Manuscritos são artigos relacionados aos mais variados temas dentro do contexto do RPG. Variam de histórias próprias, contos, compêndios, resenhas e colunas com textos autorais.
Esse é o terceiro capítulo de COMO SE TORNAR UM BOM MESTRE DE RPG. Nos capítulos anteriores, vimos que o narrador precisa ter um memory card em sua cabeça com informações sobre a ambientação do seu jogo. Ele precisa transmitir aos jogadores as cenas como se fossem reais. Descrever o cenário, as roupas, os eventos ao redor, etc. Mas para isso, é preciso consumir materiais que o inspirem. Em seguida, vimos que o preparo é como as rédeas da sessão. O narrador deve fazer anotações, refletir e calcular sobre os acontecimentos da próxima sessão. Assim, ele estará sempre pronto para lidar com as escolhas dos jogadores.
Por fim, vamos ver o item final desse artigo, que é o “grupo”. O narrador não é o único responsável pelo desenvolvimento sadio de um jogo. Cada integrante é tão importante quanto o mestre. Assim como um corpo depende do cérebro, o cérebro depende do corpo. Se faltar um desses, o resultado é a morte.
Igualmente, um jogo de rpg precisa da interação entre mestre e jogadores. Isso não significa que os membros precisam ser melhores amigos ou ter um relacionamento de longa data. Na verdade, dependendo do caso, isso pode até atrapalhar.
Se você é um mestre inexperiente, escolha bem os seus jogadores. Você não fará o melhor jogo da vida deles, e irá errar várias vezes. Por isso, encontre pessoas dispostas a serem suas cobaias.
Não se apresse em chamar jogadores experientes se você não se sentir muito seguro. As vezes o jogador experiente está cansado de jogos experimentais, e já tenha os seus próprios narradores de confiança e jogos de longa data. Eles não tem culpa de não terem mais pique para mestres novatos. Isso não se trata de arrogância. É apenas cansaço. Mas é claro que isso é só uma hipótese. Você pode muito bem encontrar alguém que tenha paciência para te ajudar.
Muitas vezes, “jogadores velhos” poderão te julgar, te diminuindo e trazendo um clima pesado para o seu jogo. Isso também pode acontecer com amigos ou pessoas que acham ter “intimidade demais”, e não levam a sério a sua autoridade como mestre.
O que importa de verdade não é ter jogadores que saibam jogar, mas pessoas dispostas a contribuir com a aventura. Ainda que seja um novato, ele poderá contribuir muito mais que um jogador experiente que se recusa a aceitar a palavra final do mestre. Essa regra não serve apenas para mestres iniciantes, mas para todos. É possível você ter grandes amigos jogadores de RPG, e ainda assim, vocês não serem compatíveis no mesmo jogo.
A arrogância ou insubmissão não são os únicos problemas que os jogadores podem apresentar. As pessoas podem ser tóxicas de diversas maneiras. Uma delas é o descaso. Jogador que falta várias sessões por motivos casuais, ou anfitrião que dá o bolo sem aviso, ou até mesmo alguém estar presente, mas que fosse melhor não estar. A melhor coisa para se fazer com pessoas assim é remover do grupo. Elas não irão mudar. E seu jogo será um desgaste a cada sessão. Se a pessoa em questão for seu amigo, seja educado e cauteloso para não prejudicar a amizade, mas mantê-lo na mesa pode se tornar um malefício tanto para vocês dois quanto para o jogo.
As vezes, o descaso se dá na própria atuação do jogador. É muito comum pessoas que avacalham o jogo, ignorando completamente a história ou a dedicação dos outros jogadores. Pessoas assim são egocêntricas e egoístas. CORTE-AS URGENTEMENTE. Jogadores com “espírito de porco” não respeitam o preparo do narrador, a contribuição dos outros jogadores e consome tempo e diversão dos outros. Eles tomam decisões impensadas, sem medo das consequências, atrapalhando completamente o desenvolver do jogo.
Não dá para generalizar, mas pessoas que ficam no celular ou fazendo outras coisas durante a sessão podem ser prejudiciais. Isso é uma situação saneável. Tente falar com seus jogadores, pedindo para eles focarem no jogo. É claro que existem casos isolados, e todos precisam resolver imprevistos de vez em quando.
Em resumo, narrar rpg não se trata apenas de estar inspirado ou de ter planejado sua sessão. Se pelo menos um dos jogadores for tóxico, ele vai contaminar o jogo inteiro. E até você esperar que ele mude, sua mesa poderá sofrer danos irreparáveis. Por isso, a melhor coisa é encontrar pessoas compatíveis com o seu nível de narração e compatíveis entre si.
Se você pretende se tornar um bom mestre de RPG, o seu aprendizado será muito mais produtivo com um grupo sintonizado. Antes de preparar uma mesa nova, escolha as pessoas certas, aquelas que irão jogar ao seu lado, procurando contribuir com o jogo. Juntos, vocês todos aprenderão bastante. Portanto, segue uma sugestão de requisitos antes de iniciar uma nova jornada rpgística:
– Converse com seus jogadores sobre a ambição de seus personagens e que tipo de coisas eles esperam vivenciar ou onde querem chegar;
– Não perca tempo com pessoas que atrapalham ou não tem compromisso com o jogo. Saiba separar a amizade do RPG;
– Peça o feedback dos seus jogadores, de preferência individualmente. As principais melhorias da minha narrativa são frutos de críticas e feedback;
– Aceite jogadores que façam protestos moderados e razoáveis, mas que não protestem frequentemente. Se o jogador sempre quiser medir forças e não aceita o julgamento final do narrador, sua mesa se tornará algo pesado;
Nos capítulos anteriores: Icabode, Drake e Caveira foram sequestrados pelo clã do Rato, e interrogados no esgoto. Mas Icabode ateou fogo no primogênito do clã e na legião de ratos que os observavam, transformando os túneis em um grande inferno. Após fugirem, o trio decidiu partir para o México para encontrar com Maxiocán.
Fermín estava na biblioteca de sua mansão em Nova Inglaterra. Leo e Lorena estavam sentados no sofá vermelho, bebendo sangue de seus cristais.
– O clã da Sombra se aliou ao clão do Rato – Lorena disse. – Mas isso era previsível. Nós matamos a Juíza e a Dama do Véu Negro, suas líderes.
– Lancelot não se opôs aos assassinatos – Leo os lembrou, olhando por cima de seus óculos escuros. – Talvez ele vote em você para príncipe.
Lorena revirou os olhos e perguntou:
– Desde quando aquele velho diz o que pensa? Não é à toa que ele é o mais velho de Nova York. Lancelot é o melhor jogador que existe, e pode ter certeza que nós não fazemos ideia do que passa em sua cabeça.
– Ainda assim – Leo olhou para ela. – Você é a líder do clã da Rosa, eu do Punho, e o Fermín do clã da Águia. Somos três contra dois. Se Lancelot os apoiasse, no máximo, eles iriam empatar, e não nos vencer.
– O clã da Sabedoria não é o único que não se declarou ainda – Lorena rebateu. – Os Filhos de Pã também não se posicionaram. E eles sempre se deram bem com o clã do Rato. Na melhor das hipóteses, temos um empate. Nós não ganharemos essa eleição.
– Os Filhos de Pã são fracos – Leo disse, pegando seu novo bastão. – Eu farei eles se decidirem rapidinho.
Lorena suspirou, impaciente.
– Faça isso, e transformaremos um provável inimigo em um inimigo certo.
– Tudo isso é inútil! – Fermín os interrompeu, batendo em sua mesa. – De que adianta falarmos de eleições se na verdade estamos diante de uma guerra?
– De toda forma, precisamos de aliados – Lorena disse, enrolando o dedo em seus cachos ruivos. – Para guerra ou eleições.
– E os vampiros independentes? – Leo perguntou, receoso.
– Não mexeremos com os sem clãs – Fermín disse, decidido.
– Os Ratos e as Sombras mexerão – Lorena observou.
– Céus, não acredito que agora vocês estão concordando um com o outro – Fermín se virou, irritado. – Nós caçamos os sem clã por décadas. Eles não irão nos apoiar. E se apoiar, seremos obrigados a aceita-los em nossa comunidade. Vampiros insubmissos!
– Eu diria que isso é um problema para o futuro – Lorena disse. – E uma solução para o presente.
– E quanto a Solomon? – Leo perguntou, preocupado. – Se entrarmos em uma guerra agora, não acha que isso fortalecerá Solomon Saks?
– Agora é muito tarde para falar “se entrarmos em uma guerra” – Fermín disse. – Mas de qualquer forma, o único jeito de vencermos Saks é cometermos o mesmo crime que ele, de beber da alma de outros vampiros.
– E isso está fora de questão? – Leo perguntou.
– Claro! – Fermín e Lorena responderam em uníssono.
– Lembre-se que fazemos parte de uma sociedade universal – Fermín disse. – Se nossos líderes supremos souberem que cometemos tal crime, nós seremos torturados e exterminados. Ingerir a alma de um vampiro é o pior pecado que se pode cometer.
– E por que nada é feito contra Saks? – Leo perguntou. – Por que não avisamos os líderes supremos sobre Saks? Eles não poderiam resolver isso assim? – ele estalou os dedos.
– Sim – Fermín respondeu. – Poderiam. E com Saks, seriam eliminados todos os líderes da cidade que permitiram isso acontecer.
– Temos que enfrentar o Saks sem envolver nossos superiores – Lorena concordou com Fermín. – Informá-los seria cometer suicídio.
– E então? – Leo perguntou, colocando os joelhos sobre as pernas, desesperançado. – Nossas esperanças estão nos neófitos?
– Sim – Fermín disse, tenso. – Mas eu enviei Caveira com eles. Ele pertence ao clã da Sabedoria, mas sempre me foi muito leal.
– Ele pode ser um espião duplo para Lancelot – Lorena disse. – Mas você já sabe disso.
Fermín ficou em silêncio, ciente dessa possibilidade. Ele pegou um cristal de sangue e se juntou aos outros dois.
– Caveira tem contatos no México. Eu paguei um helicóptero para o trio se deslocar até lá. Parece que Maxiocán Allende é bem conhecido por aquelas bandas. Sua família inteira, na verdade. Os Allendes são famosos caçadores de demônios. Todos os vampiros daquela região o temem. A palavra “apavorados” combinaria mais com o sentimento que eles possuem desse nome.
A porta lateral se abriu, e um homem de bigode fino entrou.
– Coruja – Fermín olhou para ele, curioso. – Aproxime-se.
– Vossa majestade, parece que o clã dos Filhos de Pã não pretendem se aliar ao clã do Rato. Eles dizem que o último líder capaz dos ratos foi derrotado e queimado no fundo do esgoto. O novo primogênito deles é um jovem irracional.
Lorena e Leo olharam para Fermín, surpresos.
– E como você sabe de tudo isso, Corjua?
– Porque o primogênito dos Filhos de Pã está no hall de entrada – Coruja sorriu.
O helicóptero pousou em um vilarejo próximo à Cidade do México. O clima mudara bruscamente de Nova York até ali. Caveira e Capitão Sangrento desceram primeiro, olhando ao redor. Icabode levitou de seu banco até pisar no capim seco.
Os três vampiros caminharam por vinte minutos até chegarem até o vilarejo. Ele era cercado por um muro de paredes caiadas, com cerca de três metros de altura. O portão de madeira estava fechado, e não havia nenhuma alma do lado de fora.
– Como faremos? – Drake Sobogo perguntou, mas Icabode apenas começou a levitar, passando por cima do muro.
– Pelo visto, faremos desse jeito – Caveira riu e virou morcego.
Do outro lado do muro, Icabode descia por entre as bandeirolas de alguma festa nativa, no meio da escuridão. A vila era praticamente um cercado com uma fonte no centro. Alguns moradores estavam reunidos diante do bar, com mariachis tocando baladinhas.
Um homem mijava na parede de uma casa quando Icabode pousou ao seu lado. Ele estava bêbado, sua cabeça se ergueu com relutância, e seus olhos semiabertos estavam totalmente alheios à presença do vampiro.
– Que pasa cabrón? – o homem perguntou, mas Icabode já agarrara seu queixo, expondo o pescoço. Ele empurrou o homem contra a parede e enfiou suas presas em seu pescoço suado e salgado.
Os braços trêmulos do sujeito tentaram empurrar o vampiro, mas rapidamente eles cederam, e Icabode deixou o corpo escondido no beco. Ele limpou o sangue de seu queixo e saiu das sombras. Seus companheiros vampiros se colocaram ao seu lado.
– Você matou um provável vizinho do maior caçador de vampiros do país – Caveira olhou para trás.
