Icabode St. John [19]

Nos capítulos anteriores: Icabode, Drake e Caveira foram sequestrados pelo clã do Rato, e interrogados no esgoto. Mas Icabode ateou fogo no primogênito do clã e na legião de ratos que os observavam, transformando os túneis em um grande inferno. Após fugirem, o trio decidiu partir para o México para encontrar com Maxiocán. 

 

Fermín estava na biblioteca de sua mansão em Nova Inglaterra. Leo e Lorena estavam sentados no sofá vermelho, bebendo sangue de seus cristais.

– O clã da Sombra se aliou ao clão do Rato – Lorena disse. – Mas isso era previsível. Nós matamos a Juíza e a Dama do Véu Negro, suas líderes.

– Lancelot não se opôs aos assassinatos – Leo os lembrou, olhando por cima de seus óculos escuros. – Talvez ele vote em você para príncipe.

Lorena revirou os olhos e perguntou:

– Desde quando aquele velho diz o que pensa? Não é à toa que ele é o mais velho de Nova York. Lancelot é o melhor jogador que existe, e pode ter certeza que nós não fazemos ideia do que passa em sua cabeça.

– Ainda assim – Leo olhou para ela. – Você é a líder do clã da Rosa, eu do Punho, e o Fermín do clã da Águia. Somos três contra dois. Se Lancelot os apoiasse, no máximo, eles iriam empatar, e não nos vencer.

– O clã da Sabedoria não é o único que não se declarou ainda – Lorena rebateu. – Os Filhos de Pã também não se posicionaram. E eles sempre se deram bem com o clã do Rato. Na melhor das hipóteses, temos um empate. Nós não ganharemos essa eleição.

– Os Filhos de Pã são fracos – Leo disse, pegando seu novo bastão. – Eu farei eles se decidirem rapidinho.

Lorena suspirou, impaciente.

– Faça isso, e transformaremos um provável inimigo em um inimigo certo.

– Tudo isso é inútil! – Fermín os interrompeu, batendo em sua mesa. – De que adianta falarmos de eleições se na verdade estamos diante de uma guerra?

– De toda forma, precisamos de aliados – Lorena disse, enrolando o dedo em seus cachos ruivos. – Para guerra ou eleições.

– E os vampiros independentes? – Leo perguntou, receoso.

– Não mexeremos com os sem clãs – Fermín disse, decidido.

– Os Ratos e as Sombras mexerão – Lorena observou.

– Céus, não acredito que agora vocês estão concordando um com o outro – Fermín se virou, irritado. – Nós caçamos os sem clã por décadas. Eles não irão nos apoiar. E se apoiar, seremos obrigados a aceita-los em nossa comunidade. Vampiros insubmissos!

– Eu diria que isso é um problema para o futuro – Lorena disse. – E uma solução para o presente.

– E quanto a Solomon? – Leo perguntou, preocupado. – Se entrarmos em uma guerra agora, não acha que isso fortalecerá Solomon Saks?

– Agora é muito tarde para falar “se entrarmos em uma guerra” – Fermín disse. – Mas de qualquer forma, o único jeito de vencermos Saks é cometermos o mesmo crime que ele, de beber da alma de outros vampiros.

– E isso está fora de questão? – Leo perguntou.

– Claro! – Fermín e Lorena responderam em uníssono.

– Lembre-se que fazemos parte de uma sociedade universal – Fermín disse. – Se nossos líderes supremos souberem que cometemos tal crime, nós seremos torturados e exterminados. Ingerir a alma de um vampiro é o pior pecado que se pode cometer.

– E por que nada é feito contra Saks? – Leo perguntou. – Por que não avisamos os líderes supremos sobre Saks? Eles não poderiam resolver isso assim? – ele estalou os dedos.

– Sim – Fermín respondeu. – Poderiam. E com Saks, seriam eliminados todos os líderes da cidade que permitiram isso acontecer.

– Temos que enfrentar o Saks sem envolver nossos superiores – Lorena concordou com Fermín. – Informá-los seria cometer suicídio.

– E então? – Leo perguntou, colocando os joelhos sobre as pernas, desesperançado. – Nossas esperanças estão nos neófitos?

– Sim – Fermín disse, tenso. – Mas eu enviei Caveira com eles. Ele pertence ao clã da Sabedoria, mas sempre me foi muito leal.

– Ele pode ser um espião duplo para Lancelot – Lorena disse. – Mas você já sabe disso.

Fermín ficou em silêncio, ciente dessa possibilidade. Ele pegou um cristal de sangue e se juntou aos outros dois.

– Caveira tem contatos no México. Eu paguei um helicóptero para o trio se deslocar até lá. Parece que Maxiocán Allende é bem conhecido por aquelas bandas. Sua família inteira, na verdade. Os Allendes são famosos caçadores de demônios. Todos os vampiros daquela região o temem. A palavra “apavorados” combinaria mais com o sentimento que eles possuem desse nome.

A porta lateral se abriu, e um homem de bigode fino entrou.

– Coruja – Fermín olhou para ele, curioso. – Aproxime-se.

– Vossa majestade, parece que o clã dos Filhos de Pã não pretendem se aliar ao clã do Rato. Eles dizem que o último líder capaz dos ratos foi derrotado e queimado no fundo do esgoto. O novo primogênito deles é um jovem irracional.

Lorena e Leo olharam para Fermín, surpresos.

– E como você sabe de tudo isso, Corjua?

– Porque o primogênito dos Filhos de Pã está no hall de entrada – Coruja sorriu.

 

O helicóptero pousou em um vilarejo próximo à Cidade do México. O clima mudara bruscamente de Nova York até ali. Caveira e Capitão Sangrento desceram primeiro, olhando ao redor. Icabode levitou de seu banco até pisar no capim seco.

Os três vampiros caminharam por vinte minutos até chegarem até o vilarejo. Ele era cercado por um muro de paredes caiadas, com cerca de três metros de altura. O portão de madeira estava fechado, e não havia nenhuma alma do lado de fora.

– Como faremos? – Drake Sobogo perguntou, mas Icabode apenas começou a levitar, passando por cima do muro.

– Pelo visto, faremos desse jeito – Caveira riu e virou morcego.

Do outro lado do muro, Icabode descia por entre as bandeirolas de alguma festa nativa, no meio da escuridão. A vila era praticamente um cercado com uma fonte no centro. Alguns moradores estavam reunidos diante do bar, com mariachis tocando baladinhas.

Um homem mijava na parede de uma casa quando Icabode pousou ao seu lado. Ele estava bêbado, sua cabeça se ergueu com relutância, e seus olhos semiabertos estavam totalmente alheios à presença do vampiro.

Que pasa cabrón? – o homem perguntou, mas Icabode já agarrara seu queixo, expondo o pescoço. Ele empurrou o homem contra a parede e enfiou suas presas em seu pescoço suado e salgado.

Os braços trêmulos do sujeito tentaram empurrar o vampiro, mas rapidamente eles cederam, e Icabode deixou o corpo escondido no beco. Ele limpou o sangue de seu queixo e saiu das sombras. Seus companheiros vampiros se colocaram ao seu lado.

– Você matou um provável vizinho do maior caçador de vampiros do país – Caveira olhou para trás.

– Garoto – Drake Sobogo olhou para Icabode, preocupado. – Você está passando pela maior mudança da sua vida, eu entendo, mas precisa ter mais cuidado. Quando nos conhecemos, você não era assim. Sei que está assustado…

– Assustado? – Icabode olhou para ele, irritado. – Aquele mexicano ali atrás estava assustado. Eu sou o perigo.

Ele avançou em direção às luzes. Ao lado da fonte quebrada, um bêbado dormia debaixo de um sombrero de palha. Enquanto eles avançavam, o grupo de festeiros começou a ficar em silêncio e se virar em sua direção. As três figuras pálidas, vestidas de preto, estavam paradas, olhando para eles.

Gringos – alguém disse.

No! Peor! – uma mulher indígena respondeu, benzendo-se. De repente, no olhar de todos, ficou claro que o povoado sabia muito bem o que era um vampiro.

– Maxiocán Allende! – Icabode disse, calmo. – Digam-me onde ele se esconde, e eu não os matarei.

– Garoto! – Drake segurou seu braço, assustado. – Eles são pessoas de bem!

No señor! – um mexicano se aproximou, com sua camisa de botão aberta até o umbigo. Ele tinha barriga de cerveja e pele escura. – No somos buenas personas. Y todos ustedes deben salir de aqui.

– Alguém fala espanhol? – Caveira perguntou, receoso. – Porque eu acho que ele meio que nos ameaçou.

– Se vocês possuem bom senso – Icabode voltou a falar -, devem nos entregar Maxiocán Allende urgentemente, senão…

Ele parou de falar ao ver que todos ficaram de pé. A expressão de cada homem e mulher era de raiva. Eles começaram a caminhar em direção ao trio.

– Eu devo avisá-los… – Icabode disse, mostrando a palma da mão, mas ninguém deu ouvidos. – Bem, eu tentei avisá-los.

Ao contrário do que se esperava, todos os habitantes do vilarejo caíram de joelhos, sobre as mãos dianteiras. Eles se contorciam enquanto seus corpos faziam barulho de estalos.

– Oh não, oh não – Caveira recuou.

Essa era a primeira vez que Icabode viu Caveira apavorado.

– Devemos fugir? – Drake Sobogo perguntou. – Garoto, fique invisível. Caveira, vire morcego.

Caveira virou o rosto para ele. Seus olhos estavam espremidos e molhados. Isso significava que não havia forma alguma de fugir dali.

No momento seguinte, todas as pessoas ao redor se tornaram criaturas imensas e peludas, como ursos. Mas seus focinhos eram como de lobos, e de repente, todos uivavam para a lua. Eram lobisomens.

– Não conseguimos lutar? – Icabode perguntou, fechando os punhos.

– Mesmo o vampiro mais forte que conheço não aguentaria enfrentar o mais fraco dos lobisomens. Imagine uma vila deles. Estamos mortos – Caveira estava paralisado.

Os lobisomens o cercaram, alguns sobre duas patas, outros sobre quatro. Suas presas eram afiadas, com longos fios de saliva pendendo para baixo. O trio de vampiro não tinha para onde ir.

– Essa é a primeira vez que vejo cainitas em minha vila – uma voz veio por trás.

O trio se virou a tempo de ver um homem passando pelo meio dos lobisomens. Ele tinha um bigode frondoso, roupas sujas e calças jeans rasgadas. Ele deixara o sombrero para trás, quando se levantara da fonte.

– E ainda me procuram pelo nome!

– Você é Maxiocán – Icabode apontou para ele.

– E vocês serão a janta desta noite.

 

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Icabode St. John [18]

Nos capítulos anteriores: Icabode e seus dois companheiros foram atrás de Sunday em seu apartamento, mas no lugar dele, encontraram a tia de Icabode, Katherine. Os capangas de Solomon Saks apareceram e a sequestraram, ameaçando matá-la se Icabode não parasse de procurar por Maxiocán. Por fim, o trio foi sequestrado por vampiros escamosos dos esgotos. 

Icabode, Sobogo e Caveira foram jogados em uma cela no fundo dos esgotos.

– Quem são eles? – Icabode perguntou.

– Eles são o clã do Rato – Caveira respondeu, sentado no chão, com os braços apoiados nos joelhos. – A Juíza era a líder deles. Aquela vampira que a matou é a líder do clã da Rosa. Os clãs do Rato e da Rosa são inimigos mortais. Aquilo que aconteceu mais cedo na casa do Fermín, pode ter certeza, foi o início de uma longa e bela guerra.

– E por que eles nos prenderam? – Icabode perguntou, confuso.

– Lorena, a líder do clã da Rosa é aliada de Fermín, o mesmo Fermín para quem trabalhamos. Eles dois mataram a Juíza.

– E o que acha que farão conosco? – Icabode olhou para a porta da cela, coberta de musgo fedido.

– Eles podem fazer várias coisas – Caveira disse, pensativo. –Provavelmente irão nos matar e consumir as nossas almas.

– Eu não irei permitir – Drake Sobogo rosnou em seu canto.

– Não adianta grandão – Caveira olhou para ele. – O clã do Rato também é conhecido por ter super força. Você não tem vantagem nenhuma sobre eles.

– Quais são os outros poderes deles? – Icabode perguntou, se encostando na parede e escorregando até o chão.

– Eles tem super força – Caveira começou a contar nos dedos -, poder de mudar a aparência, ficar invisíveis, se comunicar com animais, enxergar no escuro e afins. Não sei exatamente todos. Nunca me importei muito com os Ratos do Esgoto. Só sei que eles são os melhores detetives do Mundo Sombrio. Nada acontece sem que eles saibam.

– Quais as nossas alternativas? – Icabode perguntou.

– Nós podemos escolher as últimas palavras que diremos antes de morrer – Caveira disse, e em seguida sua cabeça tombou sobre o peito.

O sol está nascendo, Sunday disse em sua mente. Todos os vampiros irão entrar em torpor agora. Icabode olhou para o lado e viu que o Capitão Sangrento também estava morto. Você precisa fazer alguma coisa quanto ao clã do Rato, Sunday o alertou. Você não pode morrer agora! Katherine precisa de você!

Mas o que posso fazer? Icabode perguntou. Não vejo nenhuma alternativa.

Mas existe uma! Sunday insistiu. Use seus poderes!

Eu ainda não os domino bem.

Pratique esta noite.

Eu vou entrar em torpor a qualquer momento.

Força de vontade, rapaz! Eu te ajudo! Fique acordado durante o dia e pratique seu poder! Quando eles abrirem a porta, fuja com todas as suas forças!

E os outros? Icabode olhou para Drake e Caveira.

Eles conseguem se virar. Você é quem precisa de ajuda. Você precisa se ajudar! Tem que começar a jogar o Jogo das Trevas. Você precisa ser mau, garoto!

