frente. Em seguida, Ivanovitch pulou novamente, e os dois foram em direção a outro prédio mais baixo. Como se estivessem em um Grand Canyon de concreto, eles saltavam sobre os abismos colossais de Manhattan, de prédio em prédio. Icabode era levado sob a força bruta da Besta do Oriente. Isso continuou até que chegaram ao chão.

– Vou te ensinar a fazer as coisas na surdina – Na velocidade de um raio, Ivanovitch começou a correr, passando por becos e túneis, sempre por caminhos sem luz e sem testemunhas.

De repente, Icabode percebeu que eles corriam sobre o rio, debaixo de uma ponte monumental, com cabos quilométricos e arcadas gigantescas. Era a Ponte do Brooklyn.

 

Ao chegar do outro lado do rio, Ivanovitch saltou pela última vez, levando os dois a caírem em uma propriedade arborizada.

– Esse é um belo quintal – disse o vampiro olhando ao redor.

No centro, havia uma mansão, e outras casinhas menores ao redor. Poloneses armados vigiavam todos os cantos da propriedade. Ao lado, jazia um carro elegante. Icabode supôs que Solomon Saks devia estar em casa.

– Acho que estamos no lugar certo – Ivanovitch disse, começando a andar em direção à mansão.

Os primeiros seguranças os avistaram, e começaram a gritar, erguendo suas armas. Ivanovitch se colocou na frente de Icabode.

– Fique atrás de mim. Você não pode morrer ainda.

– Se faz tanta questão – Icabode respondeu, se escondendo atrás do brutamontes.

Os poloneses se aproximaram, dando ordens e mirando as armas. Ivanovitch esperou em silêncio, com os braços erguidos. Assim que eles chegaram perto o suficiente, o vampiro agiu. Rapidamente, ele correu, fazendo uma meia lua, com o braço estendido na direção dos homens. Suas garras cortavam os pescoços dos guardas enquanto ele passava em suas frentes. No fim, todos caíram, agonizando. Demorou alguns segundos antes que o último morresse de fato.

Ivanovitch tirou um lenço do bolso e limpou sua mão coberta de carne, sangue e tendões. Ele olhou para Icabode e o lembrou:

– O vampiro mais forte do mundo.

Os dois se viraram em direção à mansão, e um dos guardas que assistira a cena, se virou e trancou a porta dos fundos. Ivanovitch deu de ombros e foi em direção ao carro. Ele ergueu o veículo com uma mão e o arremessou, abrindo um buraco na parede da mansão.

– Quando Deus fecha uma porta, eu abro um buraco.

O segurança atirou, descarregando sua Thompson no corpo de Ivanovitch. O vampiro agarrou um cadáver e o arremessou, acertando o segurança em cheio. Não havia mais ninguém em seu caminho. Os dois vampiros adentraram a sala, decorada com símbolos hebraicos, móveis caros, pedaços de parede no chão e um carro de cabeça pra baixo.

Três poloneses surgiram no andar superior e começaram a atirar. Icabode se jogou atrás do sofá, mas Ivanovitch ficou parado. Em seguida, ele abriu os braços e mostrou as presas, ameaçador como se fosse o próprio diabo. Os poloneses recuaram e saíram correndo, apavorados.

Em seguida, quando o silêncio se fez completo, uma voz surgiu. Icabode a reconheceu. Era Solomon Saks. O velho de postura invejável e longas barbas e cabelos brancos surgiu no topo da escada. Ele vestia um roupão de seda, negro.

– Boa noite, senhores. Como se já não bastasse o prédio de Green Point, estou recebendo visitas em minha própria casa. A mãe de alguém esqueceu de ensinar boas maneiras.

– Solomon Saks? – Ivanovitch perguntou. Sua voz abalou as estruturas da mansão.

– O próprio – Saks começou a descer a escada, não demonstrando ter medo. – E o senhor, quem seria?

– Aquele quem vai te devorar.

– E eu – Icabode disse, saindo de trás do sofá. – Lembra de mim?

– Ora, nos encontramos de novo – Solomon olhou para Icabode com surpresa. – Parece que você aperfeiçoou suas amizades – Em seguida, ele olhou para Ivanovitch. – Depois de tudo o que você fez em minha casa, irei mata-lo lentamente. Não hesite em fazer o mesmo comigo se tiver a chance.

– Pode deixar. Gosto de saborear minha comida. Não será a primeira vez que como carne polonesa.

– Camarada russo, sua provocação é muito empobrecida. Ela não me afeta em nada – assim que chegou ao térreo, Solomon parou.

– Faça isso rápido – Icabode disse ao vampiro. – E depois precisamos resgatar o vampiro que Solomon prendeu.

– Nós temos tempo suficien… – antes que Ivanovitch terminasse a frase, Solomon abriu o roupão e sacou uma pistola.

Ivanovitch se lançou sobre ele, erguendo a arma pra cima.  Icabode ficou assistindo a cena, em silêncio. As costas de Ivanovitch cobriam tudo, e ele não sabia se Solomon já estava morto. O vampiro estava parado, e Icabode achou que ele devia estar bebendo do pescoço do polonês.

“Iriei mata-lo lentamente. Não hesite em fazer o mesmo comigo se tiver a chance”, foram as palavras de Solomon, e Ivanovitch provavelmente estava aproveitando o momento.

Icabode franziu o cenho ao ver algo se movendo no casaco do vampiro. Algo começou a se projetar em suas costas, quando de repente um objeto pontudo, banhado em sangue rasgou seu casaco. No momento seguinte, Solomon deu um passo para o lado e atirou várias vezes no jovem. Icabode caiu no chão com vários buracos no peito.

Ele tentou se levantar, mas estava muito ferido. Olhou para estaca em Ivanovitch e não acreditou.

– No momento que eu ergui a arma – Solomon disse, olhando para Ivanovitch -, eu sabia que você iria direto na minha mão. Ela foi apenas um chamariz enquanto eu sacava a estaca com a outra e te empalava. Seu amigo ali conviveu comigo

alguns dias –apontou para Icabode. – Ele deveria saber que eu sou canhoto.