– Garoto – Drake Sobogo olhou para Icabode, preocupado. – Você está passando pela maior mudança da sua vida, eu entendo, mas precisa ter mais cuidado. Quando nos conhecemos, você não era assim. Sei que está assustado…
– Assustado? – Icabode olhou para ele, irritado. – Aquele mexicano ali atrás estava assustado. Eu sou o perigo.
Ele avançou em direção às luzes. Ao lado da fonte quebrada, um bêbado dormia debaixo de um sombrero de palha. Enquanto eles avançavam, o grupo de festeiros começou a ficar em silêncio e se virar em sua direção. As três figuras pálidas, vestidas de preto, estavam paradas, olhando para eles.
– Gringos – alguém disse.
– No! Peor! – uma mulher indígena respondeu, benzendo-se. De repente, no olhar de todos, ficou claro que o povoado sabia muito bem o que era um vampiro.
– Maxiocán Allende! – Icabode disse, calmo. – Digam-me onde ele se esconde, e eu não os matarei.
– Garoto! – Drake segurou seu braço, assustado. – Eles são pessoas de bem!
– No señor! – um mexicano se aproximou, com sua camisa de botão aberta até o umbigo. Ele tinha barriga de cerveja e pele escura. – No somos buenas personas. Y todos ustedes deben salir de aqui.
– Alguém fala espanhol? – Caveira perguntou, receoso. – Porque eu acho que ele meio que nos ameaçou.
– Se vocês possuem bom senso – Icabode voltou a falar -, devem nos entregar Maxiocán Allende urgentemente, senão…
Ele parou de falar ao ver que todos ficaram de pé. A expressão de cada homem e mulher era de raiva. Eles começaram a caminhar em direção ao trio.
– Eu devo avisá-los… – Icabode disse, mostrando a palma da mão, mas ninguém deu ouvidos. – Bem, eu tentei avisá-los.
Ao contrário do que se esperava, todos os habitantes do vilarejo caíram de joelhos, sobre as mãos dianteiras. Eles se contorciam enquanto seus corpos faziam barulho de estalos.
– Oh não, oh não – Caveira recuou.
Essa era a primeira vez que Icabode viu Caveira apavorado.
Caveira virou o rosto para ele. Seus olhos estavam espremidos e molhados. Isso significava que não havia forma alguma de fugir dali.
No momento seguinte, todas as pessoas ao redor se tornaram criaturas imensas e peludas, como ursos. Mas seus focinhos eram como de lobos, e de repente, todos uivavam para a lua. Eram lobisomens.
– Não conseguimos lutar? – Icabode perguntou, fechando os punhos.
– Mesmo o vampiro mais forte que conheço não aguentaria enfrentar o mais fraco dos lobisomens. Imagine uma vila deles. Estamos mortos – Caveira estava paralisado.
Os lobisomens o cercaram, alguns sobre duas patas, outros sobre quatro. Suas presas eram afiadas, com longos fios de saliva pendendo para baixo. O trio de vampiro não tinha para onde ir.
– Essa é a primeira vez que vejo cainitas em minha vila – uma voz veio por trás.
O trio se virou a tempo de ver um homem passando pelo meio dos lobisomens. Ele tinha um bigode frondoso, roupas sujas e calças jeans rasgadas. Ele deixara o sombrero para trás, quando se levantara da fonte.
– E ainda me procuram pelo nome!
– Você é Maxiocán – Icabode apontou para ele.
– E vocês serão a janta desta noite.
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Nos capítulos anteriores: Icabode e seus dois companheiros foram atrás de Sunday em seu apartamento, mas no lugar dele, encontraram a tia de Icabode, Katherine. Os capangas de Solomon Saks apareceram e a sequestraram, ameaçando matá-la se Icabode não parasse de procurar por Maxiocán. Por fim, o trio foi sequestrado por vampiros escamosos dos esgotos.
Icabode, Sobogo e Caveira foram jogados em uma cela no fundo dos esgotos.
– Quem são eles? – Icabode perguntou.
– Eles são o clã do Rato – Caveira respondeu, sentado no chão, com os braços apoiados nos joelhos. – A Juíza era a líder deles. Aquela vampira que a matou é a líder do clã da Rosa. Os clãs do Rato e da Rosa são inimigos mortais. Aquilo que aconteceu mais cedo na casa do Fermín, pode ter certeza, foi o início de uma longa e bela guerra.
– E por que eles nos prenderam? – Icabode perguntou, confuso.
– Lorena, a líder do clã da Rosa é aliada de Fermín, o mesmo Fermín para quem trabalhamos. Eles dois mataram a Juíza.
– E o que acha que farão conosco? – Icabode olhou para a porta da cela, coberta de musgo fedido.
– Eles podem fazer várias coisas – Caveira disse, pensativo. –Provavelmente irão nos matar e consumir as nossas almas.
– Eu não irei permitir – Drake Sobogo rosnou em seu canto.
– Não adianta grandão – Caveira olhou para ele. – O clã do Rato também é conhecido por ter super força. Você não tem vantagem nenhuma sobre eles.
– Quais são os outros poderes deles? – Icabode perguntou, se encostando na parede e escorregando até o chão.
– Eles tem super força – Caveira começou a contar nos dedos -, poder de mudar a aparência, ficar invisíveis, se comunicar com animais, enxergar no escuro e afins. Não sei exatamente todos. Nunca me importei muito com os Ratos do Esgoto. Só sei que eles são os melhores detetives do Mundo Sombrio. Nada acontece sem que eles saibam.
– Quais as nossas alternativas? – Icabode perguntou.
– Nós podemos escolher as últimas palavras que diremos antes de morrer – Caveira disse, e em seguida sua cabeça tombou sobre o peito.
O sol está nascendo, Sunday disse em sua mente. Todos os vampiros irão entrar em torpor agora. Icabode olhou para o lado e viu que o Capitão Sangrento também estava morto. Você precisa fazer alguma coisa quanto ao clã do Rato, Sunday o alertou. Você não pode morrer agora! Katherine precisa de você!
Mas o que posso fazer? Icabode perguntou. Não vejo nenhuma alternativa.
Mas existe uma! Sunday insistiu. Use seus poderes!
Eu ainda não os domino bem.
Pratique esta noite.
Eu vou entrar em torpor a qualquer momento.
Força de vontade, rapaz! Eu te ajudo! Fique acordado durante o dia e pratique seu poder! Quando eles abrirem a porta, fuja com todas as suas forças!
E os outros? Icabode olhou para Drake e Caveira.
Eles conseguem se virar. Você é quem precisa de ajuda. Você precisa se ajudar! Tem que começar a jogar o Jogo das Trevas. Você precisa ser mau, garoto!
Ser mau? Mas eu sou cristão…
Icabode, você não é cristão. Você está condenado. Quando morreu, você foi para o inferno! Seu pai vendeu a sua alma! É tarde demais para você ser bonzinho.
O quê? Icabode estava confuso.
Você não lembra de nada não é? Nós dois morremos naquela fundição, enquanto tentávamos matar Leon. Depois nos encontramos no inferno, onde você descobriu que havia sido vendido para algum senhor do mundo inferior.
Icabode ficou em silêncio, analisando aquelas palavras.
Então você foi abraçado, e sua consciência voltou para o seu cadáver. Sua alma continua aqui.
Eu estou no inferno, Icabode, sua voz era triste. Parte de minha consciência subiu com a sua quando você foi abraçado. Há uma parte de mim em você. Por isso conseguimos nos comunicar. Se você morrer, virá direto pra cá. Não morra. E pra você continuar vivo, precisa…
Preciso ser mau, Icabode compreendeu.
Do lado de fora do esgoto, o asfalto reluzia a luz do sol em um dia quente. A grande estrela cruzou o céu nascendo entre prédios e sumindo entre prédios, até que a noite chegou novamente. Ela sempre chegava. E nessa hora, criaturas demoníacas e sanguinárias despertavam em seus covis.
Drake Sobogo acordou. A qualquer momento, vampiros abririam a sua cela e o matariam. Ele era forte, mas os outros também eram. Eu morrerei, mas levarei alguns desses vermes comigo, prometeu a si mesmo. Ele olhou para frente e viu Icabode sentado, pernas cruzadas, mãos segurando os joelhos. Ele olhava para o chão.
– Garoto? – Drake perguntou, preocupado. – Você está bem?
Icabode ergueu a cabeça e revelou olhos vermelhos e irritadiços. Drake se sentia mal por ele. O garoto era uma pessoa boa, e Drake estava sendo um cuzão com ele.
– Como eu fui parar aqui? – Caveira perguntou subitamente, olhando para o chão. – Eles entraram aqui?
Drake Sobogo olhou ao redor e percebeu que também não estava no lugar em que tinha dormido. Alguém mexera em seus corpos. Ele olhou para Icabode e percebeu que o garoto não os dava atenção.
– Garoto?
A porta se abriu e vários vampiros apontaram suas armas para os prisioneiros.
– Vamos! – um deles ordenou, e todos abriram caminho para o trio.
Drake e os outros dois obedeceram, cautelosos. Vou esperar a hora certa para agir, o boxeador pensou, seguindo por um túnel, cercado de inimigos. O grupo chegou até um grande salão subterrâneo, com várias tochas penduradas na parede. A luz do fogo bruxuleava, fazendo as sombras dos vampiros dançarem para todos os lados. O chão da câmara era tomada por ratos que assistiam a cena, curiosos. Havia milhares deles enchendo o esgoto com seus guinchos agudos.
Do outro lado, sentado em um trono feito de ossos, o vampiro de olhos amarelos os aguardava. Seu rosto escamoso os encarava com sede de vingança. Os prisioneiros foram conduzidos até o centro, pisando sobre os ratos. Drake reparou que Icabode cambaleava, olhando para as criaturas no chão como se fossem boletos a serem pagos.
– Odeio ratos – Icabode sussurrou
– Digam o que sabem sobre esse Maxiocán – ordenou o vampiro no trono.
– Com quem eu estou falando? – Caveira tomou a dianteira, colocando as mãos na cintura.
– Hercule, o Come Ossos – respondeu o vampiro. – Sou o novo primogênito do clã do Rato.
– Engraçado, eu não o conhecia – Caveira observou, sorrindo. – Vocês são muito furtivos mesmo. Mal aparecem nas nossas festinhas.
– Caveira, eu o conheço muito bem. E não simpatizo nem um pouco com essas suas gracinhas. És um tolo para mim. Diga-me o que sabem sobre Maxiocán, e eu darei uma morte rápida a vocês.
– Veja bem, quem matou a Juiza foi… – antes que o Caveira terminasse, Hercule, o Come Ossos o interrompeu.
– Eu estava lá! – de repente, sua aparência grotesca se modificou diante dos olhos de todos. Ele era um homem loiro de terno fino e olhos azuis. – Por isso você não nos vê em suas festinhas. Porque nós vemos tudo e nunca somos vistos. Nós vimos a traição do seu mestre, e não finja que vocês não tem nada a ver com isso. Todos vocês mataram a Juíza, e serão condenados por isso. Mas eu posso ser benevolente e mata-los rápido, ou não, e lhes dar uma morte lenta e terrível.
– E que tal se eu não falar nada – Icabode chutou alguns ratos com nojo –, e ir embora agora? Tenho mais o que fazer.
– Ir embora? E como pretende fazer isso?
Icabode ergueu o braço, e Hercule se levantou do seu trono, subindo em direção ao teto. Com o outro braço, Icabode vez as tochas ao redor se aproximarem do vampiro.
– O que estão esperando? – Hercule gritou para os outros membros do clã, se debatendo no ar. – Matem esse insolente. Matem-no rápido!
Quando eles avançaram, Icabode ficou invisível. Os vampiros pararam no meio do caminho, procurando-o. As tochas continuaram se aproximando lentamente de Hercule, que gritava desesperado. Todos viram o seu primogênito se tornar uma coluna de fogo, se debatendo e dando gritos estridentes.
Drake Sobogo e Caveira se olharam, abismados com a cena. Hercule caiu no chão, e as tochas começaram a se afastar. Os outros membros do clã do rato recuaram, temendo serem os próximos. Mas as tochas voaram em direção aos ratos, ateando fogo em dezenas deles. A câmara se tornara um pandemônio, tomada pelo fogo.
Ao ver que os vampiros fugiam, muitos deles tomados pelo fogo, e que o Caveira se tornara um morcego e fugira, Drake Sobogo começou a correr, cercado por fogueiras de quatro patas que corriam de um lado para outro, guinchando de dor. O boxeador se jogou em um pequeno escoamento de água na parte oposta da câmara, assistindo a cena de longe. De repente ele olhou para cima e viu uma figura levitando próxima do teto, era Icabode. O garoto olhava para baixo com uma expressão macabra. O fogo reluzia em seu rosto, destacando seus olhos vermelhos. Era quase como se Drake visse um anjo caído sobrevoando o inferno.