Ser mau? Mas eu sou cristão…

Icabode, você não é cristão. Você está condenado. Quando morreu, você foi para o inferno! Seu pai vendeu a sua alma! É tarde demais para você ser bonzinho.

O quê? Icabode estava confuso.

Você não lembra de nada não é? Nós dois morremos naquela fundição, enquanto tentávamos matar Leon. Depois nos encontramos no inferno, onde você descobriu que havia sido vendido para algum senhor do mundo inferior.

Icabode ficou em silêncio, analisando aquelas palavras.

Então você foi abraçado, e sua consciência voltou para o seu cadáver. Sua alma continua aqui.

Aqui? Icabode engoliu seco, apavorado. O-onde você está, Sunday? Diga logo!

Eu estou no inferno, Icabode, sua voz era triste. Parte de minha consciência subiu com a sua quando você foi abraçado. Há uma parte de mim em você. Por isso conseguimos nos comunicar. Se você morrer, virá direto pra cá. Não morra. E pra você continuar vivo, precisa…

Preciso ser mau, Icabode compreendeu.

 

 

Do lado de fora do esgoto, o asfalto reluzia a luz do sol em um dia quente. A grande estrela cruzou o céu nascendo entre prédios e sumindo entre prédios, até que a noite chegou novamente. Ela sempre chegava. E nessa hora, criaturas demoníacas e sanguinárias despertavam em seus covis.

Drake Sobogo acordou. A qualquer momento, vampiros abririam a sua cela e o matariam. Ele era forte, mas os outros também eram. Eu morrerei, mas levarei alguns desses vermes comigo, prometeu a si mesmo. Ele olhou para frente e viu Icabode sentado, pernas cruzadas, mãos segurando os joelhos. Ele olhava para o chão.

– Garoto? – Drake perguntou, preocupado. – Você está bem?

Icabode ergueu a cabeça e revelou olhos vermelhos e irritadiços. Drake se sentia mal por ele. O garoto era uma pessoa boa, e Drake estava sendo um cuzão com ele.

– Como eu fui parar aqui? – Caveira perguntou subitamente, olhando para o chão. – Eles entraram aqui?

Drake Sobogo olhou ao redor e percebeu que também não estava no lugar em que tinha dormido. Alguém mexera em seus corpos. Ele olhou para Icabode e percebeu que o garoto não os dava atenção.

– Garoto?

A porta se abriu e vários vampiros apontaram suas armas para os prisioneiros.

– Vamos! – um deles ordenou, e todos abriram caminho para o trio.

Drake e os outros dois obedeceram, cautelosos. Vou esperar a hora certa para agir, o boxeador pensou, seguindo por um túnel, cercado de inimigos. O grupo chegou até um grande salão subterrâneo, com várias tochas penduradas na parede. A luz do fogo bruxuleava, fazendo as sombras dos vampiros dançarem para todos os lados. O chão da câmara era tomada por ratos que assistiam a cena, curiosos. Havia milhares deles enchendo o esgoto com seus guinchos agudos.

Do outro lado, sentado em um trono feito de ossos, o vampiro de olhos amarelos os aguardava. Seu rosto escamoso os encarava com sede de vingança. Os prisioneiros foram conduzidos até o centro, pisando sobre os ratos. Drake reparou que Icabode cambaleava, olhando para as criaturas no chão como se fossem boletos a serem pagos.

– Odeio ratos – Icabode sussurrou

– Digam o que sabem sobre esse Maxiocán – ordenou o vampiro no trono.

– Com quem eu estou falando? – Caveira tomou a dianteira, colocando as mãos na cintura.

– Hercule, o Come Ossos – respondeu o vampiro. – Sou o novo primogênito do clã do Rato.

– Engraçado, eu não o conhecia – Caveira observou, sorrindo. – Vocês são muito furtivos mesmo. Mal aparecem nas nossas festinhas.

– Caveira, eu o conheço muito bem. E não simpatizo nem um pouco com essas suas gracinhas. És um tolo para mim. Diga-me o que sabem sobre Maxiocán, e eu darei uma morte rápida a vocês.

– Veja bem, quem matou a Juiza foi… – antes que o Caveira terminasse, Hercule, o Come Ossos o interrompeu.

– Eu estava lá! – de repente, sua aparência grotesca se modificou diante dos olhos de todos. Ele era um homem loiro de terno fino e olhos azuis. – Por isso você não nos vê em suas festinhas. Porque nós vemos tudo e nunca somos vistos. Nós vimos a traição do seu mestre, e não finja que vocês não tem nada a ver com isso. Todos vocês mataram a Juíza, e serão condenados por isso. Mas eu posso ser benevolente e mata-los rápido, ou não, e lhes dar uma morte lenta e terrível.

– E que tal se eu não falar nada – Icabode chutou alguns ratos com nojo –, e ir embora agora? Tenho mais o que fazer.

– Ir embora? E como pretende fazer isso?

Icabode ergueu o braço, e Hercule se levantou do seu trono, subindo em direção ao teto. Com o outro braço, Icabode vez as tochas ao redor se aproximarem do vampiro.

– O que estão esperando? – Hercule gritou para os outros membros do clã, se debatendo no ar. – Matem esse insolente. Matem-no rápido!

Quando eles avançaram, Icabode ficou invisível. Os vampiros pararam no meio do caminho, procurando-o. As tochas continuaram se aproximando lentamente de Hercule, que gritava desesperado. Todos viram o seu primogênito se tornar uma coluna de fogo, se debatendo e dando gritos estridentes.

Drake Sobogo e Caveira se olharam, abismados com a cena. Hercule caiu no chão, e as tochas começaram a se afastar. Os outros membros do clã do rato recuaram, temendo serem os próximos. Mas as tochas voaram em direção aos ratos, ateando fogo em dezenas deles. A câmara se tornara um pandemônio, tomada pelo fogo.

Ao ver que os vampiros fugiam, muitos deles tomados pelo fogo, e que o Caveira se tornara um morcego e fugira, Drake Sobogo começou a correr, cercado por fogueiras de quatro patas que corriam de um lado para outro, guinchando de dor. O boxeador se jogou em um pequeno escoamento de água na parte oposta da câmara, assistindo a cena de longe. De repente ele olhou para cima e viu uma figura levitando próxima do teto, era Icabode. O garoto olhava para baixo com uma expressão macabra. O fogo reluzia em seu rosto, destacando seus olhos vermelhos. Era quase como se Drake visse um anjo caído sobrevoando o inferno.

Ratos flamejantes percorriam vários túneis do esgoto. Milhares deles. Drake se enfiou em um túnel, correndo também. Ele via o fogo reluzindo nas paredes sempre que alguma criatura passava correndo. Deixando um rastro de fumaça. O boxeador passou por vários cruzamentos até achar uma escada. Assim que saiu da boca de esgoto, as pessoas do mundo superior começaram a exclamar e apontar em sua direção. 

Drake olhou ao redor e encontrou Caveira sentado no capô de um carro, observando-o.

– Eu sabia que você conseguiria – Caveira apontou para ele.

Drake olhou para a esquina a tempo de ver Icabode voar para fora do esgoto e pousar no asfalto, fazendo os carros desviarem.

– Nós três estaremos mortos até o fim de semana – Caveira avisou, sorrindo. – Em menos de um dia quebramos quase todas as regras da sociedade vampírica. Estamos nos expondo muito. Daqui a pouco seremos caçados.

Drake resmungou pra ele, e os dois foram se encontrar com Icabode.

– O que você fez lá embaixo – Caveira disse, seguido de um assovio. – Eu nunca vi nada igual em toda a minha vida.

– Vamos – Icabode disse, acenando para um táxi. – Precisamos descobrir em que parte do México está Maxiocán.

– O clã do Rato é o responsável para encontrar esse tipo de informação – Caveira observou. – Mas agora não acho que eles nos ajudariam. Tem um traficante de informações que mora em um cemitério, eu posso apresenta-los…

– O Sombra está morto – Icabode o interrompeu, abrindo a porta do táxi. Caveira olhou para ele, surpreso. – Nós o matamos.

– Eu tenho um contato influente na Cidade do México – Caveira disse quando os três entraram no banco de trás do táxi. Mas depois falamos sobre isso.

– Não. Falamos agora – Icabode respondeu, seco. – Depois matamos o taxista e jogamos seu corpo em algum lugar.

O motorista olhou pelo espelho, achando que ouvira errado. Caveira e Drake se olharam, surpresos.

 

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Icabode St. John [17]

Nos capítulos anteriores: Icabode, Drake Sobogo e Caveira foram enviados para procurar Maxiocán, o homem que poderia reverter o ritual Solomon Saks. No meio do caminho, eles passaram pelo apartamento de Sunday, onde encontraram Katherine, tia de Icabode. Durante o encontro, Troche e seus capangas apareceram, buscando Sunday. 

Katherine surgiu do quarto, congelando ao ver os novos visitantes. Icabode olhou para ela e ordenou:

– Tia, volte para o quarto.

– Tia? – Troche perguntou, interessado.

– Acabem com eles – Icabode olhou para Drake e Caveira. – Eu protejo ela. Deixem um deles vivo. Precisamos saber sobre o paradeiro de Maxiocán.

Drake Sobogo não esperou Icabode terminar de falar. Ele cruzou a sala em uma velocidade sobrenatural. Atropelou Troche como se fosse um trem, fazendo seus corpos atravessarem as paredes e invadirem os apartamentos vizinhos.

Troche trouxera consigo quatro capangas julacos, todos barbudos, com seus ternos e chapéus pretos. Eles apontavam suas metralhadoras para Icabode, Katherine e Caveira.

– Eu me rendo! – Caveira gritou, guardando as armas nos coldres.

Icabode olhou para ele, surpreso. Caveira olhou de volta, e seu olho piscou pelo buraco da máscara. No instante seguinte, seu corpo encolheu rapidamente até virar uma pequena bola de pelo negra, com asas. Ele virara um morcego.

– Que diabos é isso? – um dos capangas perguntou, assombrado.

O morcego atravessou a sala em ziguezague e se jogou atrás dos julacos. No outro momento, ele era Caveira novamente. Os capangas não tiveram muita chance.

O vampiro encostou os canos dos revólveres na cabeça de dois deles e apertou os gatilhos. BAM! Miolos jorraram pelo chão da sala. BAM! Dentes e língua se soltaram da cabeça do segundo. Os outros dois capangas se viraram pra ele, recuando e atirando.

Caveira girou sobre os tornozelos e sumiu pela porta, se escondendo no corredor. Os capangas continuaram atirando na parede, assustados. Alguns segundos depois, pararam e esperaram. Caveira não veio, mas outra coisa surgiu. O corpo de Troche abriu um novo buraco na parede, aparecendo do nada. Ele acertou um dos capangas, jogando-o para o outro lado da sala.

Drake Sobogo veio logo atrás. As veias pulsavam em seu corpo. O capanga restante ergueu a arma pra ele, mas Caveira reapareceu, atirando várias vezes no peito do homem. Troche e seus homens foram abatidos.

Icabode protegia a porta do quarto onde a tia estava, olhando para a cena com satisfação. Eles venceram aquele embate. Ou era o que ele achava.

– ICABODE! – Katherine gritou enquanto seu corpo era sugado pela janela, deixando o prédio para trás.

Ele correu até a janela e viu o feiticeiro de Solomon levitando a poucos metros de distância. Katherine estava em sua frente, se debatendo no ar.

– Você sabe sobre Maxiocán! – Rabin gritou. – Deixe isso pra lá, caso contrário eu usarei a cabeça da sua tia como peso de porta.

– Solte-a! – Icabode gritou. – Solte-a, senão eu…

– Soltá-la? – Rabin olhou para as dezenas de metros que o separava do chão. – Certeza?

Icabode socou o batente da janela, aflito. Para sua surpresa, Capitão Sangrento surgiu na sacada ao lado. Ele subiu no parapeito e se jogou. Seu corpo fez um arco no céu, em direção ao feiticeiro. Rabin se esquivou no último instante, pego de surpresa. Katherine começou a cair, mas o feiticeiro a segurou novamente.

Drake Sobogo se chocou contra o prédio do outro lado da rua, e se segurou em uma janela. Icabode olhou para o lado novamente e viu um morcego voar até ficar três metros acima de Katherine. De repente, Caveira voltou à sua forma humana e atirou em Rabin enquanto caía.

– Vocês são loucos! – Rabin gritou, segurando seu ombro baleado.

Caveira e Katherine caíam, mas o vampiro a agarrou com força e a girou no alto, jogando-a para o outro lado da rua. Ela gritou, vendo o prédio vir em sua direção. Drake Sobogo saltou e interceptou a colisão, levando-a novamente para o prédio de Sunday, saltando como uma pulga.

Icabode assistia a tudo, incrédulo. Vários homens na calçada sacaram suas armas e começaram a atirar em Drake. Eram mais capangas.

Você precisa ajuda-los! Sunday disse em sua mente. Use sua telecinésia! Voe pela janela!

Eu não sei controlar ainda, Icabode respondeu, desesperado.

Então concentre-se! Sunday respondeu. Você precisa descer agora!

 

Lá fora, Drake Sobogo sentiu as balas acertando suas pernas e suas costas, e ele não conseguiu mais se segurar. Felizmente não estava tão longe do chão quando despencou. Ele caiu de costas sobre a lataria de um carro, afundando-o. Katherine estava segura sobre seu peito.

O morcego voou para trás dos atiradores e virou Caveira novamente. Como se fossem duas adagas, ele movimentava seus revólveres e matava os capangas a queima roupa. Quando suas balas acabaram, um capanga o chutou na barriga, afastando-o. Os outros julacos sobreviventes apontaram suas metralhadoras pra ele.

