Icabode St. John [25]

Maxiocán ia à frente do grupo, de olho na bússola que os conduzia pela trilha de neve entre os pinheiros. Drake Sobogo trazia a mala com as armas e granadas, mais atrás do grupo. Leon aguçara seus ouvidos, em alerta. Seria sua responsabilidade avisar aos outros caso alguém se aproximasse. Caveira segurava seus revólveres, com os canos apontados para cima.

– Esperem! – Leon disse, se virando na direção dos pinheiros. – Estou ouvindo um barulho de árvores quebrando… meu Deus, ele já chegou!

Um vulto negro surgiu da floresta e se agarrou em Drake, levando-o para o outro lado das árvores, desaparecendo completamente do grupo. O Capitão Sangrento nunca mais veria nenhuma daquelas pessoas.

– Olha, olha, o que temos aqui – uma voz surgiu da noite, quando de repente, Gólgota surgiu no meio do caminho. Ele estava invisível até o momento. – Não me diga você é Maxiocán, o lendário caçador de vampiros!

– É ele sim – Rabin confirmou, descendo do céu como se fosse um anjo caído. – E acho que ele veio atrás do coração do chefe. Será que ele é tão poderoso quanto dizem, Gólgota?

– Só há um jeito de saber – o vampiro tirou os olhos de Rabin e se virou para Maxiocán. Em seguida, esses mesmos olhos se arregalaram, e uma veia saltou de sua testa.

O corpo de Maxiocán se tensionou imediatamente, sua pele enrubesceu, os vasos sanguíneos de seus olhos estouraram, transformando as pupilas em duas bolas vermelhas. E em seguida, seu corpo caiu duro como uma estátua para trás, ainda segurando a bússola.

– É tão fácil fritar o cérebro de um humano – Gólgota disse, satisfeito. – Por que não pode ser fácil assim com vampiros?

– Quem disse que não é? – Caveira perguntou, esticando os revólveres e apertando os gatilhos freneticamente.

Gólgota deu um grito de susto e ficou invisível, mas isso não serviu de nada, pois logo em seguida seu corpo voltou a aparecer, enquanto sua cabeça era perfurada várias vezes. Os miolos pularam para fora como pipoca, e em menos de um segundo, ele estava caído sobre a neve, tornando-a vermelha ao redor da cabeça. Os olhos eram como de peixe morto, e sua alma fora enviada direto para o inferno.

Leon se jogou sobre o corpo de Maxiocán, tirou a bússola de sua mão e ficou invisível. Caveira e Rabin estavam sozinhos, um de frente para o outro. O feiticeiro de Solomon olhava para o corpo de Gólgota, incrédulo. Aquilo acontecera muito rápido. Caveira era um pistoleiro muito habilidoso. Pegadas começaram a se formar na neve, quando Leon (ainda invisível) começou a correr com a bússola na mão.

– Você não vai escapar! – Rabin ergueu os dedos para o céu, e uma bola de fogo se formou no centro de sua palma antes de arremessa-la em direção a Leon.

Caveira virou morcego e se jogou em frente ao ataque, sendo atingido em cheio. Seu corpinho flamejante caiu fundo na neve, de onde saiu uma coluna de fumaça. De repente, sua forma humanoide se estendeu no chão, metade carbonizada. Ele tirou a máscara, revelando um rosto de morcego, peludo e chamuscado.

–  Como é o gosto do fracasso? – Rabin perguntou, olhando-o com curiosidade.

– Me diga você – Caveira gaguejou, forçando um sorriso. – Já que o meu camarada invisível acabou de entrar na floresta.

Rabin olhou para trás e percebeu que as pegadas de Leon sumiram entre as árvores. Agora seria impossível encontra-lo. Ele fechou os punhos, furioso, e ateou fogo no corpo de Caveira antes de voar para dentro da floresta.

Enquanto isso, Drake Sobogo sentia seu corpo bater em cada árvore no caminho, enquanto Troche o empurrava para dentro da floresta. O Judeu de Ferro o abraçara com força, imobilizando seus braços, e ele corria rapidamente, levando Drake para uma direção misteriosa. Foi quando as árvores acabaram que Drake percebeu seu destino. Havia um penhasco logo à frente, e Troche planejava joga-lo lá de cima.

Drake dobrou o pescoço para trás e pegou impulso antes de dar uma cabeçada no nariz de Troche. Isso o fez parar. Os dois rolaram pela neve entre a floresta e o penhasco. O Judeu de Ferro se levantou, segurando o nariz moído.

A alça da mala de armas ainda estava presa no ombro de Drake, e ele rapidamente segurou os dois lados da bagagem e a rasgou ao meio, como se fosse um saco de batatas fritas. Vários fuzis, metralhadoras e granadas caíram no chão, aos seus pés. Ele pegou a Thompson com munição de disco frontal e a ergueu.

– Não acredito que você vai trazer arminhas para a nossa batalha final – Troche disse, com o sangue escorrendo de seu nariz e encharcando a barba.

Drake apenas cuspiu para o lado e segurou o gatilho. A metralhadora cuspiu todas as suas balas, acertando o corpo do Judeu de Ferro com uma sequência de choques metálicos. Quando a munição acabou, Drake a jogou no chão, ignorando o disco fumegante derreter a neve. Troche ainda estava em pé, sorrindo para ele.

– Desgraçado – Drake sussurrou, pegando um fuzil para repetir o ataque. Ele atirou várias vezes, vendo Troche se aproximar, como se nada estivesse acontecendo.

– Você não sabe quantos vampiros eu absorvi para chegar onde cheguei – Troche disse, ficando cara a cara com Drake. – Eu sou o maldito Troche, seu filho da puta.

O Judeu de Ferro enfiou as mãos na barriga de Drake e abriu os braços, dividindo o militar em dois. Drake sentiu as tripas escorrendo de sua barriga e caindo em cima dos quadris. As pernas tombaram para um lado e o tronco para o outro. Drake cuspiu sangue, incrédulo. Ele morrera muito fácil. Suas mãos tatearam as armas ao redor, na esperança de reverter aquela situação.