Solomon apertou o bíceps de Ivanovitch, admirado.

– Nenhum músculo é tão forte quanto o cérebro – ele olhou para Icabode e sorriu, mostrando as presas vampirescas.

– Oh não, você é um… – Icabode disse, surpreso.  – Você é um vampiro!

Solomon virou a cabeça e mordeu o pescoço de Ivanovitch, e começou a beber seu sangue. Icabode começou a se arrastar, mas sentia muita dor. Nunca chegaria a tempo.

Se ele beber da alma de outro vampiro, ele absorverá seus poderes! Sunday disse em sua mente. Você precisa pará-lo.

– Eu não… eu não consigo – Icabode tombou, observando Solomon drenar todo o sangue de Ivanovitch.

Em seguida, o brutamontes caiu no chão, ressecado, como se fosse uma grande ameixa. Ao seu lado, Solomon se retorcia, e com o roupão aberto, Icabode percebeu seus músculos dilatando sob a pele. As veias do polonês se engrossaram, e ele estava se transformando em algo mais. Em seguida, o velho se recompôs. Seus olhos estavam vermelhos, as presas, para fora. Ele foi até o carro no meio da sala, colocou as duas mãos sobre o veículo e com um movimento brusco, o repartiu em dois, como se fosse feito de papel.

Parece que temos um novo vampiro mais forte do mundo, Icabode pensou, aterrorizado com a cena.

 

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Icabode St. John [6]

Nos capítulos anteriores: Icabode, Sunday e Drake invadiram o prédio da máfia polonesa para matar o vampiro antes que ele transformasse Solomon Saks em um deles. Mas a missão falhara, e Icabode morrera, logo depois de soltar o vampiro, pois descobrira que ele não era mal. Icabode acordou no inferno, onde foi informado que seu pai vendera sua alma para um senhor do inferno, e por isso, ele fora pra lá. Após uma fuga desesperada, ele se encontrou com Sunday, e ambos correram até um abismo que os separava do paraíso. No último instante, uma força invisível puxou Icabode pra cima, e Sunday se agarrou em suas correntes e foi puxado junto. 

 

O Capitão Drake Sobogo estava cercado no primeiro andar. Mandara Sunday e Icabode terminarem a missão enquanto ele segurava os inimigos. O boxeador pegou uma barra de ferro à vista e acertou a cabeça de Troche com ela. O tinido metálico fez Drake perceber que o judeu tinha placas de ferro debaixo da pele.

– Agora é minha vez – disse o Judeu de Ferro antes de chutar o estômago do outro.

Drake atravessou a sala sem tocar no chão. Suas costas acertaram a parede com força, fazendo todo o ar sair dos pulmões. Antes que pudesse se preparar, Troche já estava o segurando pela gola e dando vários socos em seu rosto. Quando o julaco parou, Drake cuspiu sangue em seu rosto.

– Terminou? – o boxeador era conhecido como Capitão Sangrento nas lutas clandestinas. Um dos principais motivos disso, é que ele podia ficar coberto com o próprio sangue, mas nocaute nunca era uma opção. – Sou eu novamente.

Drake começou a socar o rosto duro de Troche, afastando-o. O outro se assustou com a ferocidade do homem, mas logo em seguida, reagiu. Os dois começaram a trocar golpes em uma velocidade surpreendente. Quando o Capitão Sangrento percebeu que não iria ganhar aquela, decidiu recuar.

Espero ter ganhado tempo o suficiente pra vocês, pensou, esperando que os outros dois conseguissem matar o vampiro. Em seguida, jogou seu corpo para trás, em direção à janela. Ele estava um andar acima do chão, mas o impacto foi pior que os socos que acabara de levar. Demorou um segundo para acertar o chão. O Judeu de Ferro colocou a cabeça pela janela e os dois se encararam. Em seguida, Troche sumiu dentro do prédio.

Tiros e clarões continuavam a vir pelas janelas, e Drake começou a rastejar para longe. Alguns segundos depois, uma janela explodiu, e dois corpos despencaram do terceiro andar. Sunday e Troche acertaram o chão com um baque seco. E para a surpresa de Drake, o Judeu de Ferro foi o único a se levantar. O homem olhou para cima, esperando que seus homens continuassem a perseguição. Depois, ele se virou para Drake, e sorriu.

– Vocês são muito estúpidos – Troche disse, vindo em sua direção.

Drake se levantou com dor, e ficou em posição de luta. Ele iria morrer, obviamente, mas iria lutando.

– Corta essa merda e venha logo! – gritou. – Vou dar uma surra nesse seu traseiro polaco.

Troche partiu pra cima. Mas nenhum de seus golpes acertava o alvo. Drake se esquivava habilmente, revidando sempre que possível. Ele era um boxeador profissional, mas seus oponentes não eram feitos de ferro. Enquanto Troche começava a se cansar, Drake sentia os ossos das mãos doerem, vendo que o adversário não sentia dor alguma.

Nessa hora, Troche o surpreendeu e chutou seu joelho. Drake caiu de lado, e o Judeu de Ferro colocou o pé sobre seu pescoço. Ele sorriu, vendo o boxeador socar sua perna.

– Por fim, é a minha vez – o Judeu disse, pressionando o pescoço de Drake.

Um barulho em suas costas fez os dois virarem a cabeça. Um corpo caiu do último andar. Era Icabode. Drake viu o corpo do jovem, sem vida, no chão. Troche começou a gargalhar satisfeito. O boxeador se sentiu tonto, pela falta de ar. Todos nós morremos.

Mas um vulto chamou a atenção, pelo canto de olho. Ele não sabia o que era, mas vinha em sua direção. Troche foi arremessado para longe. Drake sentou, vendo Icabode sobre o corpo do Judeu de Ferro. O jovem mordia o homem, ferozmente. Troche girou, derrubando-o. Icabode rolou de volta pra cima dele, mordendo-o novamente.

Tem algo errado com ele, Drake notou, tentando ficar de pé, e gritou:

– Ei!