– Vocês acham mesmo que eu sou como vocês? – Caveira perguntou, abrindo os braços. – Mandem bala, caralho! Deem o seu melhor!

E eles fizeram. Caveira gargalhava enquanto as balas batiam em seu kevlar e caíam no chão. De repente, dois atiradores foram erguidos pelo pescoço. Drake Sobogo os segurava acima de sua cabeça. Ele juntou seus rostos um contra o outro, esmagando seus crânios. Com mais alguns socos, matou todos os outros ao redor.

Katherine saltara do capô do carro e começou a atravessar a rua. Um veículo veio em alta velocidade em sua direção. Drake viu os canos das armas saindo pela janela. Eram mais homens de Solomon. E eles iam em direção à mulher.

– AHHHHH!!!!! – Drake Sobogo se jogou sobre a tia de Icabode, e os dois rolaram até a calçada oposta. O veículo freou em suas costas, derrapando de lado.

O pneu cantou, e a fumaça subiu. Assim que as portas se abriram, Drake jogou seu corpo contra a lataria, fechando-as novamente, e empurrando o carro alguns metros pelo asfalto. Do outro lado, Caveira já estava com a Thompson de um cadáver e começou a segurar o gatilho. A arma girava como um ventilador, de um lado para o outro. Os capangas não conseguiram nem sair do carro.

 

De volta ao apartamento de Sunday, Troche cambaleava rumo à porta. No corredor, um homem careca segurava uma vassoura. Ele vestia roupão com uma letra bordada no peito. Atrás dele, uma mulher e duas crianças assistiam à cena, assustados.

– Eu já ligue para a polícia – o homem avisou. A parede de sua casa estava destruída. Troche e Drake quebraram tudo enquanto lutavam.

Troche estava furioso. Ele puxou a vassoura da mão do sujeito, girou, e a enfiou no olho do homem. O corpo caiu no chão, e Troche continuou enfiando o cabo em seu rosto. Depois, ele foi até a sala de estar onde a família do sujeito gritava. Ele avançou sobre a mãe, empurrando-a até a janela e jogando-a para fora. Depois se virou e enfiou os dedos de metal na boca do garoto de nove anos e separou seu maxilar do resto da cabeça.

Por fim, olhou para a menina mais nova. Troche envolveu seu rosto com a mãozorra e a empurrou contra a parede, ferozmente. Seus dedos metálicos afundaram em ossos e miolos. O papel de parede era amarelado, com flores. Ele limpou sua mão ali mesmo e foi embora.

 

Um julaco se arrastava pelo asfalto. Ele puxou a pistola do casaco e apontou para Katherine, na calçada do outro lado. Ele iria morrer, mas pelo menos levaria aquela vaca com ele.

Katherine viu o sujeito apontar a arma em sua direção e no momento em que o gatilho ia ser puxado, um vulto caiu sobre ele, enfiando uma faca no topo de sua cabeça. Icabode viera de algum lugar no céu.

Mais acima, Drake arrastava um capanga ferido pelo asfalto, enquanto Caveira segurava uma metralhadora fumegante.

– Diga! – Drake rosnou. – Onde está Solomon Saks!

– Capitão! – Icabode interveio. – Nós precisamos perguntar sobre o México – ele se virou para o capanga ensanguentado. – Como encontramos o homem que sabe reverter o ritual de Saks? Como encontramos Maxiocán?

– Por favor! – o capanga segurou na calça de Icabode, implorando. – Não quero morrer!

Icabode viu que havia pelo menos três buracos de bala na barriga do sujeito. Ele iria morrer nos próximos segundos. Icabode suspirou, desconfortável com aquilo, e ficou de cócoras.

– Se você nos disser como encontrar Maxiocán, eu te levo para um hospital o mais rápido…

– Me transforme em um de vocês – o capanga pediu. – Não vou sobreviver – ele tossia sangue. – Me transforme em um vampiro e eu direi.

– Desculpe, mas não posso. Nunca me perdoaria se transformasse alguém em um vampiro – Icabode disse.

– O que você está fazendo? – Drake o puxou pela gola. – Está louco?

– Você quer mentir pra ele? – Icabode sussurrou. – Vá em frente. Mas eu não posso fazer isso!

– Eu transformo ele – Drake prometeu, e se virou para o homem caído.

– Rapazes – Caveira disse, cutucando o rosto imóvel do capanga com a ponta da botina. – Ele já está com Jeová, ou seja lá quem é o deus dos judeus.

–  Eu vou transformá-lo – Drake se abaixou.

– Não! – Icabode o puxou pelo braço, mas o outro o arremessou contra a lataria do carro.

– Garoto! – Drake olhou para ele, num misto de surpresa e raiva. – Nunca mais me segure.

– Se você transformá-lo, nós teremos um problema – Icabode disse, se levantando. Katherine o ajudou a ficar de pé, preocupada. – Não podemos colocar mais um vampiro neste mundo.

– Ele é a nossa única chance de descobrirmos o paradeiro de Maxiocán – Caveira olhou para Icabode, concordando com Drake.

– Eu os proíbo – Icabode pegou uma metralhadora e se aproximou dos dois.

Drake bufou com desdém. Ele deu as costas, ignorando a ameaça e se virou sobre o cadáver do capanga. Quando ele mordeu o pulso do sujeito, uma rajada de balas transformou a cabeça do homem em uma peneira. Drake caiu para o lado, incrédulo.

Icabode jogou a metralhadora no chão e se afastou, decidido.

– Você poderia ter me acertado! – Drake ficou de pé.

– Talvez eu devesse – Icabode se virou para ele.

– Por favor, acalmem-se – Katherine pediu. – Nós estamos no mesmo lado aqui. Se alguém puder me explicar o que está acontecendo, talvez eu possa ajudar.

Antes que alguém respondesse, Katherine começou a levitar para trás, rapidamente. Seu corpo sumiu em um beco escuro, enquanto a voz de Rabin ribombava pela noite:

– Parem de procurar Maxiocán, ou nunca mais verá sua tia!

Sirenes vinham de várias direções, Icabode e os outros se entreolharam, perdidos. Um movimento chamou sua atenção. A tampa de um bueiro se arrastou para o lado, e um homem saiu lá de dentro. Ele era monstruosamente feio. Sua pele era escamosa, não tinha orelhas e seus cabelos eram ralos. O cheiro que vinha do sujeito era nojento e causava ânsia em Icabode. Ele vestia roupas do Exército da Salvação e luvas sem dedos.

– Venham, entrem aqui – ele apontava para o buraco do esgoto. – O dia está prestes a nascer, e várias viaturas estão vindo pra cá.

Caveira deu de ombros e obedeceu, saltando no buraco. Drake Sobogo hesitou um pouco mas fez o mesmo. Icabode foi o último.

Os três pisaram no chão molhado do esgoto, ouvindo o som das sirenes sobre suas cabeças. O homem escamoso fechou o buraco, cortando o último feixe de luz que vinha de cima.

Apesar da escuridão, os sentidos aguçados de Icabode revelaram algo. Leves movimentos ao redor indicavam a presença de outras pessoas. O cheiro de podridão o fez tampar as narinas. Viu dezenas de silhuetas cercando-os. Por fim, como se fossem piscas-piscas, várias luzes vermelhas apareceram na escuridão.

São olhos, Icabode concluiu. Por fim, dois olhos amarelos se acenderam quando o escamoso ficou em sua frente.

– Você! – Icabode reconhecia aqueles olhos. – Você é o crocodilo!

 

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Icabode St. John [16]

Nos capítulos anteriores: Durante a assembleia dos vampiros nova-iorquinos, Fermín se voltou contra os outros dois membros do Conselho e os traiu, fazendo com que seus aliados os matassem. Em seguida, ele pediu para se manter como príncipe interino até conseguirem destruir Solomon Saks. Icabode seria enviado para essa missão, junto com Drake Sobogo, que fora transformado em vampiro. 

 

Todos os músculos de Drake sobogo estavam cobertos de veias. Ele parecia um gladiador núbio, com olhos vermelhos e caninos de lobo. Seus punhos se fecharam, e os vampiros na sala recuaram, assustados.

– Ele deveria ter recuperado a consciência – Leo garantiu, surpreso.

– Eu recuperei – Drake rosnou, tirando uma lasca do taco que Leo quebrara em sua cabeça.

– Não faça nada de que vai se arrepender, negro – Fermín afirmou, cauteloso.

– Eu nunca me arrependeria de matar vocês – Drake se inclinou na direção dos dois.

– Capitão Sangrento – Icabode chamou. Ele ainda não sabia seu nome verdadeiro. – Nós precisamos unir forças para acabar com Solomon. Se brigarmos agora, não teremos chances contra ele.

– Solomon… – a voz de Drake era áspera, carregada de raiva. Seus músculos se retesaram com o nome, como se fosse uma fera prestes a perder o controle.

Icabode sentiu um cheiro forte emanar do boxeador. Seu olfato era aguçado de uma forma sobrenatural. Ele reconhecia os hormônios do homem sua frente. Drake era puro músculos e ódio.

O boxeador tinha tanta raiva que a cada movimento feito ou palavra dita, ele sentia prestes a se descontrolar e destruir tudo ao redor. Fermín foi até um quarto e voltou com um sobretudo de couro, e o jogou aos seus pés.

– Esse casaco era de Ivanovitch. Você não pode sair por aí desse jeito, todo sujo e rasgado.

O boxeador o vestiu. O sobretudo era três vezes maior do que o ele, mas por hora serviria. O clima na sala era tenso, e Icabode pousou a mão no ombro de Drake.

– Não – o outro rosnou. – Eu não quero machucá-lo, garoto.

Icabode recuou, surpreso. Não achava que o Capitão Sangrento fosse capaz de feri-lo. Essa é a maldição da besta, rapaz, Fermín explicou em sua mente. Depois do Abraço, nunca mais somos os mesmos.

– Meu príncipe – um homem magrelo, com rosto redondo e bigode fino entrou na sala. – Houve um ataque em Little Italy. Solomon Saks foi visto nos estabelecimentos protegidos pela máfia.

– Ele não está eliminando só os vampiros – Leo disse. – Também está atacando os carcamanos.

– A Cosa Nostra é a máfia mais poderosa de Nova York – Fermín os lembrou. – Se Solomon já está confiante para ataca-los, então as coisas estão preocupantes.

– Nós já temos um lugar para começar a busca – Drake disse, olhando para Icabode. – Vamos agora.

– Antes de ir, precisamos passar em um lugar – Icabode respondeu, se virando para Fermín. – Nos consegue um transporte?

– Coruja, quem pode ser o motorista deles? – Fermín se virou para o homem magrelo de bigode fino. Este lhe respondeu com um olhar preocupado.

– Tem o Caveira.

 

O caveira fazia jus ao nome. Ele usava uma máscara de caveira e roupas negras. Ele vestia um moletom com gola rolê, e usava coldres de ombros, com dois revólveres. Fermín lhe deu a chave do  Cadillac azul metálico, conversível.

Icabode segurava-se na porta, assustado com a velocidade. No banco traseiro, Capitão Sangrento olhava para frente, indiferente, frio, como se não temesse nada. Acima deles, a lua parecia uma moeda gigante, reluzente, cercada de nuvens.

Os prédios da incrível Manhattan pareciam se curvar sobre o conversível, prestes a tombarem. Caveira mudava a frequência do rádio, xingando.

– Quem diabos é esse Frank Sinatra? Já é a terceira vez que tocam uma música do sujeito. Esses italianos estão tomando conta da nossa cidade, estou dizendo. Fico feliz que Solomon Saks esteja eliminando alguns deles.

– Você está feliz por inocentes estarem morrendo? – Icabode perguntou, incrédulo.

A máscara de caveira virou em sua direção.

– Italianos são tão inocentes quanto os irlandeses – o motorista respondeu. Sua voz era debochada e divertida. – Mas eu ainda prefiro os irlandeses. Eles sabem fazer um café da manhã filho da puta.

– Você valoriza a comida de alguém, mas não está nem aí com pessoas morrendo?

– Pessoas morrendo são a minha comida de agora. Então eu as valorizo mais do que nunca.

– Doente – Icabode olhou para o outro lado, resignado.

 

Minutos depois, o conversível parou em frente ao prédio de Sunday. Drake olhou para cima, surpreso. Ele e Icabode trocaram olhares, e desceram.

– Nos espere aqui – Icabode disse, mas Caveira já pulava por cima dos bancos.

– Desculpe, gracinha, mas Fermín me enviou para garantir que vocês não saiam dos trilhos – ele olhou para a mão deficiante de Icabode, e juntou as suas próprias perto do peito. – Ui, onde estão os seus dedos?

Icabode suspirou, desconfortável com a presença daquele sádico. Os três seguiram pelo saguão e subiram as escadas até o andar correto. Caminharam pelo corredor acarpetado e pararam diante da porta com a faixa policial. Os ouvidos aguçados de Icabode captaram passos no interior do apartamento. Ele fez sinal para os dois companheiros esperarem. Fechou os olhos e tentou se concentrar. Ouviu batidas rítmicas e abafadas. Batimentos cardíacos, concluiu.

– Sunday – ele sorriu para Drake. – Sunday está em casa.

Os três passaram por baixo da faixa e adentraram o apartamento, Icabode os guiou até o quarto de onde vinha o som. Ao abrir a porta, viu a silhueta sair do banheiro. Ela olhava para o trio com surpresa.

– Oh, droga – a mulher disse. Ela usava um vestido amarelo, da cor do chapéu. Seu cabelo era curto e negro. Ao redor de seus olhos, pés de galinha revelavam uma certa idade. – Vocês são vampiros.

– O que foi que nos entregou? – Caveira perguntou e se virou para os caninos expostos de Drake Sobogo. – A gente não tem muitas regras em nossa comunidade. Mas revelar nossa identidade faz parte das poucas que tempos. Então será que você poderia… – ele fez uns gestos desajeitados apontando para as presas do boxeador.