Troche ficou de cócoras ao seu lado, sorrindo. Drake estendeu o braço em sua direção, agonizando. Os dedos apertaram o pescoço do judeu, sem forças. O militar começou a balbuciar algo, tremendo. Troche se abaixou um pouco para ouvir suas últimas palavras. Assim que ele inclinou, os dedos de Drake milagrosamente se mostraram fortes de novo, puxando-o mais para perto.

– O quê? – o sorriso de Troche se perdeu, quando ele sentiu o abraço ao redor de seu pescoço, puxando-o até encostar seu rosto no de Drake. – Por que você não me solta e morre logo?

– Eu não vou te soltar – Drake gaguejou, erguendo o outro braço livre. Com a visão periférica, Troche percebeu que ele sacudia uma espécie de chocalho perto de seu ouvido. – Porque nós vamos para o inferno juntos.

E Drake Sobogo soltou o lacre de uma das granadas.

 

Icabode St. John virou a cabeça, surpreso. Ele via uma imensa fogueira na trilha que seus companheiros seguiam, e uma grande explosão do outro lado da floresta. Aparentemente o seu grupo não conseguira encontrar o coração do polonês.

– Você tem um espírito guerreiro – Solomon disse com as mãos nas costas. – Isso é muito valorizado na máfia.

– Foda-se a máfia – Icabode respondeu, pensando nas suas alternativas. Seus poderes eram de invisibilidade, poder da mente e sentidos aguçados. Como usar isso?

– É exatamente disso que estou falando – Solomon disse, admirado. – Mas e aí, o que pensa em fazer? Se quiser se unir a mim, será muito bem-vindo.

– Eu passo – Icabode deu de ombros. – Eu já me aliei a você uma vez e me dei mal. No meu lugar, o que você faria?

Solomon gargalhou, resignado.

– No seu lugar, eu me mataria sem pensar duas vezes  – confessou.

– É o que vou fazer – Icabode estendeu o braço e fez Solomon sair do chão. Ele ergueu o outro braço e fez quatro tochas levitarem em direção ao vampiro.

Ele manteve o inimigo flutuando sob sua telecinese, enquanto as tochas se aproximavam de seu corpo. Icabode achou que ia vencer facilmente, até que percebeu o olhar de Solomon. O homem mais velho não temia o fogo. Ele olhava com uma curiosidade divertida para as tochas. E no próximo instante, as hastes de madeira pararam de se aproximar.

– O quê? – Icabode tentou força-las em direção ao outro, mas nada acontecia. – É você que está fazendo isso?

De repente, as quatro tochas se apagaram, como se mãos invisíveis tivessem se fechado sobre elas. E Solomon Saks começou a descer, até seus pés voltarem a tocar o chão.

– Existe uma regra no mundo vampírico – Solomon Saks estava ereto, com as mãos ainda atrás das costas. – O vampiro mais forte não pode ser subjugado pelo mais fraco. Qualquer poder sobrenatural que tentar usar contra mim, fracassará.

Espantado, Icabode tentou usar novamente seu poder, mas Solomon Saks nem se moveu. Ele se virou e fez as tochas se lançarem contra o inimigo, mas o polonês fazia todas caírem no chão antes de se aproximarem.

– Já chega – Solomon disse. – Já lhe dei todas as chances que precisava. Agora irei mata-lo, garoto.

Icabode não o viu se aproximar. Primeiro sentiu o impacto do soco esmagar seus órgãos internos. O próximo golpe deslocou o maxilar. O chute fez seu joelho quebrar, e sua perna se dobrar para trás. Icabode estava no chão, completamente desmontado. Ele olhou para o trono ao lado, e viu sua tia Katherine ainda inconsciente, amarrada por uma corrente. Eu falhei com você, tia.

Ele viu a sola do sapato de Solomon Saks pisar em seu rosto. Lentamente, o pé do polonês foi se afundando, e os ossos faciais de Icabode foram cedendo. Esse era seu fim.

 

Alguns quilômetros dali, Leon corria pelas árvores, ainda invisível. Quando perdeu Rabin de vista, ele voltou ao normal. E voltou a seguir a bússola. Não muito longe de onde estava, havia uma cabana solitária no meio de uma clareira. E coincidentemente a bússola apontava para essa direção. Ele não fazia ideia que Caveira fora transformado em pó, ou que Drake explodira a si mesmo, abraçado a Troche, ou que Icabode estava sendo esmagado por Solomon. Leon até mesmo acreditava que Maxiocán podia ser salvo, que ele estava só em transe.

Mas Leon estava enganado. Maxiocán era um vegetal. Um corpo sem consciência alguma. Ele era a última pessoa incólume de seu grupo. E agora Leon entrava na cabana apontada pela bússola. O lugar estava em ruínas, e em seu interior havia apenas uma pessoa. Uma velha com um pano amarrado ao redor da cabeça, olhando para uma foto, triste. Ela ergueu os olhos para Leon e mostrou a foto para ele. A imagem era em preto e branco, e mostrava um garoto sorrindo.

– Esse é o seu filho? – Leon perguntou para a mulher. – Esse é Solomon?

Ela ignorou a pergunta, e ergueu o baú que estava no colo. Leon o recebeu e abriu a tampa. Era um coração humano, o coração de Solomon.

– Não! Não faça isso! – Rabin gritou, vindo pela trilha de neve. Ele voava rapidamente em direção à cabana, vendo através da porta, Leon tirar o coração do baú.

Leon puxara a estaca do casaco e a erguera sobre a cabeça. O feiticeiro estava prestes a invadir a cabana.

Tudo aconteceu muito rápido. Leon abaixou a estaca com toda a força de seu corpo, sentindo o sangue queimar em suas veias, bombeando o bíceps do braço direito. A estaca atravessou o coração e saiu do outro lado de sua mão. Rabin parou no meio do caminho, gritando com os olhos arregalados. Ele se virou e voou para longe, desesperado.