Icabode se virou repentinamente. Seus olhos eram vermelhos, e seus caninos, compridos. Ele era um vampiro sedento de sangue. Uma besta sem consciência.

– Ah não, garoto – Drake suspirou, recuando.

Icabode avançou em sua direção, agarrando-o e voando pelo terreno cheio de materiais de construção. Drake tentava segurar a cabeça do jovem que tentava mordê-lo freneticamente. Os dois subiram vários metros acima, e o boxeador gritava para que ele acordasse, em vão.

Antes que se afastassem mais do chão, Drake usou a única arma que tinha. Seus socos não foram tão precisos naquela confusão, mas foi o suficiente para atordoar o animal em fúria. Icabode despencou, e os dois atravessaram copas de árvores, e caíram em um parque no centro do Brooklyn. Drake se levantou e tentou correr, mas com um golpe de Icabode, ele atravessou a rua, acertando uma parede de tijolos. O boxeador ficou sentado, vendo o vampiro voar em sua direção com as presas e garras prontas para o golpe final. Ao seu lado, um vira-lata latia, abanando o rabo.

Uma silhueta surgiu do nada, e uma mão agarrou o pescoço de Icabode no ar. O cachorro ganiu assustado com a aparição. O sujeito tinha o tamanho de um armário. Ele vestia roupas apertadas, suspensórios e quepe. Ele virou o rosto de lado e disse:

– Você é um mortal.

– Sim – Drake respondeu sem saber se aquilo era uma pergunta ou afirmação. Enquanto isso, Icabode tentava se desvencilhar da mãozorra do homem. – Não o machuque, ele está…

– Faminto – interrompeu o outro. Ele jogou Icabode no chão com força, fazendo a calçada rachar. Em seguida pegou o cachorro e o pressionou contra o rosto do jovem.

Drake assistiu a cena espantado. Icabode agarrara o vira lata e abria sua barriga com os próprios dentes. O animal chorava e se debatia enquanto grande parte de seus órgãos eram rasgados e caíam no chão. Alguns segundos depois, o homem misterioso jogou Icabode contra a parede.

– Já chega! – disse ele. Sua voz era grossa como trovão.

Drake foi até Icabode e tentou despertá-lo. O jovem piscava, confuso. Estava coberto com sangue, e suas presas pressionavam o lábio inferior. Ele olhou para a carcaça do cachorro e depois para Drake. Por último, para o homem de suspensórios.

– A primeira vez que vocês apareceram neste distrito, quebrando tudo, eu deixei passar – a voz grossa ribombou. – Mas o que vocês aprontaram hoje, ultrapassou os limites.

Ele puxou uma estaca de madeira da cintura e empalou a Icabode no coração. Drake se jogou contra ele, socando seu rosto. O homem segurou seus braços e lhe deu uma cabeçada fatal.

 

Icabode despertou, sentado em uma cadeira de espaldar alto, acolchoada com veludo, em uma sala coberta de tapeçarias vermelhas. Uma mesa de mogno estava na parte alta do cômodo. Uma ventania gélida invadia o lugar através de uma larga sacada, centenas de metros acima do solo. Atrás da mesa de mogno, havia três pessoas. Eles olhavam em sua direção, sérios.

– Eu digo para começarmos – disse um deles. Era um homem magrelo, de rosto ossudo e cabelos colados no crânio. Sua pele era pálida como a dos outros dois.

– Ninguém vai começar até a Juíza chegar! – o homem do meio parecia mais um urso, com seus cabelos e barbas frondosos e ruivos. Sua mão era quase do tamanho da cabeça do primeiro sujeito.

A terceira pessoa era uma senhora de roupas negras e uma renda que cobria o rosto. Ela se manteve em silêncio.

– Pelo menos para adiantar o assunto, senhor Ivanovitch – o magrelo insistiu. – Não está curioso pra saber o motivo desse alvoroço todo que nos trouxe o senhor Anthony Ritzo? – ele apontou para o sujeito de suspensórios que empalara Icabode.

O jovem olhou para baixo e viu que tinha uma taça vazia no colo, suja de sangue, e que não havia mais nenhuma estaca em seu peito. Ao lado, Anthony Ritzo estava em pé, olhando para o trio atrás da mesa.

– Mas ele já disse, oras! – Ivanovitch respondeu, irritado. – Esse neófito estava causando um caos em seu distrito. Voando sobre as ruas do Brooklyn, metido em perseguição policial e tiroteios em Green Point. Ele chamou tanta atenção como o Hindenburg em chamas.

– Eu sei que seu intelecto é capaz de ser saciado com tão pouco conhecimento, mas um catedrático como eu sempre busca entender plenamente o objeto de seu trabalho – disse o magrelo de cabelos colados. Ele se levantou e se aproximou da cadeira de Icabode. – Diga-me, rapaz. Antes de tudo, quem foi o cainita que te abraçou?

Icabode franziu o cenho, confuso. Antes que perguntasse o que significava aquelas palavras, o homem explicou.

– “Cainita” significa “descendente de caim”, vampiro. “Abraçar” é o termo que usamos quando um de nós transforma alguém em um membro de nossa sociedade.

Eu já te expliquei isso, Icabode, a voz de Sunday veio em seu ouvido. Ele olhou ao redor, procurando o detetive, sem sucesso. Não fazia ideia de onde vinha a voz.

– Então, diga-me – pediu o vampiro em sua frente. – Quem lhe deu a Não Vida?

– Eu não sei o nome dele – Icabode respondeu, cooperativo. Precisava ganhar tempo para fugir dali. – Mas ele me transformou para que eu não morresse… completamente. Diferente do que eu esperava, ele se mostrou bastante humano.

– Por que a surpresa? – ele abriu os braços, arqueando a sobrancelha. Sua fala era lenta e condescendente. – Vampiros não podem demonstrar bondade e misericórdia?

Aquela pergunta pegou Icabode de surpresa. Ele olhou nos olhos do homem, tentando decifrar se aquilo era puro cinismo. Mas para todos os efeitos, o vampiro no prédio polonês tentara salvá-lo, mesmo sabendo que Icabode estava ali para mata-lo.