– Icabode – Drake rosnava, salivando. – Ela deve ser uma espiã de Solomon.

– Quem é você? – Icabode perguntou, mostrando a mão para que Capitão Sangrento se acalmasse.

– Icabode? – ela repetiu o nome, curiosa. – Você é Icabode St. John? Filho do Reverendo Peter?

– E quem é você? – ele perguntou novamente, surpreso.

– Eu sou Katherine, sua tia – ela sorriu, ansiosa. – Não lembra de mim?

 

Caveira e Drake aguardavam na sala, enquanto Icabode conversava com Katherine no quarto.

– Eu vim assim que Sunday me disse sobre os seus pais – ela enxugava as lágrimas com um pano cor de rosa. – Ele falou que você estava aqui, e eu atravessei o mundo para encontra-lo – Katherine deu um sorriso em meio aos soluços. – Se eu visse mais um canguru na minha frente… – ela revirou os olhos com raiva.

– Estou feliz que veio, tia – Icabode tinha medo de se aproximar demais. Agora que era um monstro, pensaria duas vezes antes de ficar perto de um mortal.

– Eu disse para Sunday protegê-lo – ela apontou para Icabode dos pés à cabeça. – E quando chego aqui, descubro que meu sobrinho foi abraçado!

– Você já sabia da existência de vampiros?

– Claro. Foi por isso que eu e Sunday não demos certo! – ela viu a cara de surpresa de Icabode. – Você não sabia que nós éramos noivos? Como você acha que Sunday virou amigo de seus pais? Eu os apresentei. Mas essa profissão de detetive ocultista não era vida pra mim. Então nos separamos. Eu me casei com um dentista e fui para a Austrália – sua feição ficou pesada. – Mas Sunday ainda é o amor da minha vida. Estar aqui me assusta muito.

Icabode não sabia o que dizer. Ele engoliu seco e olhou ao redor.

– E onde ele está agora? Vai demorar a voltar para o apartamento?

– Eu esperava que você me dissesse isso. – ela respondeu, decepcionada. – Cheguei há poucos dias na cidade, e tenho passado os dias aqui no apartamento, mas ele nunca apareceu. Eu evitei ficar depois que escurecesse, temendo as criaturas da noite, então ia para um hotel. Hoje decidi arriscar e ver se eu o encontrava pela noite – ela pegou um cigarro e o acendeu, triste.

– O cigarro – Icabode se lembrou da bituca que vira no cinzeiro. – Não era do Sunday, era seu.

– Perdoe-me – Katherine se levantou e se encaminhou ao banheiro. – Preciso retocar a maquiagem. Uma dama não pode andar por aí como um palhaço bêbado.

Sozinho no quarto, Icabode conseguiu ouvir sua tia sussurrando.

Onde está você, Sunday? Se você voltar, eu juro que largo o Jerry. Volte e vamos continuar de onde paramos.  

Ela ainda o ama, Icabode pensou, triste. Em seguida, ele ouviu passos rápidos no corredor do prédio. Se levantou e correu até a sala.

– Temos visitas – ele avisou aos dois companheiros.

Drake Sobogo fechou os punhos. Seu corpo tremia de ódio. Ele queria sangue. Ao seu lado, Caveira puxou os revólveres dos coldres.

– Visitas ruins, eu imagino – ele perguntou, coçando a virilha com o cano de uma arma.

De repente, alguns homens entraram no apartamento. O mais alto deles era Troche, o Judeu de Ferro. Icabode e Troche já estiveram juntos naquele apartamento, semanas atrás. Quando eles eram aliados de Solomon na suposta guerra contra os vampiros.

– Nos encontramos de novo – Troche olhou para Drake Sobogo. – Eu te dei uma surra da outra vez. Quer mais uma?

Drake abriu o sobretudo e o jogou no chão, espumando pela boca. Ele olhou para Icabode, esperando a permissão para atacar.

– Um passarinho me contou que este apartamento estava bem movimentado, com luzes, pessoas e tudo mais – Troche revelou. – E Solomon não gosta muito da ideia de ter um detetive ocultista solto por aí. Sunday sabe demais, e conhece gente perigosa. Ele tem que morrer – ele olhava ao redor. – Digam, onde ele está?

– Garoto – Drake implorou, e seus olhos estavam injetados.

Icabode sabia que era inútil segurá-lo. O conflito era inevitável. Caveira ergueu os revólveres e puxou os cães com os polegares. Ele inclinou a cabeça para o lado e sugeriu.

– Solte o Kraken.

Icabode suspirou e assentiu. Nos próximos minutos, dezenas de pessoas morreriam. Tanto vilões quanto inocentes, adultos e crianças. E Icabode mal sabia, mas ele também perderia sua tia naquela noite.

 

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Icabode St. John [15]

Nos capítulos anteriores: Icabode foi levado até o apartamento do Conselho onde os vampiros de Nova York se reuniam. Durante a reunião, Fermín traiu a Juíza e a Dama do Véu Negro, declarando que elas eram as culpadas pela criação de Solomon. Em seguida, os vampiros ao redor exterminaram as duas mulheres diante de todos. 

 

Fermín havia tombado no chão, e agora ele estava de pé, vendo os cadáveres de suas colegas envelhecerem como múmias. Leo se colocou em sua frente e disse:

– E agora, meu príncipe, posso terminar o que comecei? – ele apontou o taco em direção a Drake Sobogo, e Fermín permitiu com a cabeça.

– Vossa Majestade – Lorena se curvou diante de Fermín. – Solomon Saks matou minha mentora. Como nós iremos captura-lo?

– O que vocês estão fazendo? – Lancelot, o velho albino perguntou, olhando de Leo a Lorena. – Não podem simplesmente escolher o príncipe em nome de todos nós.

– Sim! – alguém se manifestou. – É preciso fazer uma eleição.

– Vocês querem uma eleição? – Fermín foi até Icabode e arrancou a estaca de seu peito. Icabode caiu de joelhos, se livrando da paralisia. – Diga-me neófito. O que aconteceu com Ritzo quando ele tentou empalar Solomon Saks?

Icabode olhou para ele, surpreso.

– Como você sabe disso?

– Ainda não entendeu que sou telepata? – Fermín respondeu, cansado. – Estou lendo a sua mente pelas últimas duas horas. Agora responda! Diga a eles o que aconteceu no cemitério.

Foi por isso que você me poupou, Icabode pensou, olhando pra ele. Eu sou o único que sabe da magia de proteção de Solomon, e também que existe alguém que pode revertê-la.

– Solomon Saks está protegido por um ritual muito forte, e não pode ser empalado – Icabode revelou, olhando para os vampiros ao redor. – Ele removeu o próprio coração do peito.

– Mas isso é o de menos – alguém resmungou. – É possível matar um vampiro sem ter que empala-lo antes.

– Mas Solomon consumiu a alma de vários vampiros poderosos – Icabode disse, sério. – Seu corpo está se tornando uma coluna de pedra, e dificilmente alguém conseguirá feri-lo. Ele é praticamente imortal. Se não conseguirmos paralisá-lo, não conseguiremos causar dano algum em seu corpo.

– As coisas não são bem assim – Fermín colocou a mão no ombro de Icabode. – Por um lado, o jovem aqui está correto. Solomon é veloz e maciço. Ele se move como uma bola de canhão. Mas se for empalado, mata-lo será tão fácil quanto matar um filhote de gatinho.

– Mas você o ouviu – Lancelot apontou para Icabode. – Ele removeu o coração do peito. É impossível enfiar a estaca em uma coisa que não existe.

– Por isso que meu jovem escudeiro aqui – ele apertou o ombro de Icabode – irá para o México. Ele sabe onde está a única pessoa capaz de reverter essa situação.

Colabore, a voz de Fermín entrou na mente de Icabode. Se você obedecer, eu removerei sua condenação, e você poderá viver em Nova York em paz.

– Porém! – Fermín ergueu um dedo. – Eu serei o vosso príncipe interino durante essa caçada de sangue. Sem eleições até que eu mate Solomon.

– Ou que você fracasse – Lancelot inclinou a cabeça.

– Como quiser – Fermín sorriu para ele. – Todos estão de acordo?

Ao redor, os vampiros sussurravam e olhavam uns para os outros. Icabode tinha a sensação de ver um grupo de cobras em formatos humanos, sibilando tramas o tempo inteiro. Não houve uma discordância sequer. Fermín assentiu, satisfeito.

– Mas eu irei sozinho? – Icabode perguntou, quebrando o silêncio. – Não seria muito inteligente mandar um neófito sozinho para uma missão de tamanha importância, não acha?

– Claro que não – Fermín respondeu, entortando a boca com a observação. – Nós poderemos abrir espaço para voluntá…

– Ele vai comigo – Icabode apontou para Drake Sobogo. – Nós já trabalhamos juntos uma vez, e não confio em ninguém mais. Mas ele tem que permanecer assim, mortal. Eu preciso de alguém para fazer coisas durante o dia.

Drake se inclinou até conseguir se sentar. Estava muito fraco. Ele recostou contra a parede e assentiu, agradecido.

– Ele é meu – Leo disse, segurando o bastão de baseball com força.

– Ele continuará sendo seu – Fermín avisou. – É apenas uma missão. Ele voltará para ti.

Leo olhou de um lado para o outro, incerto. Por fim, assentiu, um segundo antes de girar o bastão com força e acertar o peito de Drake. Icabode ouviu o som dos ossos quebrarem, provavelmente perfurando o coração do boxeador. Sua caixa torácica estava esmagada, e Drake morreria em segundos.

– O que você fez? – Icabode gritou, cruzando a sala.

– Não é você quem decide se ele vai como mortal ou não – Leo o desafiou. – E se achar ruim, eu o deixo assim mesmo, e procurou outro para abraçar.

Drake cuspia sangue sem parar. Seu corpo deslizava pela parede, caindo no chão, de lado. Seus olhos também estavam cheios de sangue. Ele segurava seu peito afundado, tentando encontrar Icabode com os olhos. Morreu dois segundos depois.

Icabode caiu de joelhos. Estava farto daquilo. Era um homem temente a Deus. Seu pai, o reverendo, o ensinara sobre o caminho que devia andar, e Icabode sabia o que era certo e errado. Aquilo ali era muito errado. Ele queria mandar aquele salão pelos ares. Matar todos os vampiros, incluindo a si mesmo.

Só que você não pode, Sunday disse. Eu preciso de você. Não faça nenhuma loucura. Vá até o meu apartamento o mais rápido possível.

Eu não sei se aguento mais, Icabode respondeu, olhando para o corpo do Capitão Sangrento. Eles são muito malignos. São criaturas odiosas e infernais.

Mas eles são os únicos que podem ajuda-lo a enfrentar Solomon Saks, que é o pior deles! Sunday o lembrou. E se você não obedecer, eles irão mata-lo!

Talvez eu devesse morrer mesmo, Icabode concluiu.

Sua missão não acabou. Talvez sua alma não esteja completamente perdida. Deve haver um jeito de salvá-la… e eu… eu preciso de você.

Icabode limpou as lágrimas de sangue e balançou a cabeça. Sentiu vergonha de seu egoísmo. Sua alma era como um grão de areia. Ela podia estar perdida, mas ainda havia muitas coisas a serem feitas. Muitas criaturas malignas pra destruir. Sunday está clamando por minha ajuda! Não posso pensar só em mim.

Ele se levantou, relutante, e encarou a Leo.

– Então deixe-o descansar em paz – pediu. – Não o transforme.

– Descansar em paz? – Leo sorriu, ficando de cócoras e abraçando o corpo de Drake. – Eu estou fazendo um favor para este aqui, tirando-o do lugar onde ele está agora.

O vampiro bebeu todo o sangue do boxeador, e em seguida depositou algumas gotas do próprio sangue nos lábios do cadáver. Os vampiros ao redor começaram a se afastar, preocupados, menos Leo e Icabode. Algo feio estava prestes a acontecer. Sempre que um vampiro despertava do seu Abraço, ele se tornava uma besta violenta e sanguinária.

Icabode não sabia, mas os membros do clã de Leo eram piores ainda. Assim como Anthony Ritzo, Ivanovitch e Leo, os humanos transformados por um vampiro desse clã, eram naturalmente explosivos e dados à violência. Drake Sobogo se tornaria uma máquina de matar em três, dois, um…

Os olhos vítreos e mortos do boxeador se moveram repentinamente. Suas mãos empurraram o chão, e ele estava em pé no instante seguinte. Sua pele estava pálida, como se tivesse maquiagem. Os olhos cheios de sangue olhavam para cada pessoa ao redor. Ele abria as mãos como se tivesse garras ao invés de dedos.

– Cuidado! – alguém gritou.

Drake Sobogo se locomoveu mais rápido que um piscar de olhos, e três vampiros foram jogados para o alto. O boxeador atravessou a multidão, batendo e mordendo em todos que estavam em seu caminho.

– Que divertido! – Lorena bateu palmas, rindo. – Me sinto em Madri!

– Leo, controle sua prole! – Fermín gritou, exasperado.

Leo bateu o bastão na própria mão e começou a caminhar na direção da confusão. Icabode se pôs ao seu lado. Queria evitar danos maiores ao companheiro. Os vampiros saíam da frente enquanto os dois se aproximavam. Alguém começou a gritar de dor no fundo da multidão, onde Drake se enfiara.

– Vem, gatinho, gatinho, gatinho – Leo chamou, alcançando o canto do salão.   

Drake estava de cócoras, segurando o braço de um mortal. Ele mastigava a mão do sujeito, que agora era apenas um cotoco ensanguentado onde acabava o antebraço. O homem desmaiara de dor, enquanto uma vampira olhava para Leo, furiosa.