Leon se virou para a mãe de Solomon e percebeu que ela se encostara na parede e abaixara a cabeça. A velha estava morta.

Icabode olhava para Katherine enquanto sua cabeça estava sendo esmagada. Sunday estava em silêncio. O mundo estava em silêncio. E aquilo estava demorando demais. Solomon não terminava o serviço. Depois de alguns segundos, Icabode percebeu que o vampiro estava imóvel. Ele se arrastou e observou, surpreso, o polonês parado como uma estátua, e seu pé erguido como se fosse esmagar algo.

– Deu certo – Icabode concluiu. – Eles encontraram o coração.

Ele foi saltando sobre uma perna até a tocha mais próxima, a trouxe de volta e estendeu-a sob o pé do polonês. As chamas começaram a se espalhar pelo corpo de Solomon Saks aos poucos. Icabode ficou em sua frente, olhando-o nos olhos. Ele ficou feliz ao ver que as pupilas vermelhas de pavor.

– Você está sentindo isso, não está? – ele perguntou, satisfeito.

Solomon se tornou uma coluna de fogo, imóvel. Não demorou muito para Rabin alcançar o topo daquele monte. O feiticeiro olhou para o polonês e depois para Icabode. E seu olhar era de confusão e perda. Rabin olhou para o horizonte e fugiu, e nunca mais foi visto.

Icabode se virou para trás, e não viu mais sua tia. Apenas a mancha de sangue no chão. Ele olhou ao redor, e a encontrou, sumindo no meio da névoa. Ela andava de mãos dadas com alguém. O desconhecido vestia um longo casaco de detetive e um chapéu.

Adeus, meu amigo, Icabode pensou, vendo Sunday levar sua tia para a eternidade.

 

Após uma longa caminhada de volta, ele encontrou com Leon. Não sabiam se havia outros sobreviventes, mas isso não importava mais. Os dois apenas seguiram em silêncio pelo caminho que haviam percorrido mais cedo. Lá estava o monte de cadáveres, com a porta da umbra no seu topo.

Os dois subiram até ela, quando uma figura encapuzada apareceu.

– Vocês foram avisados! – o espectro bradou. – O portal só pode ser aberto por meio de um sacrifício pessoal.

– Não – Icabode rebateu. – Nós dois iremos atravessá-lo. Deve haver uma maneira.

– Você sabe que não há – Leon o censurou, tirando a estaca do casaco. A mesma estaca que usara no coração de Solomon. – E não tem problema. Quando você veio atrás de mim na fundição de Solomon, eu quis que você me matasse. Aquele dia eu pedi para você fazer isso.

– Se você fizer isso, vai acordar no inferno – Icabode o avisou, sentindo uma lágrima de sangue escorrer pelo rosto.

– Eu acho que de todos os vampiros – Leon começou a levitar. – Eu não fui tão ruim assim. Quem sabe exista uma salvação para a minha alma?

Icabode viu o amigo subir a uma distância incrivelmente alta. Lá em cima, Leon apunhalou o próprio coração. Icabode aguçou sua visão sobrenatural e viu o corpo cair na escuridão e acertar o chão, aos pés do monte de cadáveres. Mesmo longe, ele via nitidamente o rosto de Leon, definitivamente morto. Ainda que arrancassem a estaca de seu coração, ele nunca mais se levantaria.

A porta da umbra se abriu, e Icabode a atravessou chorando como se fosse uma criança.

 

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Icabode St. John [22]

Nos capítulos anteriores: Icabode e seus companheiros conseguiram a bússola de Maxiocán Allende, pela qual poderiam encontrar o esconderijo do coração de Solomon Saks. Após o ritual de ativação, a bússola começou a indicar em uma direção, mostrando o caminho para o grupo.

 

Leon vestia sua bata usual, com cabelos e barbas que o faziam parecer com Jesus. No interior da torre, sob os pés da Estátua da Liberdade, um grupo de vinte vampiros o ouvia discursar em cima de um barril.

– Vocês precisam entender – ele dizia, juntando as mãos como se implorasse. – Se não nos unirmos, estaremos todos mortos até o final do ano. E nós só temos uns aos outros. Se não nos protegermos, quem irá? O Conselho de Nova York?

– Se esse tal de Solomon Saks está tão forte assim, não seria idiotice lutar contra ele? – um vampiro gordo e papudo perguntou.

– Não importa o que façamos – Leon respondeu, cansado. – Ele está matando um a um. Você irá morrer de qualquer jeito. Mas se lutarmos, pelo menos teremos uma mínima chance!

– Mas por que ele está fazendo isso? – uma criança pálida e com olhos vermelhos perguntou. – Por que esse polonês está nos caçando?

– Inicialmente ele estava fazendo isso para absorver os poderes dos vampiros mais fortes – Leon olhou para cada um ao redor. – Mas o sangue de vampiro é a coisa mais deliciosa de todas. Acredito que esse maldito está viciado. Solomon Saks se tornou um canibal viciado em sangue de cainitas. Ainda que esteja extremamente forte, ele não irá parar de caçar vampiros.

– Eu pensei que o Conselho de Nova York se considerava a “Polícia da Noite” – um velho disse com sarcasmo. – Por que eles simplesmente não o abatem?

– Porque Solomon é uma daquelas pessoas extraordinárias – Leon explicou. – Ele é um rico mafioso, cheio de contatos. Ele tem um exército pessoal, com um arsenal poderoso, e está pouco ligando se vai quebrar as regras ou não. A partir do momento em que bebeu da alma de Ivanovitch e de outros vampiros mais velhos, ele garantiu sua vantagem sobre o Conselho.

– E o que você espera que façamos? – a criança perguntou. – Se nem o Conselho consegue vencê-lo, por que acha que nós, os vampiros independentes teríamos alguma chance?