– Começaram sem mim? – uma voz feminina, rouca, perguntou, quando a juíza adentrou a sala. Ela olhou para o vampiro magrelo. – Senhor Fermín?

Ela era corcunda, careca e sua pele tinha cor de cimento seco. Olhos vermelhos, nariz torto e vários dentes pontiagudos que iam para várias direções. Alguns iam até o queixo, outros perfuravam a bochecha, estando sempre expostos.

– Estava apenas sondando o réu, vossa excelência – Fermín respondeu, voltando para seu lugar atrás da mesa. – É sempre bom conhecer a fundo todos os fatos dos nossos julgamentos, já que acontecem tão poucas vezes.

A juíza sentou em uma poltrona num canto da sala, e alguns homens brotaram das sombras em suas costas e estenderam seus pulsos em sua direção. Ela fez alguns cortes e começou a bebericar direto das veias. Depois, limpou a boca com as costas das mãos e fez o sinal com o indicador para que começassem.

– Ritzo! – bradou Ivanovitch. – Diga exatamente o que aconteceu com esse aí.

Anthony Ritzo deu um passo à frente, e explicou:

– Semana passada, esse cainita apareceu com aquele forasteiro, Anatole, que pedira permissão para fazer umas buscas na cidade. Os dois sobrevoaram as ruas de Green Point, e mataram alguns policiais diante de várias testemunhas. Um de meus rapazes viu tudo e me avisou. Quando cheguei no local, eles já estavam em um local cheio de judeus altamente armados. Por isso nós não agimos.

– Por medo das armas ou de ser descoberto como um vampiro? – Ivanovitch perguntou, rindo.

– Ignore-o senhor Ritzo, por favor – Fermín pediu, educadamente.

– Nós ficamos de olho no prédio pelos próximos dias, tentando descobrir algo. Até que recentemente a proteção do prédio triplicou.

– Solomon Saks é o mafioso com o maior número de associados – Fermín observou. – Ele tem um pequeno exército. Os italianos estão perdendo seu espaço. Perdoe-me, continue.

– Eu deixei todos de meu clã em alerta, e hoje a noite, um tiroteio teve início. Nós corremos até o local, e vimos esse aqui – ele apontou para Icabode -, sobrevoar o prédio com o mortal para longe da zona de risco. Foi aí que o pegamos. Houve muitas testemunhas, conselheiros, juíza. E eu não pretendo assumir essa culpa. Fiz o que podia pra impedir que eles quebrassem o sigilo da Máscara.

– Fez o que podia, senhor Ritzo? – Fermín perguntou, curioso. – Mas você não nos informou da primeira vez que eles quebraram a Máscara. Não acha que deveria ter feito isso também?

O grandalhão gaguejou, tentando se justificar.

– Oh, não – Fermín sacudiu a cabeça. – Não falaremos sobre isso agora. Depois você terá a chance de se explicar. Agora desejo fazer algumas perguntas ao acusado – ele olhou para Icabode, interessado. – Como você se chama?

– Sou Icabode St. John – ele respondeu, sentindo a presença maligna naquele homem. Fermín tinha sede de sangue, e isso era visível em seu olhar.

– E o que aconteceu com Anatole depois daquela noite?

– Eu o matei.

Os vampiros se entreolharam, surpresos. Icabode não parou por aí.

– E foi por esse mesmo motivo que invadi o prédio de Saks, para matar o vampiro que ele mantém preso.

– Por quê? – Ivanovitch perguntou, se inclinado pra frente, intrigado. – Por que você está matando esses vampiros?

– Porque é isso que faço – Icabode se levantou pela primeira vez, deixando a taça cair e rolar pelo chão. Ele olhou para todos na sala e estalou o pescoço. – Eu sou um caçador de vampiros.

 

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Icabode St. John [5]

Nos capítulos anteriores: Icabode, Sunday e Drake se uniram para enfrentar Solomon Saks, o mafioso polonês que capturara um vampiro para transformar a si mesmo em uma criatura da noite. Após invadirem o cativeiro, os três foram abatidos, um por um, até que Icabode à beira da morte alcançou o vampiro acorrentado. Para sua surpresa, descobriu que o preso não era uma pessoa má, e ao invés de matá-lo, Icabode o libertou e em seguida, morreu. 

 

O mundo era uma água negra, e suas mãos recém despertadas começaram a nadar em direção ao céu tomado por uma língua de fogo que dançava acima do mundo. Mãos e pés estranhos tocaram nele, e assim que chegou à superfície, nadou até uma margem, ao lado de milhares de pessoas que faziam o mesmo. Todas elas pareciam assustadas e surpresas. Icabode não fazia ideia de onde estava.

Ele engatinhou na terra seca, mas foi impedido de continuar ao ver diversos homens encapuzados, segurando hastes de madeira, com lâminas curvas na ponta. Antes que ele pudesse fazer algo, os encapuzados começaram a enfiar suas foices nos náufragos, penetrando seus corpos e os arrastando dali.

Os gritos de dor e pânico enchiam os ouvidos de Icabode, e não demorou para o seu grito se unir a eles. Uma foice atravessou seu ombro como se fosse um anzol, e o encapuzado começou a arrasta-lo para longe da água. Icabode gritava, olhando para todos os lados. O céu era feito de nuvens de fogo, e eles estavam cercados por montanhas negras.

Antes que ele fosse jogado em uma gaiola lotada de mulheres e homens nus, uma voz gutural bradou ao seu lado:

– Largue o garoto, ceifador! – era uma criatura chifruda, feita de brasas. Cada vez que falava, colunas de fumaça saíam de sua boca. – Não vê que ele é um Orelha Furada? Ele tem dono!

Icabode rapidamente tocou na própria orelha e percebeu que tinha uma espécie de etiqueta costurada. O ceifador sacudiu a foice até que seu corpo caísse no chão, cheio de dor. A mão da criatura chifruda se fechou sobre a cabeça dele, puxando-o para longe das gaiolas nas carroças, e em seguida, amarrando suas mãos em longas correntes de ferro negro.