– Chegou a hora de você transformar o seu lacaio em um de nós – Leo deu de ombros, sorrindo.

– Ele nunca mais terá uma mão! – a vampira apontou para o mortal.

Drake olhou para eles, ainda mastigando. Seu rosto estava lambuzado, como se chupasse uma manga vermelha. Ele deixou o braço cair no chão, se virando para os dois. Icabode engoliu seco, percebendo o movimento de caçador. Drake se jogou sobre as pernas traseiras, mas foi interceptado no ar pelo bastão de Leo que se estilhaçou em sua cabeça.

Drake caiu de costas no chão, cheio de lascas de madeira no rosto. Leo ficou ao seu lado e enfiou a parte pontuda que o bastão se tornara, direto no peito do boxeador. Ele pegou o vampiro empalado e o arrastou até um quarto. Depois, voltou para a sala, segurando a estaca ensanguentada. Ele foi até o lacaio maneta e separou o resto de seu braço do ombro, e jogou o membro no quarto em que colocara Drake.

– O que você fez? – a vampira gritou, olhando para seu lacaio agora sem um braço inteiro. – Você pagará por isso, Leo!

– Ele já tinha perdido a mão mesmo! – Leo respondeu, segurando a maçaneta da porta, enquanto Drake se alimentava sozinho do outro lado.

Icabode olhou para o mortal no chão, perdendo litros de sangue no carpete. Depois se virou e viu todos os vampiros sorrindo da situação, como se ele fosse apenas um animal qualquer. Meu Deus, Icabode pensou, isso é um ninho de demônios.

Ele se recostou ao lado da porta e ignorou todo o resto, esperando que o Capitão Sangrento ficasse consciente de novo. Fermín disse mais algumas palavras e dispensou os outros vampiros da sala. Os últimos a ficarem, foram Leo e Lorena, os maiores apoiadores do novo príncipe.

– Você sabe que o meu clã é o mais numeroso de Nova York, não sabe? – Lorena disse, olhando para Fermín. – Enquanto eu decidir que você é o príncipe, as coisas estarão favoráveis a você. Ninguém quer me ver irritada.

– Confesso que fiquei surpreso quando você matou a Juíza e declarou seu apoio a mim, publicamente – Fermín disse, avaliando-a.

– Poucos tem o poder de remover e colocar governantes – ela disse. – Eu só queria que todos se lembrassem disso – ela se virou e sorriu. – Além do mais, ter um príncipe como um devedor é magnifique!

Lorena sumiu pela porta, deixando Fermín com Leo e Icabode. Leo olhou para o príncipe, incomodado.

– Tome cuidado com essa aí.

– Eu tomo cuidado com todos – Fermín mostrou um sorriso pra ele. – E você mostrou ser leal hoje. Eu irei recompensá-lo por isso.

– Me torne seu xerife – Leo pediu. – Eu caçarei quem você quiser, sem questionar.

Icabode assistia os dois, silenciosamente, quando a porta ao seu lado abriu, e dela saiu um Capitão mais Sangrento ainda.

 

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Icabode St. John [14]

Nos capítulos anteriores: Após descobrir que Solomon fizera um ritual para remover o próprio coração, evitando que fosse empalado e paralisado, Icabode descobriu que havia um homem no México capaz de reverter tal feitiço. Ele percorreu os esgotos e Nova York, escapando de um crocodilo gigante, enquanto Solomon matava vampiros em vários locais da cidade. Icabode foi até o apartamento de Sunday e se permitiu ser levado por capangas do Conselho, quando viu uma bituca de cigarro no cinzeiro, o que o levou a concluir que Sunday tinha passado durante o dia ali. 

 

Icabode estava paralisado com uma estaca no coração. O enviado do Conselho o enfiou em uma mala apertada, e a arrastou pelos degraus do prédio. Icabode sabia exatamente quando seu corpo fora jogado no porta mala de um carro, e minutos mais tarde, quando foi tirado. O barulho de um bagageiro batendo era inconfundível. Vozes em um lugar cheio de eco discutiram sobre quem o carregaria escadas acima.

Sunday, onde está você? Icabode pensou, lembrando da bituca do cigarro que avistara no apartamento do detetive. Eu sei que você esteve em casa. Por que não fala comigo?

Ele não sabia quem o levava pelas escadas, mas a má vontade era perceptível. O corpo de Icabode batia em cada degrau, arrastado por dezenas de andares.

Ele sentiu seu corpo girar no ar e acertar algo fofo, uma cama, talvez. Luzes invadiram sua visão, e alguém colocou seu corpo em uma poltrona. A suíte era coberta com seda, veludo e molduras de ouro. Três rostos familiares o observavam do outro lado do quarto.

– Devemos mata-lo agora? – a Dama do Véu Negro perguntou.

– Não – a Juíza respondeu lambendo os lábios cheios de pústulas. – Devemos mata-lo em frente aos membros. Nós queremos que cada vampiro de Nova York canalize o seu julgamento a esse neófito.

– Concordo com a Juíza – Fermín Pedralbes disse, ajeitando o seu pince-nez sobre o nariz. – Esperem os membros chegarem. Nós diremos que foi esse garoto quem criou Solomon Saks. E que por causa disso, todos os vampiros que morreram esta noite são de responsabilidade dele.

– Teve mais algum ataque? – a Dama de Véu Negro perguntou.

– Mais dois vampiros foram mortos no Queens. O Coruja acabou de me informar – Fermín disse, encarando Icabode. – Solomon está fazendo um limpa na cidade.

– E se eles pedirem para o garoto falar? – a Juíza perguntou. – Ele dirá que nós o enviamos para lidar com o Solomon. Os vampiros ficarão furiosos ao saber que enviamos um neófito.

– A gente não sabia que Solomon iria fazer o que fez hoje – A Dama do Véu Negro ripostou, nervosa.

– Isso não importa, minha cara – Fermín se afastou das duas, olhando para o chão. – Solomon matou muitos vampiros importantes ontem e hoje. Ele exterminou os homens de Anthony na outra semana. Nossa única medida foi enviar um neófito para lidar com isso. Essa derrota causaria a nossa destruição. A estaca não pode sair dali – ele apontou para o peito de Icabode. – O garoto não pode nos delatar. Precisamos mata-lo antes que alguém queira ouvir seu depoimento.

Os três olharam para o prisioneiro, e Icabode sentiu sua vida ser pesada e analisada. Não importa a solução que o Conselho encontraria, ele sabia que não iria sobreviver aquela noite.

Alguém bateu a porta, e um homem de terno e chapéu entrou.

– O salão já está cheio, Juíza. Os membros estão impacientes.

– Então devemos resolver isso imediatamente – a Juíza disse, olhando para a Dama do Véu Negro.

A outra vampira ergueu a mão, e Icabode começou a flutuar. Ele viu seu corpo levitar pelo quarto até um salão onde um gramofone tocava Bach, Prelude From Cello Suite No 1. Aquela música enchia o coração de qualquer um de melancolia, tristeza e beleza ao mesmo tempo.

Como nunca ouvi essa música antes? Icabode pensou, sentindo a mão gelada da morte acariciar seu rosto.

Havia quase cem pessoas no cômodo, todos com expressões de raiva ou preocupação. Eles se viraram rapidamente em sua direção, mostrando os caninos.

Icabode quis gritar. Não imaginava que existiam tantos vampiros assim. Mais do que nunca, ele sabia que estava morto. Um vampiro com jaqueta de couro, segurando um bastão de baseball foi para o centro da sala, tirando os óculos escuros do rosto.

– Eu exijo ser ouvido primeiro! Onde está Anthony Ritzo? Nós dois somos os últimos sobreviventes do nosso clã, e vocês ainda estão o caçando? Isso é pura babaquice! Quero que isso acabe imediatamente!

– Babaquice, Leo? – uma mulher de longos cabelos vermelhos deu um passo a frente. – Pelo que ouvi falar, Solomon Saks foi abraçado e se fortaleceu debaixo das asas de Ritzo. Todos estão dizendo que eles estão trabalhando juntos.

O vampiro de jaqueta segurou o taco de baseball com firmeza e olhou para a mulher.

– Lorena, se é você quem anda espalhando essas mentiras, vou esmagar o seu crânio até ele virar farinha branca.

– Acalmem-se todos! – a Juíza ergueu as mãos. – Nós precisamos ser inteligentes para lidar com Solomon Saks.

Icabode foi colocado de pé, encostado a uma parede enquanto assistia a reunião. Seus olhos captaram num canto, uma pessoa deitada no chão. Capitão Sangrento! Ele reconheceu Drake Sobogo acorrentado ao pé da mesa, caído como um cachorro obediente. O soldado tinha o rosto cheio de feridas, e estava magro. O que eles fizeram com você?

– Por que eu deveria dar ouvidos a vocês? – Leo se colocou à frente da Juíza, apertando o taco. – Eu estou sozinho aqui. Não tenho ninguém do meu clã para cuidar das minhas costas. Solomon já matou todos os outros, incluindo Ivanovitch.

– O que você quer para se acalmar Leo? – Fermín perguntou, tentando controlar os nervos.

– Eu sou o último do meu clã. Isso não pode ficar assim!

– Você quer a permissão para o Abraço, é isso? – Fermín perguntou, atencioso.

– Pra começar, seria bom – Leo disse, controlando o tom de voz.

– Eu não veria problema nisso – Fermín olhou para a Dama do Véu Negro, que concordou com a cabeça. Os dois olharam para a Juíza.

– Claro, claro – ela abanou a mão para o vampiro em sua frente. – Você poderá escolher um mortal para torna-lo membro de seu clã.

– Eu quero aquele ali – Leo respondeu, apontando para Drake Sobogo.

– Você não deseja procurar com paciência alguém que se encaixe no perfil… – a Juíza começou a perguntar, mas foi interrompida.

– Não preciso – Leo atravessou a sala até onde Drake estava caído. – Eu conheço esse negro aqui. Ele é conhecido como Capitão Sangrento nos becos de Nova York. É o melhor boxeador que já vi. Se ele não faz o perfil do meu clã, ninguém mais faz.

– Que seja! – a Juíza disse, impaciente. – Mas saiba que ele estava envolvido com Solomon.

– Eu estava tentando mata-lo quando vocês me prenderam! – Drake gritou, fraco. – Se não tivessem atrapalhado, talvez eu tivesse conseguido.

– Silêncio! – a Juíza gritou, pega desprevenida. – Leo, mate-o antes que eu mude de ideia.

– Algo me diz que o seu companheiro não vai durar muito tempo depois do Abraço – Lorena, a ruiva, salientou, encarando a Juíza.

– O que está sugerindo, senhorita? – a Juíza perguntou, ofendida.

– Que se nem mesmo seu colega, Ivanovitch, o “vampiro mais forte do mundo” conseguiu vencer a Solomon, qual chance nós teremos? Afinal, o Conselho tem algum plano para enfrenta-lo?

– Talvez você queira fazer esse serviço – A Dama do Véu Negro disse, fechando os punhos das mãos.

– Nas outras cidades, eles possuem príncipes – um vampiro disse, brotando do meio das pessoas. Ele era velho e albino. – Na maioria dos lugares os conselhos foram destituídos. Muita burocracia, muita conversa fiada. Também me questiono se vocês têm o que é preciso.

– Poucas cidades são como Nova York, senhor Lancelot – a Juíza informou. – Nosso Conselho sabe trabalhar de forma que as decisões sejam rápidas, eficazes e com quatro cabeças pensantes.

– Três – Lorena corrigiu, mostrando um sorriso. – O mais forte de vocês foi morto e derrotado. Então só restaram três de vocês.

– Vocês ousam desafiar a autoridade do Conselho? – a Dama do Véu Negro perguntou, indo para o centro da sala.

– Acalme-se, minha senhora – Fermín se colocou ao lado dela. – Nós iremos resolver isso da maneira correta – ele se virou para a multidão. – Antes de falarmos sobre a estratégia de capturar Solomon Saks, precisamos desatar uns nós. Sei que muitos de vocês estão confusos sobre quem causou toda essa situação. Sobre quem teria criado Solomon Saks sem nossa autorização.

– E não foi Anthony Ritzo? – alguém perguntou.

– Acho que foi a sua mãe, seu merdinha! – Leo respondeu ao vampiro, com o pé sobre as costas de Drake.

– Por favor, acalmem-se – Fermín pediu, guardando seu pince nez no bolso do colete. – O culpado não foi Anthony Ritzo. Na verdade, ele foi apenas o bode expiatório para levar a culpa.

Todos os convidados franziram suas testas, sussurrando palavras de indignação. Inclusive a Juíza e a Dama de Véu Negro.

– Então você confessa que está jogando a culpa em um inocente só para se safar? – Lorena perguntou com um sorriso incrédulo.

– Não, não – Fermín mostrou a mão para ela. – Eu nunca faria isso. Mas elas sim – ele se virou para a Juíza e a Dama do Véu Negro. – Assim como elas capturaram aquele neófito só para depositar no pobre rapaz a culpa de tudo.

– Você enlouqueceu? – A Juíza perguntou, se aproximando do colega. – O que acha que está fazendo, Fermín Pedralbes.

– Não adianta fingir que não sabe, Excelência – Fermín sorriu pra ela. – Todo mundo sabe que sou telepata. Eu sei que não tenho permissão para entrar na cabeça dos membros, mas em tempos extremos como esse, acha que não iria vasculhar cada um de vocês? Achou mesmo que sua traição passaria desapercebida?

– Traição? Do que você está falando? – Leo perguntou, batendo com o taco na própria mão.