Ratos flamejantes percorriam vários túneis do esgoto. Milhares deles. Drake se enfiou em um túnel, correndo também. Ele via o fogo reluzindo nas paredes sempre que alguma criatura passava correndo. Deixando um rastro de fumaça. O boxeador passou por vários cruzamentos até achar uma escada. Assim que saiu da boca de esgoto, as pessoas do mundo superior começaram a exclamar e apontar em sua direção.
Drake olhou ao redor e encontrou Caveira sentado no capô de um carro, observando-o.
– Eu sabia que você conseguiria – Caveira apontou para ele.
Drake olhou para a esquina a tempo de ver Icabode voar para fora do esgoto e pousar no asfalto, fazendo os carros desviarem.
– Nós três estaremos mortos até o fim de semana – Caveira avisou, sorrindo. – Em menos de um dia quebramos quase todas as regras da sociedade vampírica. Estamos nos expondo muito. Daqui a pouco seremos caçados.
Drake resmungou pra ele, e os dois foram se encontrar com Icabode.
– O que você fez lá embaixo – Caveira disse, seguido de um assovio. – Eu nunca vi nada igual em toda a minha vida.
– Vamos – Icabode disse, acenando para um táxi. – Precisamos descobrir em que parte do México está Maxiocán.
– O clã do Rato é o responsável para encontrar esse tipo de informação – Caveira observou. – Mas agora não acho que eles nos ajudariam. Tem um traficante de informações que mora em um cemitério, eu posso apresenta-los…
– O Sombra está morto – Icabode o interrompeu, abrindo a porta do táxi. Caveira olhou para ele, surpreso. – Nós o matamos.
– Eu tenho um contato influente na Cidade do México – Caveira disse quando os três entraram no banco de trás do táxi. Mas depois falamos sobre isso.
– Não. Falamos agora – Icabode respondeu, seco. – Depois matamos o taxista e jogamos seu corpo em algum lugar.
O motorista olhou pelo espelho, achando que ouvira errado. Caveira e Drake se olharam, surpresos.
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Nos capítulos anteriores: Icabode, Drake Sobogo e Caveira foram enviados para procurar Maxiocán, o homem que poderia reverter o ritual Solomon Saks. No meio do caminho, eles passaram pelo apartamento de Sunday, onde encontraram Katherine, tia de Icabode. Durante o encontro, Troche e seus capangas apareceram, buscando Sunday.
Katherine surgiu do quarto, congelando ao ver os novos visitantes. Icabode olhou para ela e ordenou:
– Tia, volte para o quarto.
– Tia? – Troche perguntou, interessado.
– Acabem com eles – Icabode olhou para Drake e Caveira. – Eu protejo ela. Deixem um deles vivo. Precisamos saber sobre o paradeiro de Maxiocán.
Drake Sobogo não esperou Icabode terminar de falar. Ele cruzou a sala em uma velocidade sobrenatural. Atropelou Troche como se fosse um trem, fazendo seus corpos atravessarem as paredes e invadirem os apartamentos vizinhos.
Troche trouxera consigo quatro capangas julacos, todos barbudos, com seus ternos e chapéus pretos. Eles apontavam suas metralhadoras para Icabode, Katherine e Caveira.
– Eu me rendo! – Caveira gritou, guardando as armas nos coldres.
Icabode olhou para ele, surpreso. Caveira olhou de volta, e seu olho piscou pelo buraco da máscara. No instante seguinte, seu corpo encolheu rapidamente até virar uma pequena bola de pelo negra, com asas. Ele virara um morcego.
– Que diabos é isso? – um dos capangas perguntou, assombrado.
O morcego atravessou a sala em ziguezague e se jogou atrás dos julacos. No outro momento, ele era Caveira novamente. Os capangas não tiveram muita chance.
O vampiro encostou os canos dos revólveres na cabeça de dois deles e apertou os gatilhos. BAM! Miolos jorraram pelo chão da sala. BAM! Dentes e língua se soltaram da cabeça do segundo. Os outros dois capangas se viraram pra ele, recuando e atirando.
Caveira girou sobre os tornozelos e sumiu pela porta, se escondendo no corredor. Os capangas continuaram atirando na parede, assustados. Alguns segundos depois, pararam e esperaram. Caveira não veio, mas outra coisa surgiu. O corpo de Troche abriu um novo buraco na parede, aparecendo do nada. Ele acertou um dos capangas, jogando-o para o outro lado da sala.
Drake Sobogo veio logo atrás. As veias pulsavam em seu corpo. O capanga restante ergueu a arma pra ele, mas Caveira reapareceu, atirando várias vezes no peito do homem. Troche e seus homens foram abatidos.
Icabode protegia a porta do quarto onde a tia estava, olhando para a cena com satisfação. Eles venceram aquele embate. Ou era o que ele achava.
– ICABODE! – Katherine gritou enquanto seu corpo era sugado pela janela, deixando o prédio para trás.
Ele correu até a janela e viu o feiticeiro de Solomon levitando a poucos metros de distância. Katherine estava em sua frente, se debatendo no ar.
– Você sabe sobre Maxiocán! – Rabin gritou. – Deixe isso pra lá, caso contrário eu usarei a cabeça da sua tia como peso de porta.
– Solte-a! – Icabode gritou. – Solte-a, senão eu…
– Soltá-la? – Rabin olhou para as dezenas de metros que o separava do chão. – Certeza?
Icabode socou o batente da janela, aflito. Para sua surpresa, Capitão Sangrento surgiu na sacada ao lado. Ele subiu no parapeito e se jogou. Seu corpo fez um arco no céu, em direção ao feiticeiro. Rabin se esquivou no último instante, pego de surpresa. Katherine começou a cair, mas o feiticeiro a segurou novamente.
Drake Sobogo se chocou contra o prédio do outro lado da rua, e se segurou em uma janela. Icabode olhou para o lado novamente e viu um morcego voar até ficar três metros acima de Katherine. De repente, Caveira voltou à sua forma humana e atirou em Rabin enquanto caía.
– Vocês são loucos! – Rabin gritou, segurando seu ombro baleado.
Caveira e Katherine caíam, mas o vampiro a agarrou com força e a girou no alto, jogando-a para o outro lado da rua. Ela gritou, vendo o prédio vir em sua direção. Drake Sobogo saltou e interceptou a colisão, levando-a novamente para o prédio de Sunday, saltando como uma pulga.
Icabode assistia a tudo, incrédulo. Vários homens na calçada sacaram suas armas e começaram a atirar em Drake. Eram mais capangas.
Você precisa ajuda-los! Sunday disse em sua mente. Use sua telecinésia! Voe pela janela!
Eu não sei controlar ainda, Icabode respondeu, desesperado.
Então concentre-se! Sunday respondeu. Você precisa descer agora!
Lá fora, Drake Sobogo sentiu as balas acertando suas pernas e suas costas, e ele não conseguiu mais se segurar. Felizmente não estava tão longe do chão quando despencou. Ele caiu de costas sobre a lataria de um carro, afundando-o. Katherine estava segura sobre seu peito.
O morcego voou para trás dos atiradores e virou Caveira novamente. Como se fossem duas adagas, ele movimentava seus revólveres e matava os capangas a queima roupa. Quando suas balas acabaram, um capanga o chutou na barriga, afastando-o. Os outros julacos sobreviventes apontaram suas metralhadoras pra ele.
– Vocês acham mesmo que eu sou como vocês? – Caveira perguntou, abrindo os braços. – Mandem bala, caralho! Deem o seu melhor!
E eles fizeram. Caveira gargalhava enquanto as balas batiam em seu kevlar e caíam no chão. De repente, dois atiradores foram erguidos pelo pescoço. Drake Sobogo os segurava acima de sua cabeça. Ele juntou seus rostos um contra o outro, esmagando seus crânios. Com mais alguns socos, matou todos os outros ao redor.
Katherine saltara do capô do carro e começou a atravessar a rua. Um veículo veio em alta velocidade em sua direção. Drake viu os canos das armas saindo pela janela. Eram mais homens de Solomon. E eles iam em direção à mulher.
– AHHHHH!!!!! – Drake Sobogo se jogou sobre a tia de Icabode, e os dois rolaram até a calçada oposta. O veículo freou em suas costas, derrapando de lado.
O pneu cantou, e a fumaça subiu. Assim que as portas se abriram, Drake jogou seu corpo contra a lataria, fechando-as novamente, e empurrando o carro alguns metros pelo asfalto. Do outro lado, Caveira já estava com a Thompson de um cadáver e começou a segurar o gatilho. A arma girava como um ventilador, de um lado para o outro. Os capangas não conseguiram nem sair do carro.
De volta ao apartamento de Sunday, Troche cambaleava rumo à porta. No corredor, um homem careca segurava uma vassoura. Ele vestia roupão com uma letra bordada no peito. Atrás dele, uma mulher e duas crianças assistiam à cena, assustados.
– Eu já ligue para a polícia – o homem avisou. A parede de sua casa estava destruída. Troche e Drake quebraram tudo enquanto lutavam.
Troche estava furioso. Ele puxou a vassoura da mão do sujeito, girou, e a enfiou no olho do homem. O corpo caiu no chão, e Troche continuou enfiando o cabo em seu rosto. Depois, ele foi até a sala de estar onde a família do sujeito gritava. Ele avançou sobre a mãe, empurrando-a até a janela e jogando-a para fora. Depois se virou e enfiou os dedos de metal na boca do garoto de nove anos e separou seu maxilar do resto da cabeça.
Por fim, olhou para a menina mais nova. Troche envolveu seu rosto com a mãozorra e a empurrou contra a parede, ferozmente. Seus dedos metálicos afundaram em ossos e miolos. O papel de parede era amarelado, com flores. Ele limpou sua mão ali mesmo e foi embora.
Um julaco se arrastava pelo asfalto. Ele puxou a pistola do casaco e apontou para Katherine, na calçada do outro lado. Ele iria morrer, mas pelo menos levaria aquela vaca com ele.
Katherine viu o sujeito apontar a arma em sua direção e no momento em que o gatilho ia ser puxado, um vulto caiu sobre ele, enfiando uma faca no topo de sua cabeça. Icabode viera de algum lugar no céu.
Mais acima, Drake arrastava um capanga ferido pelo asfalto, enquanto Caveira segurava uma metralhadora fumegante.
– Diga! – Drake rosnou. – Onde está Solomon Saks!
– Capitão! – Icabode interveio. – Nós precisamos perguntar sobre o México – ele se virou para o capanga ensanguentado. – Como encontramos o homem que sabe reverter o ritual de Saks? Como encontramos Maxiocán?
– Por favor! – o capanga segurou na calça de Icabode, implorando. – Não quero morrer!
Icabode viu que havia pelo menos três buracos de bala na barriga do sujeito. Ele iria morrer nos próximos segundos. Icabode suspirou, desconfortável com aquilo, e ficou de cócoras.
– Se você nos disser como encontrar Maxiocán, eu te levo para um hospital o mais rápido…
– Me transforme em um de vocês – o capanga pediu. – Não vou sobreviver – ele tossia sangue. – Me transforme em um vampiro e eu direi.
– Desculpe, mas não posso. Nunca me perdoaria se transformasse alguém em um vampiro – Icabode disse.
– O que você está fazendo? – Drake o puxou pela gola. – Está louco?
– Você quer mentir pra ele? – Icabode sussurrou. – Vá em frente. Mas eu não posso fazer isso!
– Eu transformo ele – Drake prometeu, e se virou para o homem caído.
– Rapazes – Caveira disse, cutucando o rosto imóvel do capanga com a ponta da botina. – Ele já está com Jeová, ou seja lá quem é o deus dos judeus.
– Eu vou transformá-lo – Drake se abaixou.
– Não! – Icabode o puxou pelo braço, mas o outro o arremessou contra a lataria do carro.
– Garoto! – Drake olhou para ele, num misto de surpresa e raiva. – Nunca mais me segure.
– Se você transformá-lo, nós teremos um problema – Icabode disse, se levantando. Katherine o ajudou a ficar de pé, preocupada. – Não podemos colocar mais um vampiro neste mundo.
– Ele é a nossa única chance de descobrirmos o paradeiro de Maxiocán – Caveira olhou para Icabode, concordando com Drake.
– Eu os proíbo – Icabode pegou uma metralhadora e se aproximou dos dois.
Drake bufou com desdém. Ele deu as costas, ignorando a ameaça e se virou sobre o cadáver do capanga. Quando ele mordeu o pulso do sujeito, uma rajada de balas transformou a cabeça do homem em uma peneira. Drake caiu para o lado, incrédulo.
Icabode jogou a metralhadora no chão e se afastou, decidido.
– Você poderia ter me acertado! – Drake ficou de pé.
– Talvez eu devesse – Icabode se virou para ele.
– Por favor, acalmem-se – Katherine pediu. – Nós estamos no mesmo lado aqui. Se alguém puder me explicar o que está acontecendo, talvez eu possa ajudar.