– Porque o Conselho de Nova York está fraco – Leon respondeu. – Eles estão em guerra entre si. Solomon Saks tem matado vários deles por dia. Todos vocês que estão aqui hoje, não possuem um clã. Não seguem as regras do Conselho, mas isso não significa que não estão no mesmo lado. Todos vocês tem algo em comum. Todos são alvos de Saks.

– Ele está certo – uma voz conhecida surgiu da multidão. Icabode St. John se aproximou do centro, olhando para Leon. – Olá, meu chapa.

– Você está vivo! – Leon arregalou os olhos, surpreso. – Pensei que tivesse morrido naquele cemitério – ele saltou do barril e apertou a mão do outro.

– Solomon Saks não me matou – Icabode respondeu. – Pois eu é que vou mata-lo. E descobri como fazer isso – ele puxou a bússola do casaco e olhou para os vampiros independentes ao redor. – Você me empresta a sua platéia?

 

Em menos de uma semana, tudo aquilo teria terminado. O confronto final chegaria ao fim. E Lancelot, o primogênito do clã seria o primeiro a descobrir o resultado e portador das notícias. Ele estava na sala de reuniões do príncipe Fermín e seu conselho, com Leo, Savage, Lorena e Stolas.

– Que surpresa tê-lo conosco, Lancelot – Fermín disse, satisfeito. – Estou há dias lhe convidando para se unir a nós. Finalmente…

– Não é por isso que estou aqui – Lancelot o interrompeu educadamente. – Decidi não me aliar a vocês ou ao clã do Rato porque eu tinha mais o que fazer. Enquanto vocês estavam brigando entre si, Solomon Saks destruía nossa cidade.

– Aí que você se engana, meu caro Lancelot – Fermín sorriu para ele. – Eu enviei um grupo de vampiros para achar uma forma de derrotar o polonês. Eles descobriram que o coração de nosso inimigo estava escondido na Polônia, obviamente, e já partiram há uns dias para destruí-lo. A essa altura tudo deve ter sido resolvido.

– Na verdade você enviou dois neófitos, recém abraçados – Lancelot o corrigiu. – O único apto naquele grupo é Caveira, que só está na “sua missão” porque eu o ordenei.

– Aquele maldito estava agindo como um espião? – Leo perguntou, exasperado.

– Espião? – Lancelot olhou para ele, calmo. – Caveira sempre pertenceu ao meu clã. O que vocês esperavam que ele fizesse? – Ele se virou para Fermín novamente. – Eu descobri os contatos no México e garanti o transporte para a Polônia. Eu sou a verdadeira cabeça por trás dessa missão, príncipe, e quero que isso fique claro.

– Eu apenas vejo que nós temos agido como aliados o tempo todo – Fermín sorriu, sem graça. – Por que não oficializarmos essa parceria?

– Entenda uma coisa, príncipe – Lancelot pousou as duas mãos sobre a mesa, explicando de forma categórica. – Nossa equipe cometeu um erro. A bússola coincidentemente apontou para a Polônia quando a colocamos em um mapa. Mas o coração de Solomon Saks nunca esteve lá. Eles ignoraram uma possibilidade que estava debaixo de nosso nariz.

Os vampiros ao redor se ajeitaram na cadeira, intrigados com as revelações. Lancelot continuou.

– A bússola também apontava em direção à mansão de Solomon Saks, aqui mesmo em Nova York, mais precisamente no Brooklyn.

– O lugar onde Ivanovitch foi morto – Leo disse.

– E então? Eles acharam o coração? – Lorena perguntou, impaciente.

– Acharam – Lancelot explicou. – Mas no esconderijo subterrâneo da mansão não havia apenas um coração. Havia também o próprio Solomon Saks e seu séquito. Todos canibais e com poderes absorvidos de outros vampiros. O primeiro a cair foi o meu pobre Caveira. Gólgota entrou em sua cabeça e o fez ficar louco. Caveira caiu no chão gargalhando até que alguém o matasse no fim da batalha. Um maldito jogou álcool sobre seu corpo e soltou um isqueiro aceso em suas roupas. Ele ria enquanto as chamas dançavam sobre seu cadáver.

– Sinto muito por sua perda – Fermín sussurrou, espantado. Lancelot continuou.

– Icabode e Leon reuniram um grupo de vampiros independentes. Eles criaram seu pequeno exército. A maioria morreu nos primeiros cinco minutos de combate. O exército de Solomon Saks também apareceu. Vários capangas armados com metralhadoras e fuzis. Troche, o Judeu de Ferro que pensávamos estar morto, estava lá também. Ele cuidou do Capitão Sangrento. Os dois tiveram a briga mais violenta, até que um capanga chegasse por trás do vampiro boxeador e explodisse sua cabeça com uma escopeta.

– Minha nossa – Fermín fechou os olhos.

– Rabin, o feiticeiro, usou sua telecinésia para erguer Leon, o líder dos independentes, a uma altura que fosse letal. Ele abriu a mão e deixou o coitado despencar dezenas de metros de altura. O corpo de Leon atravessou o teto da mansão e pintou o porcelanato de vermelho. O último a morrer foi o próprio Icabode. Solomon Saks cuidou dele pessoalmente – Lancelot tocou na parte de trás da própria cabeça. – Ele atravessou a nuca do garoto com um soco, esmagando seu cérebro.

– Já entendemos o cenário, Lancelot – Fermín disse. – Não precisa entrar em mais detalhes. Isso significa que perdemos a luta, é isso?

– Ainda não – Lancelot disse, olhando nos olhos de cada um ali. – Os capangas de Solomon estavam armados, mas ainda eram apenas mortais. Os vampiros independentes os mataram, e em seguida eles ainda estavam em maior número, apesar de serem todos fracos. O séquito de Solomon foi dizimado. Gólgota derrubou vários deles com seu poder mental antes de ser agarrado por três e ter seus membros esquartejados.

– Isso! – Leo gritou, socando a mesa, excitado.

– E os outros, Lancelot? – Lorena perguntou, esperançosa.