– Elas duas se uniram e abraçaram Solomon Saks com o objetivo de instalar o terror em Nova York – Fermín disse. – Elas acharam que assim, vocês nos dariam poder absoluto para consumir a alma de outros vampiros, para nos equipararmos a Saks. Com o polonês morto, nosso poder e autoridade seriam inquestionáveis. Ninguém poderia se equiparar ao Conselho. Apesar de tal premissa, eu não me deixo levar por tais seduções. O destino de todo megalomaníaco é a morte precoce.

Icabode não acreditava no que estava vendo. Por que Fermín estava mentindo? Por que ele o estava protegendo?

– Eu vou destruí-lo, seu verme traidor! – A Dama do Véu Negro estendeu seus braços, e fez Fermín levitar.

– Tem algum telepata por aí? – o velho Lancelot perguntou, olhando ao redor. – Precisamos verificar se o que Fermín diz é verdade.

– Não existe outro telepata entre nós – a Juíza ripostou, assustada. – E o Fermín sabia disso. Ele sabe que ninguém podia desmenti-lo!

– Agora cabe a vocês escolherem – Fermín disse, se debatendo no ar. – Quem vocês acham que criou o vampiro que aterroriza Nova York, um neófito recém abraçado ou duas vampiras velhas que vivem tramando jogos de manipulação?

– E se você estiver mentindo, Fermín? – Lancelot perguntou, receoso.

Fermín sorriu.

– Por favor, vocês não estavam insatisfeitos com o Conselho? Por que simplesmente não aproveitam a oportunidade de extingui-lo?

– Eu vou te matar agora, sua criatura vil – a Dama do Véu Negro disse, e abriu os braços, usando a telecinese para rasgar o corpo do colega.

Os olhos de Fermín se encheram de sangue, e todos os vampiros ficaram imóveis, assustados. Icabode assistia a cena, aflito. Se elas ganhassem, ele morreria antes que pudesse falar qualquer coisa.

Acontece que antes que ela partisse Fermín em dois, um taco de baseball acertou sua nuca. A Dama de Véu Negro caiu de quatro no chão. Leo, colocou seus óculos escuros de volta e começou a golpeá-la até tornar sua cabeça um grande monte de creme crocante no assoalho.

A Juíza recuou dois passos, apavorada, quando uma estaca surgiu de sua barriga. Em suas costas Lorena sussurrou algo. Os vampiros ao redor agarraram seus membros e a destruíram com as próprias mãos.

Fermín havia tombado no chão, mas se levantara novamente, vendo os cadáveres de suas colegas envelhecerem como múmias. Ele olhou para os lacaios das duas vampiras e ordenou que fossem mortos imediatamente. Ele colocou o chapéu na cabeça e começou a folhear os livros da mesinha enquanto os convidados terminavam a matança.

No fim, Leo se colocou em sua frente e pediu:

– E agora, meu príncipe, posso terminar o que comecei? – ele apontou o taco em direção a Drake Sobogo, e Fermín permitiu com a cabeça.

– Vossa Majestade – Lorena se curvou diante de Fermín. – Solomon Saks matou minha mentora. Como nós iremos captura-lo?

Fermín sorriu e virou o rosto lentamente em direção a Icabode.

 

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Icabode St. John [12]

Nos capítulos anteriores: Icabode e Leon se uniram a Anthony Ritzo para caçarem Solomon, mas antes que sequer saíssem do esconderijo, o polonês apareceu com seu séquito, revelando que havia consumido a alma de todos os membros do clã de Anthony. Um confronto teve início, e no final, Anthony empalou Solomon. Mas antes que pudesse matá-lo, o séquito do polonês interveio e resgatou o corpo de seu senhor, levando-o para longe. Como Icabode e seus companheiros falharam em deter o inimigo, eles decidiram fugir, pois sua derrota atrairia a fúria dos vampiros do Conselho. 

 

Quando criança, Icabode fora mordido por um rato dos esgotos de Nova York. Foi uma mordida daquelas que te deixam vários dias doentes. Seu trauma começou aí, e naquela briga de bar ficou mil vezes pior. Ratos vinham de todas as direções e o mordiam como se ele fosse um grande pedaço de queijo.

Nos dias seguintes após a destruição do Portões do Inferno, Icabode continuou sendo perseguido pelas criaturas. Elas estavam sempre escalando seu corpo, penduradas em suas roupas, vindo das ruas, das paredes, do meio da água. Eles estavam em todos os lugares. Uma semana depois ele parou de sentir a dor das mordidas, como se seu corpo tivesse acostumado com a sensação. Mas ainda assim os minions dos esgotos estavam sempre ao seu redor.

Um belo dia eles sumiram. Icabode saiu de seu esconderijo, aliviado pela primeira vez e foi até o parapeito de aço. Ele olhou ao redor, cem metros acima do chão. A ilhota estava cercada de água. As luzes da cidade estavam a quilômetros dali, como se até mesmo os prédio soubessem que era inteligente manter a distância entre eles. Icabode mal se lembrava de como tinham achado aquele esconderijo.

– Você está melhor? – Leon perguntou, se aproximando por trás. – Não acordou gritando hoje.

– Eles sumiram – Icabode gaguejou, olhando a câmara metálica ao redor. – Eu fiquei quanto tempo nesse estado? E onde está Solomon Saks?

– Duas semanas – Leon respondeu, preocupado. – E Saks continua desaparecido.

– Não mais! – Anthony Ritzo subiu as escadas, vestindo uma calça bege e camisa regata, branca. – Eu consegui uma informação sobre o paradeiro do polonês.

– Ele voltou à mansão? – Leon perguntou, surpreso.

– Não, mas eu encontrei um de seus capangas.  – Anthony respondeu e jogou dedos decepados no chão. – O polonês fez uma visitinha ao Sombra. Ele é um traficante de informação que mora em um cemitério aqui de Nova York. É pra lá que vamos – ele olhou para Icabode. – Você parece lúcido. Virá conosco?

– Essa é uma pergunta idiota – Icabode respondeu, vestindo a jaqueta que trazia pendurada no ombro.

– Acalme-se, garoto – Anthony mostrou a palma da mão. – Iremos no meio da madrugada, quando a cidade estiver dormindo.

 

Às três da manhã, os três saltaram o muro de pedra como se fosse uma cerca para cachorros. Dentro do cemitério, não se podia ver o chão debaixo da névoa. As árvores pareciam dedos pelados, numa teia de galhos que cobriam suas cabeças. As lápides eram cobertas de musgo e teias de aranha, como se nenhum zelador passasse ali há anos.

– Quando alguém diz “cemitério”, em minha mente sempre vem o Cemitério Nacional de Arlington, um grande campo verde, cheio de lápides brancas e alinhadas – Leon disse, estalando os dedos, assustado.

– Pensei que vampiros não tivessem medo de cemitério – Icabode comentou, segurando o revólver.

– Não tem nem um mês que você é um de nós e já quer bancar o sabe tudo – Leon deu um soco em seu ombro. – Os vampiros não são as únicas coisas perigosas nas noites de Nova York.

– Silêncio! – Anthony ia à frente, com a escopeta encostada no ombro. – Vocês conseguem ouvir algo?

Leon e Icabode ativaram seus ouvidos aguçados e olharam ao redor.

– Ouço o barulho de correntes – Icabode disse, engolindo seco. – O som vem dali.

– Por que não vai na frente, valentão? – Leon o empurrou de leve.

Os três avançaram, cada um segurando sua arma. E Anthony ergueu a escopeta assim que viram um mausoléu antigo, com uma gárgula em seu topo. Icabode abriu seus ouvidos e escutou batidas abafadas e rítmicas, bem baixinhas vindo do mausoléu.

– Estou ouvindo o coração… é um humano.

– Sombra, saia do seu esconderijo! Se preferir, eu o trago arrastado! – Anthony gritou, cuspindo saliva.

Um gemido veio do mausoléu. Em seguida, correntes sacudiram e caíram no chão. O portão de ferro rangeu enquanto era aberto por mãos de unhas compridas. Um sujeito negro e corcunda apareceu, mancando. Usava calças de couro e um colete folgado. Em seu peito, havia uma corrente da cruz ansata, um Ankh.

– Qual o seu assunto com Solomon Saks? – Anthony perguntou, mostrando-lhe o cano da escopeta. – O que ele veio fazer aqui?

– Saiba que eu não sou a única pessoa em risco aqui – Sombra respondeu com sotaque estrangeiro, erguendo as mãos. Ele parecia assustado. – Se fizer algo comigo…

– Você está me ameaçando, seu merdinha? – Anthony se aproximou, colando a escopeta no rosto do homem. – Antes que você faça qualquer coisa, eu mando seu cerebelo para o topo daquela gárgula.

– Tudo bem – ele gaguejou. – Não precisamos fazer loucuras aqui. Mas no momento que eu quebrar o sigilo que tenho com o meu cliente, nunca mais confiarão em mim – ele viu a impaciência no olhar de Anthony e começou a falar. – Ele veio atrás de ingredientes para um ritual de bruxaria. Eu não sei qual ritual, ainda mais porque ele não tinha motivos de revelar uma coisa tão pessoal pra mim, um traficante de informações, não é? – ele sorriu, nervoso. – E os ingredientes serviriam para vários rituais diferentes, então não poderia nem lhe dizer algo específico. Depois ele me pagou e eu agradeci pela confiança – ele olhou para o cano em seu rosto.

– Eu acredito nele – Icabode disse, olhando ao redor.

– Eu também – Anthony disse, e apertou o gatilho.

O Sombra foi arremessado, e seu corpo rolou pelo chão. Ele segurou a barriga aberta e olhou para os três, surpreso.

– Ele disse o que queríamos! – Icabode gritou, se colocando na frente de Anthony. – Por que você fez isso?

– Não quero deixar um rastro de onde estive – Anthony respondeu, encarando-o nos olhos. – Ele entregou a Solomon, não entregou?

– Vocês deveriam ter saído daqui – Sombra disse, fazendo careta de dor. – Eu teria deixado vocês partirem.

– Do que você está falando? – Leon perguntou, se aproximando dele.

– Ei, se afaste daí – Anthony disse, receoso.

Uma luz verde emanou por dentro do moribundo, refletindo por seus olhos, como uma pequena explosão, e no instante seguinte, Sombra estava morto. Os três olharam ao redor, atentos.

– Vamos sair daqui, rápido – Anthony disse, se afastando do mausoléu. E no terceiro passo, ele tropeçou na raiz de uma árvore e caiu, ou pelo menos ele achou que fosse uma raiz.

Dedos começaram a abraçar seu tornozelo, prendendo-o no chão. Uma mão ossuda saiu de outra parte da areia e agarrou a outra perna. Outros dedos surgiram, segurando sua cabeça e braços. Um esqueleto de terno e gravata, cheio de vermes, saiu da terra agarrando o vampiro. 

– Os mortos estão se levantando – Icabode disse, se virando a tempo de ver centenas de mãos se projetando para fora das covas.

A escopeta cuspiu algumas vezes, e Anthony estava em pé novamente.

– Rápido! – gritou ele. – Sigam-me!

Anthony começou a correr, e Icabode e Leon iam em seu encalço pulando sobre os esqueletos derrubados no caminho.

– Ele é um rinoceronte! – Leon disse, vendo Anthony derrubar dezenas de cadáveres, deixando um caminho de zumbis esmagados no chão.

Depois de percorrerem o labirinto de lápides, uma bola de fogo acertou uma cripta logo em frente ao grupo, fazendo-os parar. Uma figura comprida e esguia pousou diante deles.

– SAKS! – Icabode gritou ao ver o polonês.

Em seguida, Rabin surgiu ao seu lado, e Troche, o Judeu de Ferro, do outro. Solomon segurou suas mãos nas costas, sorrindo. Os zumbis fizeram um círculo ao redor do grupo, parados.

– Eles não vão nos atacar? – Solomon perguntou.

– Eles sabem que somos aliados do Sombra – Rabin respondeu.

– Perfeito. Não quero interrupções.

– Parece que você quer levar outra surra – Anthony jogou a escopeta no chão e foi até a árvore ao lado, arrancar um galho grosso.

– Na verdade estou surpreso de vê-los aqui – Solomon disse, observando Anthony tornar aquele galho em uma grande estaca. – Mas acho que precisamos terminar aquela nossa disputa, sim.

– Dessa vez, terminamos isso aqui – Anthony respondeu e marchou ao seu encontro com uma estaca improvisada na mão direita.

Ele avançou sobre Solomon e esticou o braço sem qualquer resistência. Solomon nem sequer saiu do lugar. A estaca entrou em seu peito e saiu em suas costas.

– Isso! – Leon gritou, excitado.

Icabode se manteve em silêncio. Rabin e Troche estavam sérios, olhando para o seu senhor. Nenhum deles fez qualquer tentativa de impedir Anthony. Tinha algo de errado.

– Funcionou? – Troche perguntou, subitamente.

– Claro que sim – Rabin respondeu. – Mestre?

Solomon Saks olhou para baixo, deixando os oponentes perplexos. Em seguida, ele arrancou a estaca do peito e a enfiou no coração de Anthony com tanta força que o empurrou alguns metros para trás. O polonês tirou seu sobretudo e mostrou seu torso nu, branco e pálido. Havia um buraco sobre seu peito, por onde Icabode e Leon podiam ver através. O coração de Solomon não estava ali.

Icabode ficou imóvel ao ver que o polonês removera o próprio coração, mas ao ver Anthony empalado e paralisado, saiu do transe e correu em sua direção.

– Rabin, termine isso – Solomon disse, e uma bola de fogo nasceu na mão do feiticeiro.

Rabin a arremessou, e ela virou uma coberta de fogo ao redor do corpo de Anthony. Icabode voou para trás, sentindo um pavor pior do que quando sentira com os ratos. Ver o fogo assim tão perto era como se tocasse o próprio sol infernal.

– Venha, rápido! – Leon o ajudou a se levantar e o puxou dali.