Antes que alguém respondesse, Katherine começou a levitar para trás, rapidamente. Seu corpo sumiu em um beco escuro, enquanto a voz de Rabin ribombava pela noite:
– Parem de procurar Maxiocán, ou nunca mais verá sua tia!
Sirenes vinham de várias direções, Icabode e os outros se entreolharam, perdidos. Um movimento chamou sua atenção. A tampa de um bueiro se arrastou para o lado, e um homem saiu lá de dentro. Ele era monstruosamente feio. Sua pele era escamosa, não tinha orelhas e seus cabelos eram ralos. O cheiro que vinha do sujeito era nojento e causava ânsia em Icabode. Ele vestia roupas do Exército da Salvação e luvas sem dedos.
– Venham, entrem aqui – ele apontava para o buraco do esgoto. – O dia está prestes a nascer, e várias viaturas estão vindo pra cá.
Caveira deu de ombros e obedeceu, saltando no buraco. Drake Sobogo hesitou um pouco mas fez o mesmo. Icabode foi o último.
Os três pisaram no chão molhado do esgoto, ouvindo o som das sirenes sobre suas cabeças. O homem escamoso fechou o buraco, cortando o último feixe de luz que vinha de cima.
Apesar da escuridão, os sentidos aguçados de Icabode revelaram algo. Leves movimentos ao redor indicavam a presença de outras pessoas. O cheiro de podridão o fez tampar as narinas. Viu dezenas de silhuetas cercando-os. Por fim, como se fossem piscas-piscas, várias luzes vermelhas apareceram na escuridão.
São olhos, Icabode concluiu. Por fim, dois olhos amarelos se acenderam quando o escamoso ficou em sua frente.
– Você! – Icabode reconhecia aqueles olhos. – Você é o crocodilo!
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Nos capítulos anteriores: Durante a assembleia dos vampiros nova-iorquinos, Fermín se voltou contra os outros dois membros do Conselho e os traiu, fazendo com que seus aliados os matassem. Em seguida, ele pediu para se manter como príncipe interino até conseguirem destruir Solomon Saks. Icabode seria enviado para essa missão, junto com Drake Sobogo, que fora transformado em vampiro.
Todos os músculos de Drake sobogo estavam cobertos de veias. Ele parecia um gladiador núbio, com olhos vermelhos e caninos de lobo. Seus punhos se fecharam, e os vampiros na sala recuaram, assustados.
– Ele deveria ter recuperado a consciência – Leo garantiu, surpreso.
– Eu recuperei – Drake rosnou, tirando uma lasca do taco que Leo quebrara em sua cabeça.
– Não faça nada de que vai se arrepender, negro – Fermín afirmou, cauteloso.
– Eu nunca me arrependeria de matar vocês – Drake se inclinou na direção dos dois.
– Capitão Sangrento – Icabode chamou. Ele ainda não sabia seu nome verdadeiro. – Nós precisamos unir forças para acabar com Solomon. Se brigarmos agora, não teremos chances contra ele.
– Solomon… – a voz de Drake era áspera, carregada de raiva. Seus músculos se retesaram com o nome, como se fosse uma fera prestes a perder o controle.
Icabode sentiu um cheiro forte emanar do boxeador. Seu olfato era aguçado de uma forma sobrenatural. Ele reconhecia os hormônios do homem sua frente. Drake era puro músculos e ódio.
O boxeador tinha tanta raiva que a cada movimento feito ou palavra dita, ele sentia prestes a se descontrolar e destruir tudo ao redor. Fermín foi até um quarto e voltou com um sobretudo de couro, e o jogou aos seus pés.
– Esse casaco era de Ivanovitch. Você não pode sair por aí desse jeito, todo sujo e rasgado.
O boxeador o vestiu. O sobretudo era três vezes maior do que o ele, mas por hora serviria. O clima na sala era tenso, e Icabode pousou a mão no ombro de Drake.
– Não – o outro rosnou. – Eu não quero machucá-lo, garoto.
Icabode recuou, surpreso. Não achava que o Capitão Sangrento fosse capaz de feri-lo. Essa é a maldição da besta, rapaz, Fermín explicou em sua mente. Depois do Abraço, nunca mais somos os mesmos.
– Meu príncipe – um homem magrelo, com rosto redondo e bigode fino entrou na sala. – Houve um ataque em Little Italy. Solomon Saks foi visto nos estabelecimentos protegidos pela máfia.
– Ele não está eliminando só os vampiros – Leo disse. – Também está atacando os carcamanos.
– A Cosa Nostra é a máfia mais poderosa de Nova York – Fermín os lembrou. – Se Solomon já está confiante para ataca-los, então as coisas estão preocupantes.
– Nós já temos um lugar para começar a busca – Drake disse, olhando para Icabode. – Vamos agora.
– Antes de ir, precisamos passar em um lugar – Icabode respondeu, se virando para Fermín. – Nos consegue um transporte?
– Coruja, quem pode ser o motorista deles? – Fermín se virou para o homem magrelo de bigode fino. Este lhe respondeu com um olhar preocupado.
– Tem o Caveira.
O caveira fazia jus ao nome. Ele usava uma máscara de caveira e roupas negras. Ele vestia um moletom com gola rolê, e usava coldres de ombros, com dois revólveres. Fermín lhe deu a chave do Cadillac azul metálico, conversível.
Icabode segurava-se na porta, assustado com a velocidade. No banco traseiro, Capitão Sangrento olhava para frente, indiferente, frio, como se não temesse nada. Acima deles, a lua parecia uma moeda gigante, reluzente, cercada de nuvens.
Os prédios da incrível Manhattan pareciam se curvar sobre o conversível, prestes a tombarem. Caveira mudava a frequência do rádio, xingando.
– Quem diabos é esse Frank Sinatra? Já é a terceira vez que tocam uma música do sujeito. Esses italianos estão tomando conta da nossa cidade, estou dizendo. Fico feliz que Solomon Saks esteja eliminando alguns deles.
– Você está feliz por inocentes estarem morrendo? – Icabode perguntou, incrédulo.
A máscara de caveira virou em sua direção.
– Italianos são tão inocentes quanto os irlandeses – o motorista respondeu. Sua voz era debochada e divertida. – Mas eu ainda prefiro os irlandeses. Eles sabem fazer um café da manhã filho da puta.
– Você valoriza a comida de alguém, mas não está nem aí com pessoas morrendo?
– Pessoas morrendo são a minha comida de agora. Então eu as valorizo mais do que nunca.
– Doente – Icabode olhou para o outro lado, resignado.
Minutos depois, o conversível parou em frente ao prédio de Sunday. Drake olhou para cima, surpreso. Ele e Icabode trocaram olhares, e desceram.
– Nos espere aqui – Icabode disse, mas Caveira já pulava por cima dos bancos.
– Desculpe, gracinha, mas Fermín me enviou para garantir que vocês não saiam dos trilhos – ele olhou para a mão deficiante de Icabode, e juntou as suas próprias perto do peito. – Ui, onde estão os seus dedos?
Icabode suspirou, desconfortável com a presença daquele sádico. Os três seguiram pelo saguão e subiram as escadas até o andar correto. Caminharam pelo corredor acarpetado e pararam diante da porta com a faixa policial. Os ouvidos aguçados de Icabode captaram passos no interior do apartamento. Ele fez sinal para os dois companheiros esperarem. Fechou os olhos e tentou se concentrar. Ouviu batidas rítmicas e abafadas. Batimentos cardíacos, concluiu.
– Sunday – ele sorriu para Drake. – Sunday está em casa.
Os três passaram por baixo da faixa e adentraram o apartamento, Icabode os guiou até o quarto de onde vinha o som. Ao abrir a porta, viu a silhueta sair do banheiro. Ela olhava para o trio com surpresa.
– Oh, droga – a mulher disse. Ela usava um vestido amarelo, da cor do chapéu. Seu cabelo era curto e negro. Ao redor de seus olhos, pés de galinha revelavam uma certa idade. – Vocês são vampiros.
– O que foi que nos entregou? – Caveira perguntou e se virou para os caninos expostos de Drake Sobogo. – A gente não tem muitas regras em nossa comunidade. Mas revelar nossa identidade faz parte das poucas que tempos. Então será que você poderia… – ele fez uns gestos desajeitados apontando para as presas do boxeador.
– Icabode – Drake rosnava, salivando. – Ela deve ser uma espiã de Solomon.
– Quem é você? – Icabode perguntou, mostrando a mão para que Capitão Sangrento se acalmasse.
– Icabode? – ela repetiu o nome, curiosa. – Você é Icabode St. John? Filho do Reverendo Peter?
– E quem é você? – ele perguntou novamente, surpreso.
– Eu sou Katherine, sua tia – ela sorriu, ansiosa. – Não lembra de mim?
Caveira e Drake aguardavam na sala, enquanto Icabode conversava com Katherine no quarto.
– Eu vim assim que Sunday me disse sobre os seus pais – ela enxugava as lágrimas com um pano cor de rosa. – Ele falou que você estava aqui, e eu atravessei o mundo para encontra-lo – Katherine deu um sorriso em meio aos soluços. – Se eu visse mais um canguru na minha frente… – ela revirou os olhos com raiva.
– Estou feliz que veio, tia – Icabode tinha medo de se aproximar demais. Agora que era um monstro, pensaria duas vezes antes de ficar perto de um mortal.
– Eu disse para Sunday protegê-lo – ela apontou para Icabode dos pés à cabeça. – E quando chego aqui, descubro que meu sobrinho foi abraçado!
– Você já sabia da existência de vampiros?
– Claro. Foi por isso que eu e Sunday não demos certo! – ela viu a cara de surpresa de Icabode. – Você não sabia que nós éramos noivos? Como você acha que Sunday virou amigo de seus pais? Eu os apresentei. Mas essa profissão de detetive ocultista não era vida pra mim. Então nos separamos. Eu me casei com um dentista e fui para a Austrália – sua feição ficou pesada. – Mas Sunday ainda é o amor da minha vida. Estar aqui me assusta muito.
Icabode não sabia o que dizer. Ele engoliu seco e olhou ao redor.
– E onde ele está agora? Vai demorar a voltar para o apartamento?
– Eu esperava que você me dissesse isso. – ela respondeu, decepcionada. – Cheguei há poucos dias na cidade, e tenho passado os dias aqui no apartamento, mas ele nunca apareceu. Eu evitei ficar depois que escurecesse, temendo as criaturas da noite, então ia para um hotel. Hoje decidi arriscar e ver se eu o encontrava pela noite – ela pegou um cigarro e o acendeu, triste.
– O cigarro – Icabode se lembrou da bituca que vira no cinzeiro. – Não era do Sunday, era seu.
– Perdoe-me – Katherine se levantou e se encaminhou ao banheiro. – Preciso retocar a maquiagem. Uma dama não pode andar por aí como um palhaço bêbado.
Sozinho no quarto, Icabode conseguiu ouvir sua tia sussurrando.
– Onde está você, Sunday? Se você voltar, eu juro que largo o Jerry. Volte e vamos continuar de onde paramos.
Ela ainda o ama, Icabode pensou, triste. Em seguida, ele ouviu passos rápidos no corredor do prédio. Se levantou e correu até a sala.
– Temos visitas – ele avisou aos dois companheiros.
Drake Sobogo fechou os punhos. Seu corpo tremia de ódio. Ele queria sangue. Ao seu lado, Caveira puxou os revólveres dos coldres.
– Visitas ruins, eu imagino – ele perguntou, coçando a virilha com o cano de uma arma.
De repente, alguns homens entraram no apartamento. O mais alto deles era Troche, o Judeu de Ferro. Icabode e Troche já estiveram juntos naquele apartamento, semanas atrás. Quando eles eram aliados de Solomon na suposta guerra contra os vampiros.
– Nos encontramos de novo – Troche olhou para Drake Sobogo. – Eu te dei uma surra da outra vez. Quer mais uma?
Drake abriu o sobretudo e o jogou no chão, espumando pela boca. Ele olhou para Icabode, esperando a permissão para atacar.
– Um passarinho me contou que este apartamento estava bem movimentado, com luzes, pessoas e tudo mais – Troche revelou. – E Solomon não gosta muito da ideia de ter um detetive ocultista solto por aí. Sunday sabe demais, e conhece gente perigosa. Ele tem que morrer – ele olhava ao redor. – Digam, onde ele está?
– Garoto – Drake implorou, e seus olhos estavam injetados.
Icabode sabia que era inútil segurá-lo. O conflito era inevitável. Caveira ergueu os revólveres e puxou os cães com os polegares. Ele inclinou a cabeça para o lado e sugeriu.
– Solte o Kraken.
Icabode suspirou e assentiu. Nos próximos minutos, dezenas de pessoas morreriam. Tanto vilões quanto inocentes, adultos e crianças. E Icabode mal sabia, mas ele também perderia sua tia naquela noite.