– Quando Rabin viu que não conseguiria vencer a todos, levitou para longe e sumiu.

– Espere um minuto – Savage o interrompeu. – Como você sabe de tudo isso?

– Eu estava assistindo do prédio ao lado – Lancelot explicou. – Caso você já tenha jogado xadrez, sabe que os peões se movem primeiro.

– E quem seria você nesse jogo? – Savage perguntou, desconfiado.

– Eu sou a Rainha, e estou protegendo o Rei – ele olhou para Fermín com um aceno de cabeça. – E agora farei o movimento final dessa batalha.

– Solomon Saks? – Lorena perguntou. – O que aconteceu com ele?

– Ele ficou gravemente ferido – Lancelot respondeu. – Eu não estava assistindo tudo sozinho. Enviei meu lacaio mais leal com um lança chamas para o local. Enquanto Caveira pegava fogo no gramado, meu lacaio disparou outra língua de fogo em direção aos últimos sobreviventes. O Judeu de Ferro virou uma coluna de chamas e se jogou no rio. Solomon Saks havia sofrido vários ataques, e também foi beijado pelas labaredas, mas ele foi mais rápido e arrancou a cabeça do meu lacaio com uma mordida. Eu fiquei assistindo enquanto o polonês voltava mancando pela escadaria de seu bunker subterrâneo. Esperei por um tempo para ver se não havia mais ninguém ao redor, e decidi vir contar a vocês. O maldito está fraco e sozinho. E ele está guardando pessoalmente o seu coração.

– Devemos mandar alguém terminar o serviço, rápido! – Savage olhou para o príncipe.

– Não! – Lancelot cortou. – O sol está prestes a nascer, e durante o dia Solomon terá algum capanga para leva-lo para outro lugar onde ele irá se regenerar e se fortalecer novamente. Precisamos ir agora! temos pouco tempo para finalizar isso.

– E não conseguiríamos reunir outros vampiros dispostos a enfrentar Saks pessoalmente – Lorena concordou com Lancelot. – Nós temos que agir rápido.

– E essa é a oportunidade para eu provar minha força como príncipe – Fermín acrescentou. – Quão fraco ele está?

– Ele foi o centro dos ataques da noite. O lança chamas lhe causou danos terríveis – Lancelot garantiu. – Se nós o cercarmos, juntos, poderemos vencê-lo, sem dúvida.

– Então, vamos! – Fermín se levantou. – Que todos vejam que eu sou o verdadeiro líder que Nova York precisa.

Todos ao redor da mesa se levantaram, prontamente. Os seis desceram o prédio e ocuparam dois carros que aguardavam lá embaixo. As ruas de Manhattan estavam vazias, e não demorou para que eles chegassem no Brooklyn.

Enquanto se aproximavam do destino, o clima ficou mais frio, e a iluminação havia reduzido consideravelmente. Eles estavam indo para o confronto final.

– Policiais! – Fermín disse enxergando o giroflex ligado em frente ao muro da mansão. Luzes azuis e vermelhas giravam sobre o capô de três viaturas da polícia.

– Você esperava que uma guerra explodisse e nenhum policial viesse? – Lancelot perguntou no banco de trás. – Não se preocupe com eles. Estão todos desmaiados.

– Como você fez isso? – Fermín perguntou, cauteloso.

– Não se esqueça que sou um vampiro poderoso, meu príncipe – Lancelot o lembrou. – E que os meus poderes são mentais.

– Claro que eu sei, Lancelot – Fermín pousou a mão em seu ombro. – Todos sabem que você faz parte da casta mais nobre dos vampiros de Nova York.

Lancelot assentiu, satisfeito.

– E depois desta noite, espero que meu lugar no seu conselho esteja acima de qualquer outro.

– Mas é óbvio – Fermín prometeu, ignorando o olhar ciumento de Lorena ao seu lado. – Só não acima do meu, é claro.

Os carros pararam ao lado das viaturas, e os seis vampiros desceram. Eles olharam para dentro dos carros pretos da polícia, e viram os homens dormindo nos bancos.

Eles passaram pelo portão de ferro e viram a mansão abandonada, com paredes e muros quebrados, e gramado destruído. Havia dezenas de corpos espalhados pelo chão. Fermín foi até um dos corpos que reconheceu imediatamente.

– Pobre garoto – disse ele, ficando de cócoras ao lado de Icabode. – Você entregou sua não vida, mas pelo menos serviu para o nosso propósito.

Os olhos de Icabode fitavam o céu, imóveis. Seu corpo era frio e duro, e não havia vida nele. Fermín olhou em direção à porta do bunker e se preparou mentalmente para o confronto final.

– Vamos matar esse filho da mãe! – Lancelot disse, satisfeito.

Fermín estava pronto para sua marcha, quando subitamente foi surpreendido. Todos os cadáveres ao redor se levantaram do chão. Dentre eles, estavam Drake Sobogo, Caveira e Icabode. O príncipe e seu conselho estavam atônitos.

– Emboscada! – Leo gritou, segurando seu bastão de baseball com firmeza. – O que é isso Lancelot?

– Essa guerra estúpida já durou tempo demais – Lancelot explicou. – Eu estou dando um fim nela agora mesmo!

– O que você pensa que está fazendo? – Fermín lhe lançou um olhar injetado. – Os clãs da Águia, do Punho, da Rosa e dos Filhos de Pã são a maioria. Você nunca conseguirá nos vencer. Isso é loucura!

– Mas eles não estão aqui agora, estão? – Icabode perguntou, olhando ao redor. – Estão só vocês quatro. Longe da sua fortaleza super protegida.

– Nós conseguimos enfrenta-los! – Leo disse, olhando para os vampiros ao redor. – É só cada um de nós matar cinco deles. Esses independentes são fracos e neófitos. Nós podemos!