Um grupo peregrinava pela terra árida e escura. Criaturas gigantescas e anima

lescas apareciam de todos os lados. As pessoas gritavam e imploravam por Deus, pois eles já sabiam onde estavam.

– Mas por que eu estou aqui? – Icabode inquiriu ao demônio que o arrastava para longe do grupo. – Meu pai sempre me ensinou que só pecadores vinham para cá! E que o pecado é ir contra sua consciência! Minha consciência está limpa! – Icabode gritou, batendo no próprio peito. – Eu não devia vir pra cá!

A criatura se virou pra ele, deixando um rastro de fumaça para trás. Seus olhos eram bolas de fogo.

– Seu pai te ensinou? Foi seu pai quem vendeu sua alma. Orelhas Furadas são almas que já estão reservada para algum Senhor do Inferno.

Icabode sentiu suas pernas falharem e ficou de joelhos. O demônio agarrou sua cabeça novamente e o forçou a continuar. Ele estava atônito, sem acreditar que seu pai, o reverendo, vendera a alma do próprio filho a um demônio.

– Mas e sobre o livre arbítrio e as minhas próprias escolhas? – ele gaguejou, completamente perturbado. – Não tenho direito e autoridade sobre minha própria alma?

– Até a idade da plena consciência do bem e do mal, todos são de responsabilidade de seus pais ou tutores – o demônio explicou, sentindo um prazer nefasto em ver a dor no olhar de Icabode. – Quando os exércitos leais ao seu Deus iam à guerra, Ele mandava matar os inimigos e os filhos de seus inimigos. Dependendo dos pais, as crianças eram santas ou pecadoras. Parece que o seu pai escolheu o caminho errado, garoto.

Icabode não sabia que as coisas funcionavam daquele jeito. Tudo parecia muito arbitrário e injusto aos seus olhos. Em algum lugar perto dali, havia um paraíso onde Icabode merecia passar a eternidade, mas graças a seu pai, ele ficaria para sempre no inferno.

Adiante, sobre a trilha, havia um arco de pedra com uma placa com uma frase que cada um entendia em sua própria língua, “BEM VINDO AO INFERNO”.

– Ei, Icabode! – alguém gritou. Era Sunday, preso em uma jaula puxada por uma carroça. – Garoto, você morreu? – seu olhar era de tristeza e cansaço. Ele estava pressionado contra as grades enferrujadas, cercado de pessoas. – Pelo menos você conseguiu mata-lo? Você matou o vampiro?

Icabode lançou um olhar envergonhado para o amigo. O Mal vencera, e os heróis foram mandados ao inferno. Isso é inaceitável, Icabode pensou. Se existe justiça, as coisas não deviam ser assim. Ele olhava para Sunday, tentando achar alguma saída para aquela situação. Se não houver justiça… talvez eu possa fazê-la por conta própria, refletiu. Nessa hora, a sombra do arco de entrada do inferno recaiu sobre ele.

– Sunday! Nós não podemos morrer duas vezes, não é? – Icabode gritou.

O detetive olhou para ele, confuso. Icabode não esperou a resposta, e se jogou contra a coluna do arco, e começou a escalá-la. As pedras tinham sulcos e frestas que facilitavam a escalada. A corrente que o ligava ao demônio era longa, e o chifrudo escolheu não puxá-lo pelo simples fato de que seria mais interessante espera-lo chegar ao topo do arco. A queda seria mais forte. Mas ao chegar lá em cima, Icabode agiu rapidamente. Ele mesmo pulou para o outro lado, em uma queda livre.

Ele havia mirado em alguma carroça, para cair entre os demônios bovinos que a puxavam. A queda fora dolorida, e quebrou alguns de seus ossos, mas ele atingira o objetivo. Tomado pela dor, enroscou a corrente no eixo entre os debôvinos (demônios bovinos), e esperou que desse certo. A corrente era longa, mas chegara ao limite no último instante. Ela se retesou, passando por cima do arco e puxando o braço do chifrudo. O demônio tinha a altura de um poste e pesava no mínimo, uma tonelada.

Sem saber exatamente qual polo iria ceder primeiro, Icabode se manteve inerte, vendo a corrente diante de seus olhos, puxar o eixo da carroça, entortando-o. Se ele cedesse, seu plano falharia miseravelmente. Aguente, aguente! Ele pediu. Se havia alguma força do bem naquele lugar, aquela era a hora de intervir. O garoto começou a chutar as ancas dos debôvinos, forçando-os a continuar em frente.

O demônio chifrudo começou a puxar a corrente, vendo que estava prestes a ser puxado para cima do arco de boas-vindas. Bufando com raiva, ele puxou os braços para baixo, fazendo a carroça reduzir a velocidade. As correntes não podiam ficar mais rígidas do que naquele momento. Em algum lugar, algo iria ceder.

Sunday estava em uma gaiola, tentando enxergar o que Icabode havia feito depois de escalar a coluna. Ele não o via mais. Mas a atenção de todos estava voltada para a corrente que puxava o arco para baixo. As pedras começaram a balançar enquanto o demônio lutava para não ser erguido. No próximo instante, o arco cedeu, e as pedras milenares vieram abaixo, esmagando tudo que passava naquela hora. A carroça de Sunday foi desmontada, e ele mesmo fora pressionado por barras e ossos dos menos afortunados que estavam naquela jaula.

Um frenesi teve início, e todas as pessoas que estavam em liberdade começaram a correr. Sunday se arrastou para fora da gaiola, e viu o demônio chifrudo jogar os humanos para todos os lados, avançando em linha reta, rumo à outra ponta da corrente.

– Preciso ajuda-lo – Sunday disse, correndo na mesma direção. Icabode não teria nenhuma chance depois que aquele demônio o alcançasse.

– Corre, corre! – Icabode gritava, chutando o traseiro dos debôvinos com mais força. O chifrudo agora corria em sua direção, e a punição no inferno devia ser visceral. Icabode não pretendia ser pego pela criatura. O problema é que, nesse momento ele havia adentrado os limites reais do inferno. E isso era um puta problema.