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Bem vindo à segunda parte de “COMO SE TORNAR UM BOM MESTRE DE RPG”. No passo anterior, nós vimos que a inspiração é para o RPG como o recheio é para o bolo. Para isso, você deve ler, jogar, assistir e se alimentar de conteúdos acerca do cenário que pretende narrar. Cada pedacinho de informação irá agregar bastante nas descrições ao longo da sessão.
Vamos então para a Parte 2, que é “O Preparo”. Você pode pensar que o principal fator para uma mesa de RPG ser divertida é ter um narrador criativo e que saiba improvisar. Talvez seja o seu caso, talvez não. Mas no fim, não importa. O que importa de verdade é o quão preparado você está.
Certo narrador inexperiente se ofereceu parar narrar uma sessão de Game of Thrones. No jogo, eu era herdeiro de um lorde já velho. Meu pai estava dando uma festa, e o nosso castelo era cercado por montanhas, com apenas uma estrada de acesso.
Havia uma convidada na festa, esposa de um lorde de pouca importância, de uma terra não muito perto da minha. Ela viera sem o marido, e com uma guarnição de poucos soldados.
Em certo momento da festa, ela veio até mim, e disse que era a única pessoa que sabia o segredo de minha família, e em seguida me chantageou. Acontece que o nosso segredo era terrível, e se o Lorde Suserano descobrisse, mataria a todos nós. Então eu sorri para a lady e disse que ela não voltaria pra casa com vida. Mandei soldados a vigiarem a noite inteira, e coloquei arqueiros na muralha para matarem-na assim que ela saísse pelos portões, e jogassem seu corpo na floresta para parecer que foram salteadores. Eu a deixei sem saída.
Nesse momento, o mestre ficou completamente sem reação. Ele achou que meu personagem se dobraria à chantagem, o que não aconteceu. A partir daí, ele começou a “improvisar”, cometendo um erro atrás do outro, tentando recuperar o trilho da história, e o jogo desandou. Perdeu total controle de seus planos. Os jogadores ficaram muito incomodados com aquilo, e aquela foi a última sessão do jogo.
O grande problema aqui foi a falta de planejamento. Não importa se você sabe improvisar ou não, um narrador deve SEMPRE preparar suas sessões. Sem esse preparo, o seu jogo está condenado ao fracasso.
Um RPG é tão divertido quanto o preparo de seu narrador. Pouco preparo, pouca diversão. Provavelmente o narrador da história acima pensou “vou colocar uma antagonista pra aparecer na festa e chantagear os jogadores, e BUM! Minha história está feita”.
Quando você coloca um desafio com mais de uma alternativa de solução, esteja preparado para reações diversas. Muitas vezes eles vão escolher um caminho diferente do que você imaginava. Se eles virem uma solução mais interessante, eles irão escolhê-la, mesmo que não seja a primeira opção do mestre.
Caso você decida fazer uma aventura sem uma grande trama, e criar um mundo aberto, ainda assim, é preciso preparar os pequenos plots que surgirão durante as sessões, pois o mundo aberto é cheio de surpresas. Ele não para. Tramas e plots pequenos acontecem o tempo todo ao nosso redor. Um jogo onde nada acontece é chato e maçante.
O narrador é a pessoa responsável por conduzir o jogo. Ele deve abrir as portas da diversão, com plots twists, dramas, clímax e combate. O papel dos jogadores é reagir a esse mundo que você irá apresentar. Essa condução não deve ser meramente espontânea, mas fruto de uma preparação anterior. Esse preparo deve ocorrer da seguinte maneira:
Você deverá tirar um bom tempo durante a semana para organizar a próxima aventura. Separe o objetivo principal das side quests. Estas últimas missões poderão ser mais flexíveis. Deixe os jogadores à vontade para lidar com elas como quiserem. A missão principal precisa ser resolvida de apenas um jeito (normalmente), pois isso torna mais fácil para você conduzi-los.
Digamos que há um vírus alienígena assolando sua cidade, e a única maneira de combate-lo é pegando um soro que se encontra no local “X”. As pessoas estão morrendo rápido e você está correndo contra o tempo, o que você vai fazer?
O caminho até o local “X” é algo que os jogadores decidirão como fazer, mas a cura para o vírus foi determinada pelo narrador, e não há outra alternativa. E esse é o segredo para conduzir os jogadores para o caminho que você deseja. Dê a eles a possibilidade de fazerem várias coisas como quiserem, mas sempre tenha o freio do objetivo principal.
É claro que isso não é uma regra. Eu já deixei missões em aberto, para os jogadores resolverem de forma como queriam, mas tenha em mente que isso pode acontecer mais rápido do que você espera. O freio serve para você controlar o tempo do desempenho, deixando essa conclusão sempre para o final. Se a melhor parte da sua crônica acabar na metade de uma sessão, dali pra frente, nada será tão excitante.
Caso você queira deixar as soluções em aberto, dando para os jogadores as alternativas que eles quiserem, é sempre bom ter plots extras. Isso vai garantir que seu jogo tenha o tempo de duração que você quiser.
Mas se você optar por usar o freio para deixar o melhor para o gran finale, administre a “rota da aventura”, simulando previamente as possíveis escolhas dos jogadores.
Por exemplo, você quer que um personagem entre num navio. Assim, basta dar indícios de que o assassino de sua esposa está em uma ilha. “Ah, mas e se ele pegar um avião?”. Faça a ilha ser um lugar sem pista de pouso, que a região é montanhosa e cheia de ventos, e que nenhum avião vai até lá.
É importante ter pensado e anotado cada etapa da sessão durante a semana, pois os jogadores perceberão se você veio preparado ou se inventou na hora só para prejudica-los.
O preparo é a diferença entre o narrador controlador e o narrador dedicado. Lembre-se, todos amam o Gandalf, mas ninguém gosta do Gríma manipulador.
Nos capítulos anteriores: Icabode foi levado até o apartamento do Conselho onde os vampiros de Nova York se reuniam. Durante a reunião, Fermín traiu a Juíza e a Dama do Véu Negro, declarando que elas eram as culpadas pela criação de Solomon. Em seguida, os vampiros ao redor exterminaram as duas mulheres diante de todos.
Fermín havia tombado no chão, e agora ele estava de pé, vendo os cadáveres de suas colegas envelhecerem como múmias. Leo se colocou em sua frente e disse:
– E agora, meu príncipe, posso terminar o que comecei? – ele apontou o taco em direção a Drake Sobogo, e Fermín permitiu com a cabeça.
– Vossa Majestade – Lorena se curvou diante de Fermín. – Solomon Saks matou minha mentora. Como nós iremos captura-lo?
– O que vocês estão fazendo? – Lancelot, o velho albino perguntou, olhando de Leo a Lorena. – Não podem simplesmente escolher o príncipe em nome de todos nós.
– Sim! – alguém se manifestou. – É preciso fazer uma eleição.
– Vocês querem uma eleição? – Fermín foi até Icabode e arrancou a estaca de seu peito. Icabode caiu de joelhos, se livrando da paralisia. – Diga-me neófito. O que aconteceu com Ritzo quando ele tentou empalar Solomon Saks?
Icabode olhou para ele, surpreso.
– Como você sabe disso?
– Ainda não entendeu que sou telepata? – Fermín respondeu, cansado. – Estou lendo a sua mente pelas últimas duas horas. Agora responda! Diga a eles o que aconteceu no cemitério.
Foi por isso que você me poupou, Icabode pensou, olhando pra ele. Eu sou o único que sabe da magia de proteção de Solomon, e também que existe alguém que pode revertê-la.
– Solomon Saks está protegido por um ritual muito forte, e não pode ser empalado – Icabode revelou, olhando para os vampiros ao redor. – Ele removeu o próprio coração do peito.
– Mas isso é o de menos – alguém resmungou. – É possível matar um vampiro sem ter que empala-lo antes.
– Mas Solomon consumiu a alma de vários vampiros poderosos – Icabode disse, sério. – Seu corpo está se tornando uma coluna de pedra, e dificilmente alguém conseguirá feri-lo. Ele é praticamente imortal. Se não conseguirmos paralisá-lo, não conseguiremos causar dano algum em seu corpo.
– As coisas não são bem assim – Fermín colocou a mão no ombro de Icabode. – Por um lado, o jovem aqui está correto. Solomon é veloz e maciço. Ele se move como uma bola de canhão. Mas se for empalado, mata-lo será tão fácil quanto matar um filhote de gatinho.
– Mas você o ouviu – Lancelot apontou para Icabode. – Ele removeu o coração do peito. É impossível enfiar a estaca em uma coisa que não existe.
– Por isso que meu jovem escudeiro aqui – ele apertou o ombro de Icabode – irá para o México. Ele sabe onde está a única pessoa capaz de reverter essa situação.
Colabore, a voz de Fermín entrou na mente de Icabode. Se você obedecer, eu removerei sua condenação, e você poderá viver em Nova York em paz.
– Porém! – Fermín ergueu um dedo. – Eu serei o vosso príncipe interino durante essa caçada de sangue. Sem eleições até que eu mate Solomon.
– Ou que você fracasse – Lancelot inclinou a cabeça.
– Como quiser – Fermín sorriu para ele. – Todos estão de acordo?
Ao redor, os vampiros sussurravam e olhavam uns para os outros. Icabode tinha a sensação de ver um grupo de cobras em formatos humanos, sibilando tramas o tempo inteiro. Não houve uma discordância sequer. Fermín assentiu, satisfeito.
– Mas eu irei sozinho? – Icabode perguntou, quebrando o silêncio. – Não seria muito inteligente mandar um neófito sozinho para uma missão de tamanha importância, não acha?
– Claro que não – Fermín respondeu, entortando a boca com a observação. – Nós poderemos abrir espaço para voluntá…
– Ele vai comigo – Icabode apontou para Drake Sobogo. – Nós já trabalhamos juntos uma vez, e não confio em ninguém mais. Mas ele tem que permanecer assim, mortal. Eu preciso de alguém para fazer coisas durante o dia.
Drake se inclinou até conseguir se sentar. Estava muito fraco. Ele recostou contra a parede e assentiu, agradecido.
– Ele é meu – Leo disse, segurando o bastão de baseball com força.
– Ele continuará sendo seu – Fermín avisou. – É apenas uma missão. Ele voltará para ti.
Leo olhou de um lado para o outro, incerto. Por fim, assentiu, um segundo antes de girar o bastão com força e acertar o peito de Drake. Icabode ouviu o som dos ossos quebrarem, provavelmente perfurando o coração do boxeador. Sua caixa torácica estava esmagada, e Drake morreria em segundos.
– O que você fez? – Icabode gritou, cruzando a sala.
– Não é você quem decide se ele vai como mortal ou não – Leo o desafiou. – E se achar ruim, eu o deixo assim mesmo, e procurou outro para abraçar.
Drake cuspia sangue sem parar. Seu corpo deslizava pela parede, caindo no chão, de lado. Seus olhos também estavam cheios de sangue. Ele segurava seu peito afundado, tentando encontrar Icabode com os olhos. Morreu dois segundos depois.
Icabode caiu de joelhos. Estava farto daquilo. Era um homem temente a Deus. Seu pai, o reverendo, o ensinara sobre o caminho que devia andar, e Icabode sabia o que era certo e errado. Aquilo ali era muito errado. Ele queria mandar aquele salão pelos ares. Matar todos os vampiros, incluindo a si mesmo.
Só que você não pode, Sunday disse. Eu preciso de você. Não faça nenhuma loucura. Vá até o meu apartamento o mais rápido possível.
Eu não sei se aguento mais, Icabode respondeu, olhando para o corpo do Capitão Sangrento. Eles são muito malignos. São criaturas odiosas e infernais.
Mas eles são os únicos que podem ajuda-lo a enfrentar Solomon Saks, que é o pior deles! Sunday o lembrou. E se você não obedecer, eles irão mata-lo!
Talvez eu devesse morrer mesmo, Icabode concluiu.
Sua missão não acabou. Talvez sua alma não esteja completamente perdida. Deve haver um jeito de salvá-la… e eu… eu preciso de você.
Icabode limpou as lágrimas de sangue e balançou a cabeça. Sentiu vergonha de seu egoísmo. Sua alma era como um grão de areia. Ela podia estar perdida, mas ainda havia muitas coisas a serem feitas. Muitas criaturas malignas pra destruir. Sunday está clamando por minha ajuda! Não posso pensar só em mim.
Ele se levantou, relutante, e encarou a Leo.
– Então deixe-o descansar em paz – pediu. – Não o transforme.
– Descansar em paz? – Leo sorriu, ficando de cócoras e abraçando o corpo de Drake. – Eu estou fazendo um favor para este aqui, tirando-o do lugar onde ele está agora.