– Eu não contaria com isso – uma voz disse, e outras pessoas começaram a brotar do nada. Elas estavam invisíveis o tempo todo. Era o clã do Rato, seis vampiros de pele escamosa e ossos deformados. O vampiro que falou era o mais feio de todos.

De dentro da mansão, surgiu outros dez, todos com as cabeças cobertas por véus. Era o Clã da Sombra. Eles se uniram à multidão.

– Eu me rendo! – Lorena ficou de joelhos, diante de Lancelot. – Não me mate, por favor! O clã da Rosa renuncia a qualquer aliança feita com o falso príncipe!

– Lorena! – Fermín gritou, ultrajado. Depois ele olhou ao redor, ainda espantado. Savage seguiu os passos da vampira e também se ajoelhou diante de Lancelot.

– Desculpe, cara – Leo olhou para ele e abaixou seu bastão. Em seguida, também se ajoelhou. – O clã do Punho implora por sua misericórdia. E juramos nossa lealdade a você.

– E-eu também peço perdão pelos meus atos – Fermín se ajoelhou, gaguejando. – E rogo que aja com miseri…

– Não – Lancelot interrompeu. – Enquanto você viver, haverá guerra.

Os vampiros ao redor cercaram a Fermín, prontos para mata-lo. O príncipe se levantou do chão, desafiador. Então sua pele começou a brilhar, como se ele fosse algum tipo de criatura celestial.

– Vocês são muitos, mas eu sou muito mais – ele disse, e de repente, Drake Sobogo caiu de joelhos, atordoado. O militar ergueu a cabeça perguntando onde estava e quem eram aquelas pessoas. Em seguida, Fermín se virou para Caveira. – Eu sou o seu novo mestre. Me proteja!

Caveira sacou suas armas e começou a atirar nos vampiros ao redor. Ao perceber o poder do príncipe, Icabode correu em sua direção. Fermín olhou para ele e gritou “caia no chão!”. Icabode não teve nem tempo de pensar. Ele se jogou de peito no gramado, obediente.

– Afastem-se! – Lancelot gritou. Fermín havia causado a morte de quase dez vampiros em poucos segundos. – Se o nosso querido príncipe deseja um embate mental, nada mais justo que o primogênito do clã da Sabedoria o enfrente pessoalmente.

Os dois ficaram frente a frente, encarando-se mortalmente. De repente Lancelot se transfigurou, e virou um demônio chifrudo, com pele vermelha e longo rabo.

– Volte ao normal! – Fermín gritou. E Lancelot voltou à sua imagem normal.

– Abrace o seu medo! – Lancelot ergueu as mãos para ele, e Fermín recuou dois passos, apavorado. – Seja abraçado pelas trevas!

– Morra! Isso é uma ordem! – Fermín rebateu, mas ele perdera a confiança inicial. Agora era apenas uma criatura assustada. Seu poder não afetou o adversário em nada.

Lancelot fez uma última expressão facial e esse foi o fim. Fermín começou a gritar e rolar no chão, como se sofresse as piores dores do mundo. Os vampiros do clã do Rato o cercaram.

– Isso é pela Juíza! – um deles disse antes que todos começassem a desmembrar o príncipe de Nova York. Enquanto os outros assistiam a cena, Lorena se colocou ao lado de Icabode.

– O que aconteceu? Por que você nos traiu? O que o fez escolher o lado de Lancelot, o clã do Rato e o da Sombra?

Icabode St. John se virou para ela e começou a explicar os eventos que aconteceram nos dias anteriores.

 

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Icabode St. John [6]

Nos capítulos anteriores: Icabode, Sunday e Drake invadiram o prédio da máfia polonesa para matar o vampiro antes que ele transformasse Solomon Saks em um deles. Mas a missão falhara, e Icabode morrera, logo depois de soltar o vampiro, pois descobrira que ele não era mal. Icabode acordou no inferno, onde foi informado que seu pai vendera sua alma para um senhor do inferno, e por isso, ele fora pra lá. Após uma fuga desesperada, ele se encontrou com Sunday, e ambos correram até um abismo que os separava do paraíso. No último instante, uma força invisível puxou Icabode pra cima, e Sunday se agarrou em suas correntes e foi puxado junto. 

 

O Capitão Drake Sobogo estava cercado no primeiro andar. Mandara Sunday e Icabode terminarem a missão enquanto ele segurava os inimigos. O boxeador pegou uma barra de ferro à vista e acertou a cabeça de Troche com ela. O tinido metálico fez Drake perceber que o judeu tinha placas de ferro debaixo da pele.

– Agora é minha vez – disse o Judeu de Ferro antes de chutar o estômago do outro.

Drake atravessou a sala sem tocar no chão. Suas costas acertaram a parede com força, fazendo todo o ar sair dos pulmões. Antes que pudesse se preparar, Troche já estava o segurando pela gola e dando vários socos em seu rosto. Quando o julaco parou, Drake cuspiu sangue em seu rosto.

– Terminou? – o boxeador era conhecido como Capitão Sangrento nas lutas clandestinas. Um dos principais motivos disso, é que ele podia ficar coberto com o próprio sangue, mas nocaute nunca era uma opção. – Sou eu novamente.

Drake começou a socar o rosto duro de Troche, afastando-o. O outro se assustou com a ferocidade do homem, mas logo em seguida, reagiu. Os dois começaram a trocar golpes em uma velocidade surpreendente. Quando o Capitão Sangrento percebeu que não iria ganhar aquela, decidiu recuar.

Espero ter ganhado tempo o suficiente pra vocês, pensou, esperando que os outros dois conseguissem matar o vampiro. Em seguida, jogou seu corpo para trás, em direção à janela. Ele estava um andar acima do chão, mas o impacto foi pior que os socos que acabara de levar. Demorou um segundo para acertar o chão. O Judeu de Ferro colocou a cabeça pela janela e os dois se encararam. Em seguida, Troche sumiu dentro do prédio.