– Como eu vou me soltar dessas correntes? – ele se perguntava. Seu corpo erra arrastado pelo chão, entre os animais. Seus braços continuavam presos ao eixo de ferro.

A carroça aumentava de velocidade, enquanto o chifrudo também corria mais rápido. Sunday ficara para trás, consciente que aquela corrida não era pra ele. Só restava ao detetive esperar que o demônio nunca alcançasse o garoto.

Icabode se ergueu e ficou sobre o eixo, com o corpo inclinado por causa do espaço curto das correntes. Ele não conseguia ficar em pé. Olhando para a frente, viu uma cidade satânica, cheia de fogo, rodas gigantes, estátuas e criaturas aladas sobrevoando o lugar. Com os movimentos limitados, ele apenas observou.

A carroça invadiu a cidade, quebrando cercas, paredes, invadindo praças, atropelando todas as criaturas no caminho, passando por colunas de fogo tão largas quanto a própria cidade. Icabode sentia como se estivesse em um liquidificador cheio de ácido. Nada parava aqueles debôvinos, e todos os obstáculos causavam grandes lacerações no garoto.

Seu corpo fora consumido por fogo, e vários cortes cobriam-no quase por completo. Estava fraco, e prestes a tombar do eixo, direto para o chão. Mas isso seria pior. Ali, ele estava um pouco mais protegido. A jaula da carroça ainda estava cheia de pessoas. E todas elas gritavam para ele tirá-las dali. Elas tinham falsas esperanças, e Icabode sabia disso. Não havia uma forma de salvar ninguém do inferno. Ele só ganhara tempo, e com o custo de ter o corpo todo moído.

As pessoas gritavam, avisando que o chifrudo estava perto, e que iria alcança-los logo. Icabode usava de uma força sobre-humana para continuar, mas ele preferia ser derrubado do que simplesmente desistir.

A carroça saiu da cidade e partiu em direção ao paraíso. Um lugar cheio de jardins iluminados, anjos e santos que bebiam e comiam em uma eterna comemoração. Icabode sorriu, esperançoso. Isso durou pouco tempo, pois ele percebeu que havia um imenso abismo entre o inferno e o paraíso.

– Claro – ele se lembrou. – A parábola do rico e de Lázaro.

A história bíblica mostrava dois homens conversando, cada um de um lado do abismo. O rico tentava ir para o paraíso, mas por causa do buraco não havia nenhuma possibilidade. E nesse momento, a carroça rumava para esse abismo.

– Agora sim, já era – Icabode suspirou, pensando que ia para uma espécie de inferno pior do que o próprio inferno.

Os debôvinos se jogaram no buraco negro, e a carroça caiu pesadamente. O chifrudo parou de correr ao ver aquele desfecho. Mas a corrente se esticou e começou a arrastá-lo. O demônio caiu no chão e tentou arrancar livrar seus pulsos para não ser levado pela carroça. No momento em que conseguiu se desvencilhar delas, sentiu o chão sumir debaixo de seu corpo. Ele também caíra no abismo.

Sunday viu a carroça despencar com Icabode e puxar o demônio consigo. O detetive lera sobre o abismo na bíblia. Esse lugar era mil vezes pior que o inferno. Era no abismo que Deus aprisionara as piores criaturas. Os demônios do apocalipse. O detetive chegara tarde demais, e mesmo assim, não teria chance alguma de salvar o garoto.

Ele mesmo estava duplamente condenado. Atravessara a cidade correndo, seguindo a trilha da carroça, e agora, centenas de ceifadores o perseguiam.

Olhou para trás e viu as inúmeras criaturas com foices, sob as sombras dos demônios alados, todos vindo em sua direção. Ele sabia que seria despedaçado. Mas talvez fosse merecido. Em sua vida, Sunday havia tomado algumas decisões erradas. Não tinha dúvida que o inferno era o seu lugar. Ele só queria um copo de whisky para degustar antes que fosse alcançado. E eles vinham com muita pressa, ah se vinham. Em poucos segundos, estariam sobre seu corpo.

– Que seja – Sunday ergueu a gola do sobretudo e colocou as mãos nos bolsos. Mas um grito o fez virar novamente. Alguém chamava seu nome.

Icabode sobrevoava o abismo. O garoto subia rumo ao céu, puxado por uma força invisível. Ele gritava o nome do detetive várias vezes.

– Pegue a corrente! – Icabode gritou, sacudindo a longa corrente que ainda estava presa em suas mãos.

Sunday olhou para os ceifadores, e não esperou mais. Ele disparou em direção ao abismo. Em suas costas, algumas foices começaram a rodopiar, tentando acertá-lo. Mas se os ceifadores não o alcançassem, o abismo iria. Ele saltou em direção ao buraco, erguendo as mãos, consciente de que tudo daria errado.

– Você conseguiu! – Icabode gritou, vendo o detetive pendurado em sua corrente, e ambos subindo para o céu, deixando milhares de demônios para trás.

Os dois atravessaram as nuvens de fogo, e continuaram subindo.

– Não estamos indo para lá! – Sunday gritou, surpreso, ao ver o paraíso ficando para trás.

– Talvez estejamos indo para o céu onde fica o Trono de Deus! – Icabode deduziu, temendo despencar a qualquer momento.

– Você deve estar certo – Sunday gritou. – Cuidado!

Uma criatura alada atravessou uma nuvem de fogo e agarrou a Icabode. O garoto ergueu as mãos e segurou as presas da criatura, afastando-as de seu rosto. Ele abriu a boca e mordeu a face do demônio, sentindo o gosto pútrido e cheio de enxofre, enquanto arrancava um pedaço dele.

– Volte para o inferno, criatura asquerosa! – Icabode gritou soltando as garras que foram direto em sua barriga, penetrando-o. Ele gritou.

Com as mãos livres, rasgou a membrana da asa de morcego do demônio, usando de toda a força que tinha. A criatura começou a cair em parafuso, e sumiu de sua vista. O corpo de Icabode estava irreconhecível. Perfurado, carbonizado e rasgado. Seus olhos estavam praticamente fechados, mas ele olhou para baixo e viu Sunday, ainda pendurado. Ele conseguiu finalmente sorrir.