– Matem esses dois vermes – Solomon disse, e os zumbis começaram a avançar novamente.

– Use seu poder, rápido! – Leon disse, e desapareceu do nada.

Icabode se encolheu atrás de uma lápide e também ficou invisível. Os zumbis ao seu redor olhavam de um lado para o outro, procurando-o. Com muito cuidado, ele entrou em um mausoléu com o portão tombado, e sentou no chão de mármore. A luz da lua cobria seus pés, mas ninguém o via, mesmo se olhasse direto em seus olhos. Diante do portal, cadáveres bamboleavam e mancavam, com pedaços de pele e musgo pendurados em seu corpo.

Icabode abriu os ouvidos e escutou a voz de uma quarta pessoa se juntando ao séquito de Solomon. Ele reconheceu a voz do homem que lhe mandara os ratos, era Gólgota.

Mestre, eles mataram o Sombra! – Gólgota avisou.

– Malditos! – Solomon disse, furioso.

Acalme-se – Rabin pediu, tranquilo. – Veja o lado bom disso.

– Lado bom? – Troche perguntou, impaciente. – O Sombra finalmente encontrou o endereço de Maxiocán, o único que pode reverter o feitiço de Solomon, e agora o Sombra está morto. Como iremos encontrar esse mexicano? Como iremos mata-lo?

– Se Maxiocán é o único que pode reverter o feitiço de Solomon – Rabin explicou com calma –, e o Sombra é o único que pode encontra-lo, nossos problemas estão resolvidos. Com o Sombra morto, ninguém encontrará Maxiocán.

– E ninguém saberá onde eu escondi meu coração – Solomon finalizou. – Finalmente me tornei Solomon Saks, o Imortal!

Icabode se lembrou do dia em que atacaram o esconderijo de Leon, ao lado de Saks e Sunday, quando pensava que Solomon iria iniciar uma “Guerra Santa” contra os vampiros. No final da noite ele os traíra, e dissera que todos ouviriam falar em “Solomon Saks, o Imortal”. Sua profecia estava se cumprindo.

Icabode abraçou os próprios joelhos e ficou balançando pra frente e para trás.

 

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Icabode St. John [11]

Nos capítulos anteriores: O mafioso Solomon Saks consumiu a alma dos vampiros Anatole e Ivanovitch, dois cainitas poderosos. O Conselho de Nova York decidiu colocar a culpa disso em Icabode, Leon e Anthony Ritzo, ordenando que os três dessem um fim no mafioso. Eles se encontraram no bar Portões do Inferno e começaram os preparativos para a missão. 

 

Icabode, Leon e Anthony pegaram diversas armas e munições do arsenal que ficava no porão do bar “Portões do Inferno”. Anthony vestira uma máscara de demônio e mandou que seu empregado, Brad, fechasse o bar.

– Eu não me sinto bem com armas – Leon disse, segurando uma pistola com má vontade. – Eu sei que é preciso, mas…

– Não fode – Anthony o interrompeu, saindo do porão para a cozinha. Ele olhava para o relógio, tenso. – Por que eles não me ligaram ainda?

– Eles quem? – Icabode perguntou, seguindo-o.

– Meus homens estão vigiando a mansão do polonês. Eles ficaram de ligar para me atualizar sobre seu paradeiro.

– Talvez ele não saiu de casa – Icabode falou. – Ou não voltou da noite passada.

– Não podemos esperar mais – Anthony resmungou, decidido. Os três estavam na cozinha, aguardando o bar esvaziar.

– Anthony – Brad, o bartender surgiu pela porta. – Os clientes estão se recusando a sair. Eles disseram que são veteranos, que está cedo e que querem mais bebida. O que eu digo?

– Era só o que me faltava – Anthony chutou a porta da cozinha, entrou no bar e ergueu a escopeta. – VOCÊS TEM TRÊS SEGUNDOS PRA DAR O FORA!

Icabode e Leon assistiram o lugar se esvaziar em poucos segundos. O bar era só deles. A jukebox tocava uma música do sul, e a fumaça dos fumos pairava sobre suas cabeças.

Anthony Ritzo tinha uma rixa antiga com a máfia polonesa. Ambos comercializavam armas no mesmo bairro. Icabode via a fúria do vampiro, e tinha medo de que ele fizesse alguma tolice como foi com Ivanovitch.

Lá fora, o motor da moto do último cliente se afastou, e os vampiros trouxeram suas armas para as mesas do bar, e começaram a debater se deviam ir até a mansão ou não. A resposta veio sozinha. A porta se abriu, jogando a luz da rua no assoalho.

– O bar está fechado – Brad avisou ao suposto cliente.

– Você não sabe o quanto isso é verdade – Solomon Saks respondeu.

Os três vampiros se viraram pra ele, incrédulos. O polonês puxou uma cadeira e sentou, calmo. Ele vestia um sobretudo negro por baixo de todo aquele cabelo e barba brancos. Ele sorriu, e as pontas de seus caninos pressionaram os lábios inferiores.

– Saia daqui – Ritzo ordenou a Brad, e o bartender foi para a cozinha. Em seguida, ele olhou para Solomon, fechando os punhos – Onde estão os meus homens?

– Lá fora – Solomon informou.

– Algum deles está morto? – Anthony perguntou, engolindo seco.

– Não estamos todo? – Solomon brincou. – Acalme-se, eles estão ali fora, junto com meus homens. Assim que o sol nasceu, meus empregados mortais visitaram covil por covil e os levaram até mim, empalados, é claro. Foi uma operação muito difícil e meticulosa. Eu fiz a proposta para cada membro do seu clã, assim como farei a vocês – ele olhou para Icabode, notando-o pela primeira vez. – Por que eu não suspeitei que você estaria aqui, no esconderijo do meu concorrente? Ontem você saiu sem dizer nada, e fiquei me perguntando onde teria ido.

– Por que não procurou na casa da sua mãe? – Icabode perguntou, cruzando os braços.

– Quê isso? – Leon olhou para o companheiro, surpreso. – Pensei que você fosse religioso.

– Agora sou um vampiro – Icabode deu de ombros.

– Acha que é isso que vampiros fazem? – Leon perguntou. – Xingam as mães dos inimigos?

– Calados – Ritzo rosnou, e ergueu a arma para Solomon. – Você é muito corajoso para entrar aqui sem os seus homens.

– Se tem uma coisa que eu sempre fui, foi ser corajoso – Solomon garantiu. – Por isso cheguei onde cheguei. E se você quiser fazer parte disso que estou construindo, dobre seu joelho e jure sua lealdade a mim.

Os vampiros se olharam, receosos. Ele estava muito confiante. Isso era um sinal assustador. Icabode ergueu sua arma também e olhou para Anthony.

– Desculpe, mas não vou esperar você pensar no assunto.

– Não pensarei – Ritzo assegurou, sem tirar os olhos de Solomon. Em seguida, ele tensionou o braço da escopeta e apertou o gatilho.

O disparo foi alto e ensurdecedor. No susto, Icabode fez o mesmo. Leon a contragosto começou a atirar também. Solomon tombou para trás, junto com a cadeira, e sumiu de suas vistas. Anthony continuou disparando, transformando sua mesa em estilhaços.

– Esse maldito deixou o poder subir à cabeça – ele cuspiu para o lado.

– Isso foi muito fácil – Leon reconheceu, admirado.

Icabode se manteve em silêncio, desconfortável. Solomon ficou de pé repentinamente, olhando para o próprio sobretudo, desgostoso. Nenhum tiro pareceu ter feito grande estrago. Os três ficaram surpresos. A porta se abriu novamente e um homem de barba e cabelos encaracolados, negros, entrou. Ele vestia trajes pretos e uma pequena cartola.

– Mestre? – ele perguntou, preocupado. – Está tudo bem?

– Sim, Gólgota – Solomon disse para o outro vampiro. – Eles não querem fazer o acordo. Traga os membros do clã do senhor Ritzo, por gentileza.

Anthony olhou de um para o outro, tenso. Ele não sabia o que aquilo queria dizer. Gólgota saiu correndo e sorrindo. Depois, ele voltou com um sujeito místico, com medalhões, anéis e uma maquiagem de caveira. Os dois carregavam um grande saco de batatas.

– Rabin – Gólgota disse para o companheiro -, coloque nessa mesa aqui.

Os dois colocaram o saco sobre a mesa, e o viraram de cabeça pra baixo. Várias bolas peludas rolaram sobre a madeira. Ao ver que elas tinham olhos, Icabode percebeu que eram cabeças humanas. Solomon sorriu pra eles.

– Seu clã inteiro era muito delicioso – afirmou. – Não posso reclamar de um sequer.

– Você os capturou durante o dia, seu maldito! – Anthony arregalou os olhos, assustado. – Você… você invadiu suas casas… e os…

– Os consumi – Solomon terminou. Em seguida ele ergueu os punhos como um boxeador. – E agora estou louco pra testar meus novos poderes. Vamos ver se você é tão forte quanto me contaram.

Anthony apertou o gatilho de sua escopeta, mas só ouviu o clique seco, sem munição. Ele jogou a arma no chão e puxou a Thompson de cima da mesa. A metralhadora cuspiu as cápsulas para o lado como mergulhadoras de nado sincronizado. Solomon inclinava o corpo de um lado para o outro, tentando evitar que levasse todos os tiros. Quando o disco de munição acabou, Anthony jogou a arma no chão.

– Estou sentindo o poder em meu corpo – Solomon disse, limpando o sangue no canto da boca. Seu corpo parecia uma peneira, mas as balas não haviam afundado tanto.

Icabode tirou o pino de uma granada e a jogou em sua direção. Solomon se virou sobre o tornozelo e deu um tapa nela, jogando-a para trás do balcão. No instante seguinte, a explosão jogou estilhaços e vidros sobre todos. Leon havia desaparecido, e segundos depois, surgiu atrás do polonês, se jogando em seu pescoço para tentar derrubá-lo. Solomon pegou seus dois braços e o arremessou contra a parede.

– Chefe? – Troche entrou no bar, preocupado. – Tudo certo por aqui?

– Está tudo ótimo! – Gólgota interveio, sorrindo. – Venha assistir conosco, Judeu de Ferro.

Anthony disparou pelo bar como um raio, fazendo as mesas voarem para os lados, e se jogou contra Solomon. Os dois rolaram no chão, como duas rochas pesadas, destruindo tudo em seu caminho.

Icabode ajudou Leon a se levantar, e os dois ficaram imóveis, vendo a luta se espalhar para todos os lados. Os lutadores tinham uma velocidade sobrenatural, e ninguém mais naquele lugar tinha condições de se meter no meio.

Solomon agarrou Anthony pela gola e o empurrou contra a mesa de sinuca, quebrando-a no meio. O dono do bar bateu nos braços do mafioso, se desvencilhando de suas mãos, e começou a soca-lo no rosto.

A briga era barulhenta, e Solomon mantinha Anthony no chão. Todos assistiam, ansiosos, quando o polonês se inclinou para cima, com um pedaço de taco de sinuca enfiado em seu peito. Ele recuou, assustado, mas Anthony não perdeu a oportunidade. Ainda deitado, ele chutou a extremidade da estaca, empalando Solomon, finalmente. O polonês caiu para trás, duro como um manequim.

– Puta que pariu! – Gólgota gritou, arrancando a cartola da cabeça. – Rápido, façam alguma coisa!

Rabin, o feiticeiro, levitou pelo bar, estendendo as mãos em direção a Anthony, e uma bola de fogo do tamanho de uma laranja explodiu do nada, fazendo o vampiro cobrir o próprio rosto e correr para longe do corpo.

– Rápido, vamos acabar com isso! – Icabode gritou, e correu com Leon em direção ao mafioso empalado.

Gólgota subiu numa cadeira e começou a pular sobre as mesas e alcançou uma mesa em  frente aos dois. Ele abriu os braços e disse:

– O chefe ta em reunião agora, então é melhor vocês pararem por aí.

– Saia da frente, maldito! – Icabode gritou, avançando em sua direção.

Gólgota mexeu os dedos para ele, sorrindo. De repente, Icabode viu ratos saírem das costas do maníaco, e correrem por seus braços, pela mesa e pelo chão, vindo em sua direção. Ele parou de correr e recuou, surpreso. Eram centenas de ratos, e todos começaram a subir em seu corpo, dilacerando-o com seus dentinhos afiados.

Leon estava parado, vendo Icabode girar, se debatendo, como se estivesse coberto de algo invisível. Ele olhou para Gólgota, e o vampiro disse:

– Agora vamos acrescentar uma pitada de pavor! – Gólgota ergueu os braços de baixo para cima, e repentinamente, Icabode começou a gritar mais ainda, caindo ao chão.

Anthony Ritzo correra para o cantinho do bar, fugindo das bolas de fogo que Rabin arremessava em sua direção. Enquanto isso, Troche alcançava o corpo de Solomon e removia a estaca.

Do outro lado, Leon pegou uma cadeira e a jogou em Gólgota, derrubando-o da mesa. Icabode parou de se debater, mas ele ainda gritava, olhando ao redor com pavor.

– Acalme-se, Icabode – Leon o segurava pelos ombros. – Era apenas uma ilusão! Olhe pra mim, olhe pra mim!

Brad, o bartender, veio da cozinha, atirando com dois revólveres nos inimigos, fazendo Rabin sair voando às pressas. Gólgota esfregava a têmpora cortada pela cadeira, e também fugiu, mancando. Por fim, Solomon começou a se afastar com os olhos arregalados. Ele estava muito ferido e espantado. Troche o acompanhou enquanto saíam pela porta.

Leon olhou para Anthony e o viu acuado em um canto, abraçando o próprio corpo enquanto olhava para o fogo que se alastrava nas mesas ao redor. Ele olhou para baixo e viu Icabode tremendo em seus braços, balbuciando palavras de socorro, e virando os olhos para todas as direções, apavorado.