Tiros e clarões continuavam a vir pelas janelas, e Drake começou a rastejar para longe. Alguns segundos depois, uma janela explodiu, e dois corpos despencaram do terceiro andar. Sunday e Troche acertaram o chão com um baque seco. E para a surpresa de Drake, o Judeu de Ferro foi o único a se levantar. O homem olhou para cima, esperando que seus homens continuassem a perseguição. Depois, ele se virou para Drake, e sorriu.

– Vocês são muito estúpidos – Troche disse, vindo em sua direção.

Drake se levantou com dor, e ficou em posição de luta. Ele iria morrer, obviamente, mas iria lutando.

– Corta essa merda e venha logo! – gritou. – Vou dar uma surra nesse seu traseiro polaco.

Troche partiu pra cima. Mas nenhum de seus golpes acertava o alvo. Drake se esquivava habilmente, revidando sempre que possível. Ele era um boxeador profissional, mas seus oponentes não eram feitos de ferro. Enquanto Troche começava a se cansar, Drake sentia os ossos das mãos doerem, vendo que o adversário não sentia dor alguma.

Nessa hora, Troche o surpreendeu e chutou seu joelho. Drake caiu de lado, e o Judeu de Ferro colocou o pé sobre seu pescoço. Ele sorriu, vendo o boxeador socar sua perna.

– Por fim, é a minha vez – o Judeu disse, pressionando o pescoço de Drake.

Um barulho em suas costas fez os dois virarem a cabeça. Um corpo caiu do último andar. Era Icabode. Drake viu o corpo do jovem, sem vida, no chão. Troche começou a gargalhar satisfeito. O boxeador se sentiu tonto, pela falta de ar. Todos nós morremos.

Mas um vulto chamou a atenção, pelo canto de olho. Ele não sabia o que era, mas vinha em sua direção. Troche foi arremessado para longe. Drake sentou, vendo Icabode sobre o corpo do Judeu de Ferro. O jovem mordia o homem, ferozmente. Troche girou, derrubando-o. Icabode rolou de volta pra cima dele, mordendo-o novamente.

Tem algo errado com ele, Drake notou, tentando ficar de pé, e gritou:

– Ei!

Icabode se virou repentinamente. Seus olhos eram vermelhos, e seus caninos, compridos. Ele era um vampiro sedento de sangue. Uma besta sem consciência.

– Ah não, garoto – Drake suspirou, recuando.

Icabode avançou em sua direção, agarrando-o e voando pelo terreno cheio de materiais de construção. Drake tentava segurar a cabeça do jovem que tentava mordê-lo freneticamente. Os dois subiram vários metros acima, e o boxeador gritava para que ele acordasse, em vão.

Antes que se afastassem mais do chão, Drake usou a única arma que tinha. Seus socos não foram tão precisos naquela confusão, mas foi o suficiente para atordoar o animal em fúria. Icabode despencou, e os dois atravessaram copas de árvores, e caíram em um parque no centro do Brooklyn. Drake se levantou e tentou correr, mas com um golpe de Icabode, ele atravessou a rua, acertando uma parede de tijolos. O boxeador ficou sentado, vendo o vampiro voar em sua direção com as presas e garras prontas para o golpe final. Ao seu lado, um vira-lata latia, abanando o rabo.

Uma silhueta surgiu do nada, e uma mão agarrou o pescoço de Icabode no ar. O cachorro ganiu assustado com a aparição. O sujeito tinha o tamanho de um armário. Ele vestia roupas apertadas, suspensórios e quepe. Ele virou o rosto de lado e disse:

– Você é um mortal.

– Sim – Drake respondeu sem saber se aquilo era uma pergunta ou afirmação. Enquanto isso, Icabode tentava se desvencilhar da mãozorra do homem. – Não o machuque, ele está…

– Faminto – interrompeu o outro. Ele jogou Icabode no chão com força, fazendo a calçada rachar. Em seguida pegou o cachorro e o pressionou contra o rosto do jovem.

Drake assistiu a cena espantado. Icabode agarrara o vira lata e abria sua barriga com os próprios dentes. O animal chorava e se debatia enquanto grande parte de seus órgãos eram rasgados e caíam no chão. Alguns segundos depois, o homem misterioso jogou Icabode contra a parede.

– Já chega! – disse ele. Sua voz era grossa como trovão.

Drake foi até Icabode e tentou despertá-lo. O jovem piscava, confuso. Estava coberto com sangue, e suas presas pressionavam o lábio inferior. Ele olhou para a carcaça do cachorro e depois para Drake. Por último, para o homem de suspensórios.

– A primeira vez que vocês apareceram neste distrito, quebrando tudo, eu deixei passar – a voz grossa ribombou. – Mas o que vocês aprontaram hoje, ultrapassou os limites.

Ele puxou uma estaca de madeira da cintura e empalou a Icabode no coração. Drake se jogou contra ele, socando seu rosto. O homem segurou seus braços e lhe deu uma cabeçada fatal.

 

Icabode despertou, sentado em uma cadeira de espaldar alto, acolchoada com veludo, em uma sala coberta de tapeçarias vermelhas. Uma mesa de mogno estava na parte alta do cômodo. Uma ventania gélida invadia o lugar através de uma larga sacada, centenas de metros acima do solo. Atrás da mesa de mogno, havia três pessoas. Eles olhavam em sua direção, sérios.

– Eu digo para começarmos – disse um deles. Era um homem magrelo, de rosto ossudo e cabelos colados no crânio. Sua pele era pálida como a dos outros dois.

– Ninguém vai começar até a Juíza chegar! – o homem do meio parecia mais um urso, com seus cabelos e barbas frondosos e ruivos. Sua mão era quase do tamanho da cabeça do primeiro sujeito.

A terceira pessoa era uma senhora de roupas negras e uma renda que cobria o rosto. Ela se manteve em silêncio.

– Pelo menos para adiantar o assunto, senhor Ivanovitch – o magrelo insistiu. – Não está curioso pra saber o motivo desse alvoroço todo que nos trouxe o senhor Anthony Ritzo? – ele apontou para o sujeito de suspensórios que empalara Icabode.