O vampiro bebeu todo o sangue do boxeador, e em seguida depositou algumas gotas do próprio sangue nos lábios do cadáver. Os vampiros ao redor começaram a se afastar, preocupados, menos Leo e Icabode. Algo feio estava prestes a acontecer. Sempre que um vampiro despertava do seu Abraço, ele se tornava uma besta violenta e sanguinária.
Icabode não sabia, mas os membros do clã de Leo eram piores ainda. Assim como Anthony Ritzo, Ivanovitch e Leo, os humanos transformados por um vampiro desse clã, eram naturalmente explosivos e dados à violência. Drake Sobogo se tornaria uma máquina de matar em três, dois, um…
Os olhos vítreos e mortos do boxeador se moveram repentinamente. Suas mãos empurraram o chão, e ele estava em pé no instante seguinte. Sua pele estava pálida, como se tivesse maquiagem. Os olhos cheios de sangue olhavam para cada pessoa ao redor. Ele abria as mãos como se tivesse garras ao invés de dedos.
– Cuidado! – alguém gritou.
Drake Sobogo se locomoveu mais rápido que um piscar de olhos, e três vampiros foram jogados para o alto. O boxeador atravessou a multidão, batendo e mordendo em todos que estavam em seu caminho.
– Que divertido! – Lorena bateu palmas, rindo. – Me sinto em Madri!
– Leo, controle sua prole! – Fermín gritou, exasperado.
Leo bateu o bastão na própria mão e começou a caminhar na direção da confusão. Icabode se pôs ao seu lado. Queria evitar danos maiores ao companheiro. Os vampiros saíam da frente enquanto os dois se aproximavam. Alguém começou a gritar de dor no fundo da multidão, onde Drake se enfiara.
– Vem, gatinho, gatinho, gatinho – Leo chamou, alcançando o canto do salão.
Drake estava de cócoras, segurando o braço de um mortal. Ele mastigava a mão do sujeito, que agora era apenas um cotoco ensanguentado onde acabava o antebraço. O homem desmaiara de dor, enquanto uma vampira olhava para Leo, furiosa.
– Chegou a hora de você transformar o seu lacaio em um de nós – Leo deu de ombros, sorrindo.
– Ele nunca mais terá uma mão! – a vampira apontou para o mortal.
Drake olhou para eles, ainda mastigando. Seu rosto estava lambuzado, como se chupasse uma manga vermelha. Ele deixou o braço cair no chão, se virando para os dois. Icabode engoliu seco, percebendo o movimento de caçador. Drake se jogou sobre as pernas traseiras, mas foi interceptado no ar pelo bastão de Leo que se estilhaçou em sua cabeça.
Drake caiu de costas no chão, cheio de lascas de madeira no rosto. Leo ficou ao seu lado e enfiou a parte pontuda que o bastão se tornara, direto no peito do boxeador. Ele pegou o vampiro empalado e o arrastou até um quarto. Depois, voltou para a sala, segurando a estaca ensanguentada. Ele foi até o lacaio maneta e separou o resto de seu braço do ombro, e jogou o membro no quarto em que colocara Drake.
– O que você fez? – a vampira gritou, olhando para seu lacaio agora sem um braço inteiro. – Você pagará por isso, Leo!
– Ele já tinha perdido a mão mesmo! – Leo respondeu, segurando a maçaneta da porta, enquanto Drake se alimentava sozinho do outro lado.
Icabode olhou para o mortal no chão, perdendo litros de sangue no carpete. Depois se virou e viu todos os vampiros sorrindo da situação, como se ele fosse apenas um animal qualquer. Meu Deus, Icabode pensou, isso é um ninho de demônios.
Ele se recostou ao lado da porta e ignorou todo o resto, esperando que o Capitão Sangrento ficasse consciente de novo. Fermín disse mais algumas palavras e dispensou os outros vampiros da sala. Os últimos a ficarem, foram Leo e Lorena, os maiores apoiadores do novo príncipe.
– Você sabe que o meu clã é o mais numeroso de Nova York, não sabe? – Lorena disse, olhando para Fermín. – Enquanto eu decidir que você é o príncipe, as coisas estarão favoráveis a você. Ninguém quer me ver irritada.
– Confesso que fiquei surpreso quando você matou a Juíza e declarou seu apoio a mim, publicamente – Fermín disse, avaliando-a.
– Poucos tem o poder de remover e colocar governantes – ela disse. – Eu só queria que todos se lembrassem disso – ela se virou e sorriu. – Além do mais, ter um príncipe como um devedor é magnifique!
Lorena sumiu pela porta, deixando Fermín com Leo e Icabode. Leo olhou para o príncipe, incomodado.
– Tome cuidado com essa aí.
– Eu tomo cuidado com todos – Fermín mostrou um sorriso pra ele. – E você mostrou ser leal hoje. Eu irei recompensá-lo por isso.
– Me torne seu xerife – Leo pediu. – Eu caçarei quem você quiser, sem questionar.
Icabode assistia os dois, silenciosamente, quando a porta ao seu lado abriu, e dela saiu um Capitão mais Sangrento ainda.
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Nos capítulos anteriores: Após descobrir que Solomon fizera um ritual para remover o próprio coração, evitando que fosse empalado e paralisado, Icabode descobriu que havia um homem no México capaz de reverter tal feitiço. Ele percorreu os esgotos e Nova York, escapando de um crocodilo gigante, enquanto Solomon matava vampiros em vários locais da cidade. Icabode foi até o apartamento de Sunday e se permitiu ser levado por capangas do Conselho, quando viu uma bituca de cigarro no cinzeiro, o que o levou a concluir que Sunday tinha passado durante o dia ali.
Icabode estava paralisado com uma estaca no coração. O enviado do Conselho o enfiou em uma mala apertada, e a arrastou pelos degraus do prédio. Icabode sabia exatamente quando seu corpo fora jogado no porta mala de um carro, e minutos mais tarde, quando foi tirado. O barulho de um bagageiro batendo era inconfundível. Vozes em um lugar cheio de eco discutiram sobre quem o carregaria escadas acima.
Sunday, onde está você? Icabode pensou, lembrando da bituca do cigarro que avistara no apartamento do detetive. Eu sei que você esteve em casa. Por que não fala comigo?
Ele não sabia quem o levava pelas escadas, mas a má vontade era perceptível. O corpo de Icabode batia em cada degrau, arrastado por dezenas de andares.
Ele sentiu seu corpo girar no ar e acertar algo fofo, uma cama, talvez. Luzes invadiram sua visão, e alguém colocou seu corpo em uma poltrona. A suíte era coberta com seda, veludo e molduras de ouro. Três rostos familiares o observavam do outro lado do quarto.
– Devemos mata-lo agora? – a Dama do Véu Negro perguntou.
– Não – a Juíza respondeu lambendo os lábios cheios de pústulas. – Devemos mata-lo em frente aos membros. Nós queremos que cada vampiro de Nova York canalize o seu julgamento a esse neófito.
– Concordo com a Juíza – Fermín Pedralbes disse, ajeitando o seu pince-nez sobre o nariz. – Esperem os membros chegarem. Nós diremos que foi esse garoto quem criou Solomon Saks. E que por causa disso, todos os vampiros que morreram esta noite são de responsabilidade dele.
– Teve mais algum ataque? – a Dama de Véu Negro perguntou.
– Mais dois vampiros foram mortos no Queens. O Coruja acabou de me informar – Fermín disse, encarando Icabode. – Solomon está fazendo um limpa na cidade.
– E se eles pedirem para o garoto falar? – a Juíza perguntou. – Ele dirá que nós o enviamos para lidar com o Solomon. Os vampiros ficarão furiosos ao saber que enviamos um neófito.
– A gente não sabia que Solomon iria fazer o que fez hoje – A Dama do Véu Negro ripostou, nervosa.
– Isso não importa, minha cara – Fermín se afastou das duas, olhando para o chão. – Solomon matou muitos vampiros importantes ontem e hoje. Ele exterminou os homens de Anthony na outra semana. Nossa única medida foi enviar um neófito para lidar com isso. Essa derrota causaria a nossa destruição. A estaca não pode sair dali – ele apontou para o peito de Icabode. – O garoto não pode nos delatar. Precisamos mata-lo antes que alguém queira ouvir seu depoimento.
Os três olharam para o prisioneiro, e Icabode sentiu sua vida ser pesada e analisada. Não importa a solução que o Conselho encontraria, ele sabia que não iria sobreviver aquela noite.
Alguém bateu a porta, e um homem de terno e chapéu entrou.
– O salão já está cheio, Juíza. Os membros estão impacientes.
– Então devemos resolver isso imediatamente – a Juíza disse, olhando para a Dama do Véu Negro.
A outra vampira ergueu a mão, e Icabode começou a flutuar. Ele viu seu corpo levitar pelo quarto até um salão onde um gramofone tocava Bach, Prelude From Cello Suite No 1. Aquela música enchia o coração de qualquer um de melancolia, tristeza e beleza ao mesmo tempo.
Como nunca ouvi essa música antes? Icabode pensou, sentindo a mão gelada da morte acariciar seu rosto.
Havia quase cem pessoas no cômodo, todos com expressões de raiva ou preocupação. Eles se viraram rapidamente em sua direção, mostrando os caninos.
Icabode quis gritar. Não imaginava que existiam tantos vampiros assim. Mais do que nunca, ele sabia que estava morto. Um vampiro com jaqueta de couro, segurando um bastão de baseball foi para o centro da sala, tirando os óculos escuros do rosto.
– Eu exijo ser ouvido primeiro! Onde está Anthony Ritzo? Nós dois somos os últimos sobreviventes do nosso clã, e vocês ainda estão o caçando? Isso é pura babaquice! Quero que isso acabe imediatamente!
– Babaquice, Leo? – uma mulher de longos cabelos vermelhos deu um passo a frente. – Pelo que ouvi falar, Solomon Saks foi abraçado e se fortaleceu debaixo das asas de Ritzo. Todos estão dizendo que eles estão trabalhando juntos.
O vampiro de jaqueta segurou o taco de baseball com firmeza e olhou para a mulher.
– Lorena, se é você quem anda espalhando essas mentiras, vou esmagar o seu crânio até ele virar farinha branca.
– Acalmem-se todos! – a Juíza ergueu as mãos. – Nós precisamos ser inteligentes para lidar com Solomon Saks.
Icabode foi colocado de pé, encostado a uma parede enquanto assistia a reunião. Seus olhos captaram num canto, uma pessoa deitada no chão. Capitão Sangrento! Ele reconheceu Drake Sobogo acorrentado ao pé da mesa, caído como um cachorro obediente. O soldado tinha o rosto cheio de feridas, e estava magro. O que eles fizeram com você?
– Por que eu deveria dar ouvidos a vocês? – Leo se colocou à frente da Juíza, apertando o taco. – Eu estou sozinho aqui. Não tenho ninguém do meu clã para cuidar das minhas costas. Solomon já matou todos os outros, incluindo Ivanovitch.
– O que você quer para se acalmar Leo? – Fermín perguntou, tentando controlar os nervos.
– Eu sou o último do meu clã. Isso não pode ficar assim!
– Você quer a permissão para o Abraço, é isso? – Fermín perguntou, atencioso.
– Pra começar, seria bom – Leo disse, controlando o tom de voz.
– Eu não veria problema nisso – Fermín olhou para a Dama do Véu Negro, que concordou com a cabeça. Os dois olharam para a Juíza.
– Claro, claro – ela abanou a mão para o vampiro em sua frente. – Você poderá escolher um mortal para torna-lo membro de seu clã.
– Eu quero aquele ali – Leo respondeu, apontando para Drake Sobogo.
– Você não deseja procurar com paciência alguém que se encaixe no perfil… – a Juíza começou a perguntar, mas foi interrompida.
– Não preciso – Leo atravessou a sala até onde Drake estava caído. – Eu conheço esse negro aqui. Ele é conhecido como Capitão Sangrento nos becos de Nova York. É o melhor boxeador que já vi. Se ele não faz o perfil do meu clã, ninguém mais faz.
– Que seja! – a Juíza disse, impaciente. – Mas saiba que ele estava envolvido com Solomon.
– Eu estava tentando mata-lo quando vocês me prenderam! – Drake gritou, fraco. – Se não tivessem atrapalhado, talvez eu tivesse conseguido.
– Silêncio! – a Juíza gritou, pega desprevenida. – Leo, mate-o antes que eu mude de ideia.
– Algo me diz que o seu companheiro não vai durar muito tempo depois do Abraço – Lorena, a ruiva, salientou, encarando a Juíza.
– O que está sugerindo, senhorita? – a Juíza perguntou, ofendida.
– Que se nem mesmo seu colega, Ivanovitch, o “vampiro mais forte do mundo” conseguiu vencer a Solomon, qual chance nós teremos? Afinal, o Conselho tem algum plano para enfrenta-lo?