– Deus nos salvou – tentou dizer.

Mas assim que alcançaram o ponto mais alto do céu, tudo escureceu, e estavam de volta ao mundo dos mortais. E foi aí que ele viu que Deus não o salvara. Em sua frente, alguém olhava com medo para seus caninos.

 

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Icabode St. John [4]

Nos capítulos anteriores: Icabode e o detetive ocultista Sunday foram traídos pelo mafioso polonês Solomon Saks, que ao invés de caçar vampiros, como prometera, capturara um apenas para se transformar em um deles. Em seguida, Sunday apresentou a Icabode, Drake Sobogo, capitão dos Balas de Prata, pelotão especial da 2ª Guerra que caçava criaturas sobrenaturais. Drake era boxeador clandestino e era conhecido como Capitão Sangrento. Ele conhecia o vampiro capturado por Saks, pois Sunday havia lhe pedido certa vez que o protegesse, pois era um informante, mas Drake se recusara a ajudar um vampiro. Agora, Sunday o havia lhe chamado para conversar novamente. 

 

– Me chame de Capitão Sangrento – Drake Sobogo disse ao ser apresentado a Icabode St. John. – Não quero meu verdadeiro nome sendo usado nesta conversa – ele olhava ao redor, desconfiado.

– Tudo bem, Capitão – Icabode assentiu. – Você já deve saber que nós estamos atrás do mafioso Solomon Saks.

– Eu estou aqui pelo vampiro – ele respondeu, lançando um olhar severo ao detetive Sunday.

– Eu sei, eu sei – Sunday precisava ser cauteloso ao falar com o boxeador de temperamento difícil.  – Mas Solomon Saks mantém o vampiro prisioneiro. E suas intenções são nefastas. Ele pretende tornar a si próprio uma criatura da noite.

– Mas quem seria tão idiota para trazer sobre si tamanha condenação? – Drake fez uma careta de absurdo. – Se esse Saks deseja a morte, diga a ele que a levarei pessoalmente. E sem cobrar nada.

– Nós não pretendemos mata-lo, Capitão – Icabode interveio. – Nosso negócio é apenas com o vampiro. Precisamos invadir seu cativeiro e mata-lo. Nenhum homem deve morrer.

– Quem é esse garoto? – Drake olhou para Sunday, irritado. – E por que ele pensa que pode dar ordens a mim?

– Eu não estou dando ordens, capitão – Icabode se explicou.

– Ele é o maior interessado nesta missão – Sunday rapidamente completou. – Seu pai foi morto pelo vampiro Anatole – ele ergueu a mão de icabode, mostrando seus dedos decepados. – E ele o caçou e o matou com as próprias mãos.

– Ele mereceu, assim como todos os vampiros merecem – Icabode beijou seu crucifixo. – Mas condenar os homens já não cabe a nós. Apenas a Deus.

Drake olhou para a mão de Icabode e para as feridas em seu rosto, e silenciosamente reconheceu que aquilo fora um feito e tanto. O rapaz acabara de receber o seu respeito. O boxeador olhou ao redor, refletindo. Sua intuição o mandava trabalhar com aqueles dois, mas seus olhos circulavam pelo apartamento, sempre em busca de algo suspeito. A cada balançar das venezianas, o som de buzinas, sirenes e brigas que vinham da rua, ele tencionava seus músculos. Olhou pela cozinha, contando quantos copos usados estavam sobre a mesa. Se havia algum sinal de que não estavam sozinhos ali.

A sala de estar ficava três degraus mais baixa do que o resto do apartamento. Os sofás de couro com pernas cilíndricas de madeira, sobre o carpete bege… Aquilo tudo era delicado demais para monstros com cheiro de enxofre. Quadros coloridos, como o de uma moça tomando Coca-Cola, um circo itinerante cruzando um deserto, e outros, decoravam o ambiente. Não, eles não estavam escondendo nenhuma criatura demoníaca ali. Na mesinha de centro, o cinzeiro portava três charutos velhos, o que não queria dizer nada além de que Sunday fumava pra diabos. O Capitão Sangrento socou a própria mão.

– Qual é o plano?

– Entrar em silêncio, esta madrugada – Sunday explicou. – Encontrar o vampiro e… – ele deslizou o dedo pela garganta.

Icabode jogou duas estacas na mesinha e mostrou o crucifixo, indicando que aquilo era tudo o que ia usar. Drake não fazia questão de levar pistolas. Elas deixavam pistas. Seus punhos eram tudo o que precisava.

Enquanto Icabode explicava a estrutura do prédio, já que ele ficara lá durante uns dias, Sunday preparava sua mala com binóculos, cordas, lock pick, clorofórmio e outros de seus frascos especiais. Assim que a lua sumiu entre colunas de nuvens, o trio deixou o apartamento.

 

No estuário de Newton Creek, sob a ponte Pulaski, o grupo se reuniu para trocar de roupas. Do outro lado do afluente, no Queens, ninguém conseguia vê-los colocando seus casacos e luvas. Em seguida, o grupo correu até um prédio de quatro andares.  Sunday conseguiu abrir a porta dos fundos, silenciosamente. Ali era uma região industrial, e não havia uma alma viva por perto. O detetive guardou seu equipamento de arrombamento e eles entraram em um cômodo escuro. Icabode tomou a iniciativa, relembrando do caminho para o lugar onde se encontrara com Solomon Saks pela primeira vez.

– Eu esperava que tivesse pelo menos um segurança no prédio – Sunday sussurrou. – Mas está vazio.

– Talvez eles não trouxeram o vampiro pra cá – Icabode respondeu, inconformado.

– Se ele não estiver aqui, nós vamos direto até a casa desse polaco filho da mãe – Drake resmungou, decidido.