O jovem olhou para baixo e viu que tinha uma taça vazia no colo, suja de sangue, e que não havia mais nenhuma estaca em seu peito. Ao lado, Anthony Ritzo estava em pé, olhando para o trio atrás da mesa.

– Mas ele já disse, oras! – Ivanovitch respondeu, irritado. – Esse neófito estava causando um caos em seu distrito. Voando sobre as ruas do Brooklyn, metido em perseguição policial e tiroteios em Green Point. Ele chamou tanta atenção como o Hindenburg em chamas.

– Eu sei que seu intelecto é capaz de ser saciado com tão pouco conhecimento, mas um catedrático como eu sempre busca entender plenamente o objeto de seu trabalho – disse o magrelo de cabelos colados. Ele se levantou e se aproximou da cadeira de Icabode. – Diga-me, rapaz. Antes de tudo, quem foi o cainita que te abraçou?

Icabode franziu o cenho, confuso. Antes que perguntasse o que significava aquelas palavras, o homem explicou.

– “Cainita” significa “descendente de caim”, vampiro. “Abraçar” é o termo que usamos quando um de nós transforma alguém em um membro de nossa sociedade.

Eu já te expliquei isso, Icabode, a voz de Sunday veio em seu ouvido. Ele olhou ao redor, procurando o detetive, sem sucesso. Não fazia ideia de onde vinha a voz.

– Então, diga-me – pediu o vampiro em sua frente. – Quem lhe deu a Não Vida?

– Eu não sei o nome dele – Icabode respondeu, cooperativo. Precisava ganhar tempo para fugir dali. – Mas ele me transformou para que eu não morresse… completamente. Diferente do que eu esperava, ele se mostrou bastante humano.

– Por que a surpresa? – ele abriu os braços, arqueando a sobrancelha. Sua fala era lenta e condescendente. – Vampiros não podem demonstrar bondade e misericórdia?

Aquela pergunta pegou Icabode de surpresa. Ele olhou nos olhos do homem, tentando decifrar se aquilo era puro cinismo. Mas para todos os efeitos, o vampiro no prédio polonês tentara salvá-lo, mesmo sabendo que Icabode estava ali para mata-lo.

– Começaram sem mim? – uma voz feminina, rouca, perguntou, quando a juíza adentrou a sala. Ela olhou para o vampiro magrelo. – Senhor Fermín?

Ela era corcunda, careca e sua pele tinha cor de cimento seco. Olhos vermelhos, nariz torto e vários dentes pontiagudos que iam para várias direções. Alguns iam até o queixo, outros perfuravam a bochecha, estando sempre expostos.

– Estava apenas sondando o réu, vossa excelência – Fermín respondeu, voltando para seu lugar atrás da mesa. – É sempre bom conhecer a fundo todos os fatos dos nossos julgamentos, já que acontecem tão poucas vezes.

A juíza sentou em uma poltrona num canto da sala, e alguns homens brotaram das sombras em suas costas e estenderam seus pulsos em sua direção. Ela fez alguns cortes e começou a bebericar direto das veias. Depois, limpou a boca com as costas das mãos e fez o sinal com o indicador para que começassem.

– Ritzo! – bradou Ivanovitch. – Diga exatamente o que aconteceu com esse aí.

Anthony Ritzo deu um passo à frente, e explicou:

– Semana passada, esse cainita apareceu com aquele forasteiro, Anatole, que pedira permissão para fazer umas buscas na cidade. Os dois sobrevoaram as ruas de Green Point, e mataram alguns policiais diante de várias testemunhas. Um de meus rapazes viu tudo e me avisou. Quando cheguei no local, eles já estavam em um local cheio de judeus altamente armados. Por isso nós não agimos.

– Por medo das armas ou de ser descoberto como um vampiro? – Ivanovitch perguntou, rindo.

– Ignore-o senhor Ritzo, por favor – Fermín pediu, educadamente.

– Nós ficamos de olho no prédio pelos próximos dias, tentando descobrir algo. Até que recentemente a proteção do prédio triplicou.

– Solomon Saks é o mafioso com o maior número de associados – Fermín observou. – Ele tem um pequeno exército. Os italianos estão perdendo seu espaço. Perdoe-me, continue.

– Eu deixei todos de meu clã em alerta, e hoje a noite, um tiroteio teve início. Nós corremos até o local, e vimos esse aqui – ele apontou para Icabode -, sobrevoar o prédio com o mortal para longe da zona de risco. Foi aí que o pegamos. Houve muitas testemunhas, conselheiros, juíza. E eu não pretendo assumir essa culpa. Fiz o que podia pra impedir que eles quebrassem o sigilo da Máscara.

– Fez o que podia, senhor Ritzo? – Fermín perguntou, curioso. – Mas você não nos informou da primeira vez que eles quebraram a Máscara. Não acha que deveria ter feito isso também?

O grandalhão gaguejou, tentando se justificar.

– Oh, não – Fermín sacudiu a cabeça. – Não falaremos sobre isso agora. Depois você terá a chance de se explicar. Agora desejo fazer algumas perguntas ao acusado – ele olhou para Icabode, interessado. – Como você se chama?

– Sou Icabode St. John – ele respondeu, sentindo a presença maligna naquele homem. Fermín tinha sede de sangue, e isso era visível em seu olhar.

– E o que aconteceu com Anatole depois daquela noite?

– Eu o matei.

Os vampiros se entreolharam, surpresos. Icabode não parou por aí.

– E foi por esse mesmo motivo que invadi o prédio de Saks, para matar o vampiro que ele mantém preso.

– Por quê? – Ivanovitch perguntou, se inclinado pra frente, intrigado. – Por que você está matando esses vampiros?

– Porque é isso que faço – Icabode se levantou pela primeira vez, deixando a taça cair e rolar pelo chão. Ele olhou para todos na sala e estalou o pescoço. – Eu sou um caçador de vampiros.

 

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