– Talvez você queira fazer esse serviço – A Dama do Véu Negro disse, fechando os punhos das mãos.
– Nas outras cidades, eles possuem príncipes – um vampiro disse, brotando do meio das pessoas. Ele era velho e albino. – Na maioria dos lugares os conselhos foram destituídos. Muita burocracia, muita conversa fiada. Também me questiono se vocês têm o que é preciso.
– Poucas cidades são como Nova York, senhor Lancelot – a Juíza informou. – Nosso Conselho sabe trabalhar de forma que as decisões sejam rápidas, eficazes e com quatro cabeças pensantes.
– Três – Lorena corrigiu, mostrando um sorriso. – O mais forte de vocês foi morto e derrotado. Então só restaram três de vocês.
– Vocês ousam desafiar a autoridade do Conselho? – a Dama do Véu Negro perguntou, indo para o centro da sala.
– Acalme-se, minha senhora – Fermín se colocou ao lado dela. – Nós iremos resolver isso da maneira correta – ele se virou para a multidão. – Antes de falarmos sobre a estratégia de capturar Solomon Saks, precisamos desatar uns nós. Sei que muitos de vocês estão confusos sobre quem causou toda essa situação. Sobre quem teria criado Solomon Saks sem nossa autorização.
– E não foi Anthony Ritzo? – alguém perguntou.
– Acho que foi a sua mãe, seu merdinha! – Leo respondeu ao vampiro, com o pé sobre as costas de Drake.
– Por favor, acalmem-se – Fermín pediu, guardando seu pince nez no bolso do colete. – O culpado não foi Anthony Ritzo. Na verdade, ele foi apenas o bode expiatório para levar a culpa.
Todos os convidados franziram suas testas, sussurrando palavras de indignação. Inclusive a Juíza e a Dama de Véu Negro.
– Então você confessa que está jogando a culpa em um inocente só para se safar? – Lorena perguntou com um sorriso incrédulo.
– Não, não – Fermín mostrou a mão para ela. – Eu nunca faria isso. Mas elas sim – ele se virou para a Juíza e a Dama do Véu Negro. – Assim como elas capturaram aquele neófito só para depositar no pobre rapaz a culpa de tudo.
– Você enlouqueceu? – A Juíza perguntou, se aproximando do colega. – O que acha que está fazendo, Fermín Pedralbes.
– Não adianta fingir que não sabe, Excelência – Fermín sorriu pra ela. – Todo mundo sabe que sou telepata. Eu sei que não tenho permissão para entrar na cabeça dos membros, mas em tempos extremos como esse, acha que não iria vasculhar cada um de vocês? Achou mesmo que sua traição passaria desapercebida?
– Traição? Do que você está falando? – Leo perguntou, batendo com o taco na própria mão.
– Elas duas se uniram e abraçaram Solomon Saks com o objetivo de instalar o terror em Nova York – Fermín disse. – Elas acharam que assim, vocês nos dariam poder absoluto para consumir a alma de outros vampiros, para nos equipararmos a Saks. Com o polonês morto, nosso poder e autoridade seriam inquestionáveis. Ninguém poderia se equiparar ao Conselho. Apesar de tal premissa, eu não me deixo levar por tais seduções. O destino de todo megalomaníaco é a morte precoce.
Icabode não acreditava no que estava vendo. Por que Fermín estava mentindo? Por que ele o estava protegendo?
– Eu vou destruí-lo, seu verme traidor! – A Dama do Véu Negro estendeu seus braços, e fez Fermín levitar.
– Tem algum telepata por aí? – o velho Lancelot perguntou, olhando ao redor. – Precisamos verificar se o que Fermín diz é verdade.
– Não existe outro telepata entre nós – a Juíza ripostou, assustada. – E o Fermín sabia disso. Ele sabe que ninguém podia desmenti-lo!
– Agora cabe a vocês escolherem – Fermín disse, se debatendo no ar. – Quem vocês acham que criou o vampiro que aterroriza Nova York, um neófito recém abraçado ou duas vampiras velhas que vivem tramando jogos de manipulação?
– E se você estiver mentindo, Fermín? – Lancelot perguntou, receoso.
Fermín sorriu.
– Por favor, vocês não estavam insatisfeitos com o Conselho? Por que simplesmente não aproveitam a oportunidade de extingui-lo?
– Eu vou te matar agora, sua criatura vil – a Dama do Véu Negro disse, e abriu os braços, usando a telecinese para rasgar o corpo do colega.
Os olhos de Fermín se encheram de sangue, e todos os vampiros ficaram imóveis, assustados. Icabode assistia a cena, aflito. Se elas ganhassem, ele morreria antes que pudesse falar qualquer coisa.
Acontece que antes que ela partisse Fermín em dois, um taco de baseball acertou sua nuca. A Dama de Véu Negro caiu de quatro no chão. Leo, colocou seus óculos escuros de volta e começou a golpeá-la até tornar sua cabeça um grande monte de creme crocante no assoalho.
A Juíza recuou dois passos, apavorada, quando uma estaca surgiu de sua barriga. Em suas costas Lorena sussurrou algo. Os vampiros ao redor agarraram seus membros e a destruíram com as próprias mãos.
Fermín havia tombado no chão, mas se levantara novamente, vendo os cadáveres de suas colegas envelhecerem como múmias. Ele olhou para os lacaios das duas vampiras e ordenou que fossem mortos imediatamente. Ele colocou o chapéu na cabeça e começou a folhear os livros da mesinha enquanto os convidados terminavam a matança.
No fim, Leo se colocou em sua frente e pediu:
– E agora, meu príncipe, posso terminar o que comecei? – ele apontou o taco em direção a Drake Sobogo, e Fermín permitiu com a cabeça.
– Vossa Majestade – Lorena se curvou diante de Fermín. – Solomon Saks matou minha mentora. Como nós iremos captura-lo?
Fermín sorriu e virou o rosto lentamente em direção a Icabode.
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Você teve algumas experiências traumatizantes como narrador, e achou que fosse um mestre ruim? ACHOU ERRADO, OTÁRIO! E eu vou te explicar o porquê.
Assim como andar de bicicleta ou fazer malabarismo, narrar RPG requer prática. Não é porque seu jogo foi horrível, e os jogadores ficaram revoltados, que você seja um mestre definitivamente ruim. Acontece que não existem escolas de um só dia. Tudo que você aprende na vida, leva algumas aulas, e com o RPG não é diferente. Pelo contrário, narrar uma aventura é um desafio muito grande.
Imagine só, você tendo que controlar um universo imaginário enquanto interage com outros personagens que podem tomar centenas de decisões imprevisíveis, e ter que reagir a todas elas de maneira criativa e espontânea. Caso você não seja um George Martin ou um Stephen fucKING, isso não vai ser uma tarefa muito fácil.
Você pode pensar: “ok, então se eu não sou um narrador ruim, apenas inexperiente, como poso mudar isso?”. Eu vou lhe dizer como.
Para facilitar a sua compreensão, vou separar este manual em três partes, cuja primeira é “inspiração”. Sei que é um nome clichê, mas me dê um voto de confiança. Você não vai se arrepender.
Quando você assiste um filme de época, cyberpunk ou medieval, os produtores, diretores e roteiristas querem garantir que os telespectadores tenham uma experiência imersiva na história. Para isso, eles preparam toda a ambientação, tendo cuidado com os figurinos, tipos de linguagem, decoração do cenário, etc. O objetivo disso é arrebatar a pessoa do cinema para dentro daquele mundo.
Igualmente, a cabeça do narrador precisa ser aquele estúdio de gravação. Sua criatividade precisa estar recheada com um set de filmagens. Você tem que pensar como um diretor e falar como um roteirista.
Não estou dizendo que precisa ser um cineasta profissional para ser um mestre de RPG, mas que você precisa ler, assistir e estudar histórias daquele cenário. Sua mente precisa estar munida com elementos daquela ambientação. Caso vá narrar um jogo de Vampiro, leia o material, contos, livros de vampiro. Se você for um cara que nunca leu ou assistiu nada sobre vampiros, como acha que serão os seus NPCs?
Narrador: “Vocês chegam até a fortaleza no cume da montanha, e um homem de bermuda caqui e camisa de gola polo abre a porta, segurando suas próprias mãos. Com um sorriso, ele pergunta: ‘boa noite senhores, vocês se importariam se eu bebesse seu sangue hoje?”.
Você pode achar que esta dica é desnecessária, pois se você pretende narrar alguma coisa, é porque já conhece e gosta desse cenário, e portanto, já leu e assistiu muitas histórias sobre o assunto. Pode até ser verdade, mas o propósito aqui é aprofundar sua imersão.
Quando você assistir um filme medieval, analise a vida do taverneiro, ainda que ele tenha aparecido por apenas cinco segundos. Tente pensar em sua rotina, em seus problemas, em sua família, em sua opinião política, sobre o que pensa do rei. Até mesmo, crie um problema de dicção pra ele. Misture sua personalidade e seus trejeitos com algum personagem da vida real que você conheça. Dê profundidade aos seus NPCs.
Certa vez eu fiz uma longa sessão medieval que girou em torno de um vilarejo cujo depósito de trigo fora contaminado por um fungo. Não houve cenas épicas de combate ou perseguição. Apenas os personagens tentando encontrar a causa da contaminação, e após a descobrirem, como iriam reabastecer o povo para que não passassem fome.
Os jogadores amaram a sessão. Ela foi recheada de elementos cotidianos de um vilarejo medieval, desde a ambientação que foi rica em detalhes, como na história em si. Para isso, eu havia pesquisado sobre contaminações por fungos na idade média, e como isso afetou as cidades e os vilarejos daquela época.
Antes de narrar algo, leia, assista e jogue coisas que envolvam aquele cenário. Veja nas entrelinhas e adapte as histórias. Não há problema em copiar tramas e dramas de outros lugares. Pelo contrário, é uma ótima forma de garantir um plot de qualidade para a sua mesa.
Se você é um mestre inexperiente e deseja narrar um RPG enriquecido, basta você se alimentar de histórias do mesmo cenário de sua mesa. Quanto mais você ler, mais fluídas serão suas sessões, e mais espontâneas serão suas descrições do cenário e dos NPCs. A “inspiração” é a diferença entre superficialidade e imersão profunda.
Nos capítulos anteriores: Após Anthony empalar a Solomon, o polonês percebeu que precisava fazer algo acerca dessa fraqueza. Alguns dias depois da briga, Anthony descobriu que o mafioso se encontrava com um traficante de informações que vivia no cemitério, o Sombra. O grupo foi atrás dele, e descobriram que Solomon pretendia fazer um ritual de bruxaria. Após matarem o Sombra, os mortos se levantaram, e o grupo começou a fugir. No caminho, encontraram com Solomon e seu séquito. Ao tentar empala-lo, Anthony descobriu que Solomon removera o seu coração do peito e o escondera em algum lugar. Em seguida, o polonês o empalara de volta e o matara. Leon fugira, e Icabode se escondera em um mausoléu, onde ouviu o séquito falar sobre alguém chamado de Maxiocan, o único que saberia como reverter o feitiço de Solomon.
Os mortos voltaram para suas tumbas, puxando a terra sobre si com seus dedos esqueléticos. A terra revolvida e os cadáveres atropelados por Anthony Ritzo irão atrair a atenção das pessoas e da polícia, Icabode concluiu, ainda escondido em um mausoléu. Quando seus ouvidos aguçados ouviram o último zumbi se aconchegar em seu caixão, ele saiu do esconderijo. Uma voz idosa e distante o fez parar.
– Mas isso de novo?
Icabode forçou os olhos, e viu saindo de um casebre, o zelador do cemitério. De novo? Ele se perguntou. Pelo visto, aquela não era a primeira vez que os mortos se levantavam. Aparentemente essa não seria a primeira vez que ele limparia essa bagunça. Melhor eu dar o fora daqui, Icabode se virou e correu pelo cemitério.
– Leon, você está aí? – ele chamou não muito alto. O companheiro tinha audição aguçada, e caso ele estivesse nas proximidades, iria escutá-lo. – Leon?
Icabode parou ao ver um corpo carbonizado em uma clareira, com um galho atravessado em seu peito. Era Anthony Ritzo. Se aquele brutamontes não foi páreo para Solomon, quem sou eu?
– Leon, pode me ouvir? – ele voltou a correr.
Depois de alguns minutos, desistiu. Olhou para o céu e imaginou que o amanhecer não estava tão distante. Leon provavelmente voltara para seu esconderijo na Estátua da Liberdade. Muito longe, e eu não aprendi a voar ainda, ele pensou, ficando preocupado. Precisava achar um lugar pra se esconder antes que o sol saísse e o pulverizasse.
Só tem um lugar… pensou, receoso.