Na escuridão eles atravessaram o lugar cheio de caixas. Havia uma porta e uma escada para o andar superior. Icabode abriu a porta e os três adentraram. O lugar tinha um cheiro forte de fumaça e de produtos químicos. Pelo eco, era um cômodo imenso. Havia um interruptor ao lado da porta, e ao acenderem a luz, viram algo terrível. Aquilo era uma cozinha de heroína, mas essa não era a parte do “terrível”. Dezenas de julacos dormiam em colchonetes, cercados de fuzis e metralhadoras. Todos acordaram assustados com a luz.

Estamos mortos, Icabode pensou, e no mesmo instante os poloneses começaram a gritar, pegando suas armas. Drake agarrou a gola de Icabode e o puxou para trás, enquanto Sunday fechava a porta novamente. Os tiros começaram, transformando a porta em lascas que choviam sobre os três.

– Para a escada! – Sunday gritou, e eles começaram a correr.

Conseguiram chegar no andar superior, e Drake Sobogo empurrou uma escrivaninha de ferro, bloqueando a porta. Ele tirou o sobretudo, e por baixo, estava vestindo apenas seu calção de boxe. Ele fechou os punhos e olhou para os dois.

– Vão atrás do vampiro. Eu seguro eles.

Icabode protestou, mas Sunday o segurou pelo braço e o puxou em direção à outra escada. Em suas costas, ouviram a porta ser derrubada, e o rapaz se virou a tempo de ver Troche invadir a sala. Drake o acertara com uma barra de ferro, e o som que ela fez na cabeça de Troche foi metálico, como se os dentes do julaco não fossem a única parte de seu corpo feita de metal. Outros criminosos adentraram o cômodo, e enquanto Troche e Sobogo lutavam, os outros começaram a atirar na direção de Icabode. Sunday o puxou, e os dois chegaram até o terceiro piso.

– Sunday! – Icabode gritou ao ver que sangue vertia da boca do detetive.

Uma bala o acertara na bochecha e saíra pelo outro lado. Os dois pararam de correr pra ele cuspir fora sua própria língua. Ele olhou para Icabode com os olhos molhados, e ambos souberam que iriam morrer antes de alcançar o vampiro.

– Só tem mais um andar, Sunday – Icabode gritou, invertendo os papéis e puxando o detetive pelo sobretudo. – Vamos pelo menos terminar a missão antes de morrer!

Mas antes que conseguissem chegar na escada seguinte, Troche atravessou a parede, coberto com sangue de Drake Sobogo. O julaco sorriu para eles antes de ataca-los. Sunday empurrou Icabode e se jogou contra o polonês. Troche agarrou seu pescoço com uma mão e o ergueu. Com a outra, ele perfuro a barriga do detetive, rasgando seus órgãos internos e atravessando até as costas. Seus dedos se projetaram para fora, cheios de tripas frescas.

Sunday olhou para Icabode, e um jorro de sangue grosso escapuliu pela sua boca e pelos buracos nas bochechas. Em seu olhar havia uma mensagem. Em seguida, o detetive segurou os dois braços de Troche, e empurrou a parede atrás de si, forçando os dois a ficarem perto da janela. Icabode correu e se jogou, empurrando-os com o ombro. Troche e Sunday foram arremessados contra o vidro, e despencaram em uma queda de dez metros. 

Os outros criminosos chegaram no buraco da parede, e Icabode voltou a correr. Antes que subisse a escada, ele foi alvejado por uma rajada, e seu corpo foi perfurado em vários lugares. Em um último esforço, ele chegou até o quarto andar, e fechou a porta atrás de si. Ela era diferente, feita de aço e com trincas resistentes. Eles demorariam para entrar. Mas entrariam.

O cômodo era cheio de crucifixos, todos pregados na parede. Do outro lado, correntes amarradas em vigas de aço, prendiam os braços de um homem prostrado. O vampiro ergueu a cabeça em sua direção, fraco. Primeiro, ele mostrou as presas, tentando parecer ameaçador. Depois, mudou de expressão ao ver Icabode tirando a estaca do casaco.

– Você veio me matar? – o vampiro perguntou. Sua voz era suave, e seu semblante, dócil.

– E não há nada que você possa fazer! – Icabode bradou, cambaleando.

– Rápido! – o vampiro o apressou, olhando para a porta. – Eles vão abrir a qualquer momento. Trespasse meu coração!

Icabode ergueu a estaca acima de sua cabeça, mas aquela resposta não era exatamente o que estava esperando ouvir.

– Você está querendo me manipular, criatura!

– Não! – o vampiro respondeu, angustiado. – Não importa, só me mate rápido!

– Por quê? – Icabode se ajoelhou diante dele, ficando cara a cara. – Por que você está me pedindo isso?

– Porque eu sou um maldito vampiro! – ele respondeu banhado em lágrimas. – Me transformaram em um deles como punição! Eu irritei um membro da sociedade vampírica, e ele me deu essa não-vida! Mas você precisa me matar antes que Solomon Saks me use para criar seu exército!

– O quê? – Icabode abaixou a mão, incrédulo. – Que exército?

– Ele quer transformar todos os seus capangas em vampiros – declarou. – Você não sabia disso? Ele quer dominar Nova York, e governar sobre os mortais e sobre os próprios vampiros.

– Então eu preciso te matar – Icabode disse, fraco, sentindo a vida deixar seu corpo. – Mas… mas eu não queria.

– Como assim? Eu sou uma criatura da noite, você precisa me matar!

– Você não é mau – Icabode disse, chorando, surpreso. – Eu esperava um monstro, mas… você não é um.

– Claro que eu sou! Você não faz ideia do tanto que luto contra o desejo de sangue e de morte!

– Viu. Um monstro não lutaria – Icabode se arrastou para longe dele. – Você está fraco por causa disso – ele arrancou o crucifixo e o jogou pela janela. – Recupere a sua força antes que eles consigam entrar.

Sob os protestos do vampiro, Icabode arrancou os crucifixos um por um, e os jogou pela janela. No fim, ele estava deitado, e grande parte de seu sangue vertera para fora do corpo. Ele sentia seu corpo dormente, e estava tonto. A porta em suas costas fora derrubada, mas sua consciência apagou. Seu coração parou de bater e a vida deixou seu corpo para sempre.

 

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