Ele corria há mais de uma hora, sentindo seus músculos da perna se contraírem em uma dor lancinante. E não estava nem na metade do caminho. Decidiu sentar no meio fio, sentindo o desespero tomar conta de seu peito. Nenhum lugar parecia ser um esconderijo bom o suficiente. Todas as portas e estabelecimentos estavam fechados. Os becos eram muito expostos, assim como se esconder debaixo dos carros.
Ele sabia que onde quer que se metesse, alguém viria o seu corpo e o confundiria com um cadáver. Assim que a ambulância viesse busca-lo, ele iria para o sol e puf!
Vá para o esgoto, garoto, Sunday falou em sua mente. Icabode arregalou os olhos, feliz por ouvi-lo.
– Onde você está, Sunday? Diga-me, rápido!
Você não pode vir aqui agora. Corra para um esgoto antes que você vire farinha! Correndo contra o tempo, Icabode se levantou e foi até uma boca de bueiro e tentou erguer a tampa de ferro, pesada. Seu corpo estava faminto e esgotado de tanto correr. Os braços magrelos se esticaram e tremeram, e a tampa mal sacudiu.
Rápido, garoto! Você precisa sobreviver! Preciso de sua ajuda!
Icabode olhou para trás e viu o horizonte clarear. O negrume virou um azulado escuro. Sua pele começou a transpirar sangue, enquanto sua mente se enchia de um pavor intenso. A barra de ferro ergueu alguns centímetros agora.
Isso, força!
Ele conseguiu afastá-la um pouco para o lado. Se não fosse a exaustão, não seria tão difícil. Ele sentou, apoiando as mãos no asfalto, atrás. Seus calcanhares pousaram sobre a borda da tampa e começaram a empurra-la. Com uma careta e muita tremedeira, Icabode conseguiu empurrar mais alguns centímetros. Ele tentou enfiar seu corpo na brecha, mas ficou preso nos quadris. Se debateu como um gato aprisionado, e viu o topo dos prédios serem tomados pela claridade solar.
Aos poucos, se espremeu e deslizou o quadril pelo buraco, se contorcendo. Um paredão de luz já marcava a esquina daquela rua, e ele vinha em sua direção. Icabode se apressou, erguendo os braços pra cima, passando a barriga pelo buraco. Quando chegou nos ombros, ficou preso novamente, e o sol refletia sua luz no asfalto, queimando o rosto de Icabode. Num último grito de fúria, ele se impulsionou para baixo e caiu no chão, batendo o lado do corpo.
Muito bem, Sunday disse. Agora procure um esconderijo. Amanhã nos falamos.
Icabode saiu mancando no meio da escuridão, segurando as costelas doloridas. Ele tentou falar com Sunday novamente, mas o detetive não respondeu mais. Icabode viu frestas de luz passando pelo teto do esgoto, e ele tentou fugir o mais longe possível dessas aberturas. O dia estava nascendo, e seu corpo começara a enfraquecer mais ainda. Ele estapeou o próprio rosto, tentando ficar acordado, até que encontrou um entulho de lixo boiando num córrego do esgoto. Ele entrou na água que batia em seus joelhos, e mergulhou, trazendo o entulho para cima de si. A última coisa que ele fez antes de desmaiar foi chorar.
Despertou, assustado. Se levantou da água, empurrando o lixo ao redor. Uma fralda de pano, suja de fezes ficou grudada em seu rosto. Ele a arrancou com nojo. A fome coçava sua barriga com unhas afiadas. Ao redor, ratos corriam aos montes. Ele mordeu o lábio inferior, dividido entre o medo daquelas criaturas e a fome.
– Não farei isso – concluiu, caminhando pelo canal de água entre as calçadas ladrilhadas por onde os ratos cruzavam.
Enquanto procurava uma escada para o mundo de cima, ele atravessou alguns túneis escuros, até que algo chamou sua atenção. Um barulho de água sendo agitada em suas costas.
“Os vampiros não são as únicas coisas perigosas nas noites de Nova York”, Leon dissera na noite passada, alguns minutos antes do cemitério se encher de zumbis.
Houve outro barulho de água revolvida. Icabode se virou lentamente sobre os tornozelos e aguçou o olhar. Duas bolas amarelas reluziam na água, lado a lado. Enquanto ele tentava entender o que era aquilo, as bolas piscaram de forma reptiliana.
Icabode se virou novamente e começou a correr. Ele não sabia se o som de água que estava ouvindo era só de sua corrida, ou se vinha de trás também, mas por vias das dúvidas, preferiu continuar correndo. Ao virar na última curva, se deparou com uma grade de proteção que o impedia de seguir o caminho. Ele foi até o fim e se agarrou às barras de ferro, cansado. Em suas costas, o barulho de água se batendo voltou. Ele girou e pôs as costas na grade, assustado. Estava cercado. No caminho de volta estavam os olhos amarelos. De repente, uma cauda gigantesca, escamosa, se movimentou para lá e para cá, espalhando água pra todos os lados, e voltou a submergir.
Icabode tentou ficar invisível, mas os olhos continuavam focados nele. Faça alguma coisa agora, disse a si mesmo. Decidido, começou a correr pela lateral do túnel, esperando que fosse mais rápido do que aquele crocodilo gigantesco. Mas antes de chegar na metade do caminho, o animal se levantou sobre as patas, revelando uma altura surpreendente, e uma velocidade maior ainda.
Icabode tentou parar, deslizou e caiu de costas no chão. O corpanzil do animal se chocou com a lateral do túnel, esmagando e destruindo todos os canos da parede. Alguns eram gigantescos, e uma enxurrada começou a jorrar sobre Icabode, arrastando-o em direção à grade novamente.
Ele se levantou, indo de um lado para o outro, tentando evitar o raio de largura do crocodilo. Você precisa fazer mais uma investida! Pensou, se recusando a entregar as pontas. Depois de tudo o que você passou, seria idiotice morrer para uma lagartixa gigante. Ele apoiou à grade e se empurrou para o lado oposto. A boca do crocodilo tinha alguns metros de comprimento, e ela se abriu, recheada de dentes imensos, podendo engolir o humano em uma mordida. Seu movimento foi brusco, e o túnel era apertado. Isso fez com que o resto dos canos fossem destruídos.
O ataque da criatura foi rápido, e alcançou Icabode em um movimento. Ele se jogou de costas na água e jogou os pés contra o focinho do animal. Por um milagre, um dos pés se apoiou na parte superior do focinho, e o outro, na inferior. A boca se abriu, esticando as pernas do humano, e o crocodilo avançou, tentando abocanhá-lo. Icabode se equilibrava, enquanto o focinho o empurrava pelo esgoto. A água subia de nível rapidamente, o que aumentava a velocidade dos dois.
Icabode tentava olhar para onde era empurrado, mas a água batia em seu rosto, cegando-o. Por um breve momento, viu luzes descendo em frestas do teto, adiante. Uma escada, pensou. Esperou o momento certo, e assim que se aproximaram, ele se jogou. O crocodilo passou direto, e os dedos de Icabode grudaram na barra da escada. Ele abraçou o metal, tentando não ser levado pela enxurrada.
Um gorgolejar primitivo veio do túnel, e o crocodilo se ergueu da correnteza em um salto, voltando até ele. Diabos! Icabode começou a subir barra por barra, junto com o nível da água. No meio do caminho, sentiu a escada sacudir embaixo de seus pés e mãos. A fera a puxava com os dentes.
Só mais um pouco! Pensou, tentando chegar à tampa do bueiro antes que a escada viesse abaixo. Ele conseguiu enfiar os dedos nos buracos por onde a luz descia no exato momento em que a escada cedeu e afundou na escuridão molhada. A água agora estava a poucos metros, e um monstro de escamas se debatia logo abaixo, se desvencilhando da escada.
– SOCORRO, ALGUÉM! – Icabode gritou ao ouvir o barulho do tráfego alguns centímetros acima de sua cabeça.
A tampa sacudia sempre que um carro passava. A qualquer momento um pneu poderia esmagar seus dedos. Ele pressionou os pés contra a parede e as costas contra a outra, pendurado no ar. O crocodilo saltou da água e rasgou sua jaqueta jeans.
Estou morto, ele concluiu, vendo que não havia escapatória. Tentou se segurar enquanto pôde, mas a água já estava perto o suficiente, e o crocodilo mergulhou para dar o impulso final que o levaria até sua presa.
– Droga… – Icabode sentiu os pés deslizarem, e seu corpo despencou.
Sua visão escureceu enquanto ele afundava nas águas negras. Talvez essa tenha sido sua sorte. O crocodilo não esperava encontra-lo ali, e sua boca ainda não estava aberta. Mas ele já subia com toda velocidade, levando Icabode para cima. O vampiro sentia suas costas se aproximando do teto e se encheu de esperanças.
Ele subiu com muita força. Sua cabeça jogou a tampa do bueiro para o outro lado da rua, e seu corpo começou a subir a avenida, como se fosse o próprio Super Homem. Ele girou no ar. Estou voando! Finalmente, consegui!
Ele subiu a altura de quatro andares até começar a cair novamente, só que lentamente. Ao pousar de cócoras no chão, sob os sons de pneus cantando e gritos de testemunhas assustadas, o crocodilo atravessou o bueiro, rachando o asfalto ao redor, enquanto a torrente de água enchia a rua. Era um caos.
O crocodilo estava preso no bueiro, se debatendo. Icabode olhou pra ele e sorriu.
– Sei como é a sensação – dito isso, se virou para as dezenas de pessoas que olhavam a cena, assustadas. – Au revoir!
Tentou ficar invisível, mas as pessoas continuavam olhando pra ele. Não deve funcionar quando alguém estiver olhando pra você, pensou. Os motoristas dos carros começaram a descer, amedrontados com a destruição da pista. Icabode decidiu simplesmente correr até um beco e fugir. Ele estava irreconhecível, coberto com as piores sujeiras do esgoto da cidade.
A situação que passara era tão incrível que ele não evitou sorrir da própria desgraça. É como aquele musical diz: “New York, New York, is a wonderful town”. O musical “On The Town” fora lançado na Broadway um ano antes do fim da guerra. Icabode se lembrava disso pois seus pais foram assistir.
Broadway, ele pensou, se lembrando das prostitutas que foram mortas por Fermín na casa de Sunday. Elas haviam o comparado com algum garoto da Broadway. Sua consciência o trouxe à realidade. Ele precisava fazer algo. E não tinha como se encontrar com Leon na Estátua da Liberdade. Mas não é pra lá que quero ir.
Depois de uma longa caminhada, ficou invisível e entrou no prédio de Sunday. O porteiro ouvia o rádio, junto com alguns moradores no salão de entrada. O locutor falava sobre uma série de assassinatos que aconteceram naquela noite, e todas as vítimas morreram com uma estaca no coração. Os corpos estavam sem sangue, e alguns deles pareciam se esfarelar, como se fossem múmias.
Solomon está atacando os vampiros de Nova York, Icabode se apoiou na parede com a notícia. Ele subiu todos os lances de escada até chegar no apartamento com a faixa policial. Certamente o lugar estaria sendo vigiado. O Conselho de Nova York não deixava pontas soltas. Muito menos em dias como esses.
No centro da sala, um quadrado livre de poeira no chão indicava onde estavam o tapete e sofá. Leon os jogara em algum canto do rio, junto com os cadáveres das prostituas. Ele sentou numa poltrona e aguardou. Olhou ao redor, se questionando se Sunday passara por ali recentemente. Lembrou que foi nesse lugar que Anatole conheceu o detetive. E dali, ele o seguiu até Montauk, onde matou meus pais, pensou com amargura.
Seus ouvidos aguçados captaram o som de passos na sacada, e em seguida, adentrando a sala.
– Você não devia ter voltado aqui, neófito! – uma voz disse, seguida de uma risada. Era um vampiro desconhecido a Icabode, provavelmente um capanga do Conselho.
– Apenas me leve à Juíza – se levantou, erguendo as mãos.
– Você sabe que eles vão te matar no momento que te virem, não sabe? – o vampiro perguntou, surpreso com sua reação.
– Que eles façam o que tem que fazer – Icabode respondeu, sério. – Agora me leve.
O vampiro deu de ombros e o empalou sem resistência. Icabode sentiu seu corpo ficar imóvel, e as mãos frias do outro o arrastarem pela sala. Um momento antes de sumir pela sacada, seu nariz aguçado indicou um cheiro de nicotina e tabaco frescos. Seus olhos se estreitaram e viram um cinzeiro com uma bituca em seu canto. Ele aguçou a visão, e através das bactérias no ar, conseguiu captar uma leve fumaça subindo das cinzas.
Vampiros têm pavor a fogo, pensou. Um mortal esteve ali. Talvez alguém que soubesse que só seria seguro estar em casa durante o dia.
Sunday!
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