Brad pegou um balde com água e apagou o fogo, e Anthony finalmente saiu de seu canto, com os olhos vermelhos. Ele se aproximou dos vampiros, olhou o bar destruído, as cabeças de seus homens espalhadas pelo chão e a lastimável situação de Icabode. Ele colocou a mão no ombro de Leon, olhou para Brad e disse:

– O Conselho tem olhos em todos os seus pontos de interesse. Neste exato momento, eles devem estar notificando todos os membros de Nova York sobre nossa derrota, e jogando a culpa sobre nós.

Leon assentiu.

– Precisamos fugir imediatamente.

 

Algumas quadras longe dali, enquanto Troche dirigia o Wraith, com Gólgota ao seu lado, Solomon e Rabin iam conversando no banco de trás.

– Eu fiquei completamente paralisado e vulnerável – Solomon dizia, tocando no buraco de seu peito, conseguindo sentir o próprio coração com o dedo indicador. – Que sensação terrível! Eu fui um tolo, arrisquei tudo e quase fui destruído! Maldito coração! Tão útil em vida, tão desgraçado na não-vida. És o meu Tornozelo de Aquiles!

– Meu senhor – Rabin disse, fazendo um movimento com as mãos, e toda a poeira e sangue no corpo de Solomon evaporou do nada. – Eu faço parte de uma linhagem de feiticeiros. Uma linhagem muito antiga, você sabe disso. Por que não vamos para a minha casa, onde estão todos os meus livros arcanos? Talvez eu tenha algo que possa lhe interessar.

– O que quer dizer, mago?

– Aquiles foi mergulhado de cabeça pra baixo no rio Estige, ficando só com o tornozelo de fora, onde a deusa o segurava. A única parte que não foi protegida pelas águas do rio e, portanto, seu ponto fraco.

– E o que isso tem a ver comigo?

– Talvez eu possa fazer algo que nem os deuses conseguiram. Proteger o seu Tornozelo de Aquiles.

 

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Icabode St. John [10]

Nos capítulos anteriores: Após o infrutífero ataque à propriedade de Solomon Saks, Icabode foi separado de Sunday e Drake, sendo capturado pelo vampiro responsável por aquele setor do Brooklyn. O vampiro Anthony Ritzo o levou até o Conselho, onde estavam os cainitas governantes de Nova York. Icabode revelou que Solomon Saks pretendia criar um exército de vampiros, e em seguida, um dos membros do conselho, Ivanovitch, o levou para matarem o mafioso pessoalmente. Ocorre que ao chegarem lá, foram surpreendidos por Solomon, que já era um vampiro. Ele empalara a Ivanovitch e consumira sua alma, se tornando incrivelmente forte. Icabode foi resgatado por Leon, o prisioneiro de Saks, e ambos foram para o apartamento de Sunday, esperando que encontrassem o detetive desaparecido por lá, coisa que não aconteceu. 

 

Icabode abriu os olhos sem saber se era o dia seguinte. Ele não sonhara. Não se sentia descansado. Ligou o rádio ao lado da cama, e descobriu que se passara mais de doze horas desde que fechara os olhos. A sensação que tinha era de que apenas dera uma longa piscada. Como se seu corpo estivesse…. morto… esse tempo todo.

Seu estômago doía e, e suas mãos tremiam. A fome estava pior do que na noite passada. Ele precisava sair imediatamente para se alimentar, caso contrário, a besta tomaria conta. Olhou para baixo e viu que vestia apenas um par de calças rasgadas. Abriu o guarda roupa de Sunday, e escolheu uma jaqueta de couro, camiseta branca e calças jeans.

Enquanto se vestia, ouviu um barulho de porta vindo da sala. Ele aguçou o seu ouvido e descobriu que Leon conversava com uma mulher, não, eram duas.

Esse relógio é de ouro mesmo? – uma delas perguntou. – Se não for…

Eu não mentiria pra vocês, garotas – Leon prometeu. – E vocês sabem onde moro. Eu não daria um relógio falso a vocês. 

Icabode abriu a porta do quarto e viu o vampiro sentado no sofá, entre duas mulheres de roupas coloridas, com maquiagens fortes, plumas no pescoço e lantejoulas nos ombros. Leon vestia calças largas e uma bata branca.

– Olhe só, Matilda – uma delas disse, olhando para Icabode. – O amigo dele é realmente uma gracinha!

– Ele parece aquele ator que conhecemos na Broadway. Como era mesmo o nome?

– Dean Martin? Sim, a roupa pelo menos é igualzinha à da peça!

– Icabode, está com fome? – Leon perguntou. Em seu olhar, havia um alerta, como se pedisse para ele colaborar.

Icabode viu que Matilda tinha um relógio de ouro na mão. Provavelmente Leon havia encontrado nas coisas de Sunday. Aquilo era furto. Mas a fome não o deixava pensar muito sobre o caso. Ele precisava comer imediatamente, contando que não matassem as prostituas.

– Como vamos fazer isso? – Icabode perguntou, engolindo seco.

Antes que alguém respondesse, a porta de entrada tombou no carpete. Várias pessoas começaram a invadir a sala, todas encapuzadas, com espadas presas às cinturas. Depois, um homem magrelo, de chapéu coco, e pince-nez pendurado no nariz, adentrou o ambiente, olhando ao redor com nojo. Em seguida, uma dama com véu negro escondendo o rosto se pôs ao seu lado. Por último, uma criatura grotesca se enfiou no meio deles. Ela tinha dentes deformados, que atravessavam suas próprias bochechas.

Essa última, que Icabode conhecia como “Juíza”, olhou para as garotas no sofá e apontou seu dedo escamoso para elas.

– São cainitas ou mortais?

– São mortais, excelência – a dama de véu respondeu.

– Matem-nas – a Juíza disse, olhando para o lado.

Um dos homens encapuzados desembainhou a espada e avançou.

– O que é isso? Vocês sabem pra quem nós trabalhamos? – uma prostituta começou a gritar.

– Vocês não vão matar ninguém aqui! – Icabode se pôs entre eles, mas de repente, a dama de véu ergueu a mão em sua direção, e ele começou a flutuar, ficando preso no teto. – Me solte! Parem já com isso! Deixem as garotas em paz!

As prostitutas se agarravam em Leon que estava de olhos fechados, resignado. Elas gritavam ao aproximar do encapuzado. O homem enfiou a espada na barriga de uma e girou o punho vários vezes, perfurando vários órgãos internos. Depois ele foi até a outra e fez o mesmo. Icabode gritava sem conseguir se soltar do teto. Leon abraçou as duas mulheres, olhando para o encapuzado com ódio.

– Por que você não fez o serviço direito? Precisava dar uma morte lenta e cruel a elas? – ele as puxou para si e fechou os olhos.

Elas choravam com desespero. Leon fez suas presas surgirem e mordeu a Matilda, bebendo seu sangue até que ela desmaiasse. Depois, ele fez o mesmo com a outra que olhava para ele, como uma garotinha espantada.

A dama de véu pousou Icabode no sofá, e os encapuzados ao redor sacaram suas espadas, ameaçadoramente.

– Onde está Ivanovitch? – a Juíza perguntou a Icabode. – Ele não nos deu notícias desde ontem.

Ao ver que Icabode tentava controlar sua raiva, Leon interferiu.

– Ivanovitch está morto. Solomon Saks o empalou e consumiu sua alma.

– Mas que loucura está dizendo? – Fermín Pedralbes perguntou, exasperado. – Saks é um vampiro?

– Sim! – Icabode ficou de pé. – O seu amigo Ivanovitch foi um tolo! Ele estava todo confiante, partindo pra cima de tudo e de todos, como se fosse intocável! Mas Solomon nos fez de bobos, a mim e a vocês!

– Você disse que Solomon era mortal! – Fermín o lembrou. Os olhos estavam arregalados. – Isso tudo fazia parte do seu plano! Se livrar de Ivanovitch e fugir do julgamento do Conselho! Acha que iria nos enganar, não é? Mas você não contava com meus poderes telepáticos. Graças ao seu amigo negrinho, nosso prisioneiro, eu descobri onde era o seu refúgio! E agora, para onde irão fugir?

– Se você realmente tem poderes telepáticos – Icabode se aproximou dele. – Então entre na porra da minha cabeça e veja o que aconteceu de verdade! Caso contrário, pare de achar culpados pela sua derrota!

– Minha derrota? – Fermín olhou para a Juíza. – Vai permitir que ele fale assim com um membro do Conselho, excelência? Estripe-o, agora! Eu exijo!

– Não faça isso – a dama do véu negro disse. – Conforme o extraído do nosso prisioneiro, foram eles três quem fizeram com que Solomon se tornasse o que é. Eu sugiro que eles resolvam o problema. Assim que os membros cainitas de Nova York descobrirem o que aconteceu com Ivanovitch, eles procuração culpados. Se nós interferirmos agora, eles pensarão que poderíamos ter feito isso a qualquer momento. Mas se essa responsabilidade não for nossa, não há motivos para levarmos a culpa.

–  Isso – Fermín olhou para ela com admiração. – E também que culpem a Anthony Ritzo. De Green Point a Brooklyn Heights, todo aquele território é dele! Se ele tivesse nos avisado a tempo, isso não teria acontecido. Que eles culpem a Ritzo também! Aquele maldito permitiu que tudo acontecesse bem debaixo de seu nariz. E por sua causa, Ivanovitch está morto!

A dama de véu negro e Fermín olharam para a Juíza. Esta assentiu:

– Eu condeno os réus a uma ordália, cuja missão seja destruir Solomon Saks e cada vampiro ou testemunha mortal criada pelo mesmo. Caso os réus fracassem, sua pena é a morte final, assim como a morte do prisioneiro que vocês conhecem como Capitão Sangrento. E agora vamos até Ritzo. Sabem onde é o bar dele?

– Fica na Quarta com a rua Keap, em frente a um parque – Fermín disse, e se virou para Icabode. – Vocês precisarão se aliar. Ritzo tem muitas armas. O nome do bar é Portão do Inferno – ele se virou e saiu, junto com a Dama do Véu Negro e a Juíza.

O séquito do Conselho de Nova York deixou o apartamento tão subitamente quanto chegaram.

– O que é uma ordália? – Icabode perguntou, ainda exasperado com a visita.

– É uma prova judiciária para provar se alguém é culpado ou inocente. Caso o réu fracasse, ele é considerado culpado – Leon virou o rosto, como se ouvisse algo. – Rápido, precisamos sair daqui. Estou ouvindo sirenes. Certamente alguém ligou para a polícia depois dos gritos – ele olhou para as prostitutas. – Beba tudo o que conseguir. Depois vou levar os corpos pela janela para não acharem que Sunday fez isso.

Icabode se alimentou de Mtailda, plenamente consciente de que estava ingerindo sangue de uma pessoa morta. As tripas da mulher caíram em seu próprio colo, pelo buraco feito com a espada. O sangue ainda vertia pelo vestido e fazia uma poça sobre o vestido.

– Precisamos levar esse tapete sujo de sangue, sofá e os cadáveres para fora daqui – Leon apontou para a sacada. – Eu consigo fazê-los levitar, mas você terá que voar por conta própria. Você tem esse poder, Icabode, e precisa usá-lo agora! Não posso erguer tudo sozinho.

– Certo, leve-as. Eu darei um jeito – Icabode disse, pegando o relógio de Sunday de volta. Leon ergueu as mãos e fez o sofá sair do chão, seguido pelo tapete. Os cadáveres estavam deitados para não caírem. Com muito cuidado, Leon passou tudo pela varanda, e voou atrás das coisas.

Icabode se inclinou sobre o parapeito e viu as viaturas parando em frente ao prédio. Ele fechou os olhos e esperou que seus pés saíssem do chão, mas nada aconteceu. Ele ativou os sentidos aguçados, e ouviu os policiais subindo as escadas do prédio. Vamos, garoto, saia daí! Sunday disse em sua mente. Onde está você? Icabode perguntou, surpreso. Por que não está em casa?

Agora não é hora pra falarmos sobre isso! Sunday ripostou. Saia daí! E Icabode tentou mais uma vez. Ele sentiu uma pressão no centro de seu corpo. Em seguida, sentiu-se sendo puxado para cima. Oscilou sem sair do lugar por mais um tempo, quando ouviu os policiais adentrando o apartamento. Você precisa agir agora! Sunday gritou.

– Foda-se – Icabode não conseguira sair mais que dez centímetros do chão. Então subiu no parapeito e saltou. A queda era alta, e os dados foram rolados. Para sua infelicidade, ele não conseguiu voar. O chão vinha em sua direção quando a queda foi interrompida dois metros acima da avenida, só pra continuar em seguida.

Icabode caiu de peito no asfalto, e alguns carros buzinaram, desviando do caminho. Ele olhou ao redor e se enfiou no primeiro beco que viu. Não conseguira voar, mas amortecera a queda em pleno ar. Isso era um avanço. Parou o primeiro táxi que viu e mandou que fosse para o Brooklyn, na Quarta com a Keap.

Levou quinze minutos para chegar no local. O bar Portão do Inferno tinha janelas temperadas coloridas. Em frente, uma fila de motos ladeavam a calçada, a maioria, Harleys. Nada japonês ou alemão, obviamente. Ele deu o relógio de Sunday ao taxista incrédulo e entrou no bar.

O estabelecimento estava cheio de clientes, tomado por fumaça de cigarro, jukebox alta e luzes coloridas. No balcão, Leon conversava com um homem que Icabode reconhecia da noite anterior, musculoso, vestindo suspensórios e quepe. Era Anthony Ritzo. Eles trocaram olhar, e Ritzo indicou uma porta com a cabeça. Leon reparou que Icabode chegara, e os três foram em direção à porta. Ritzo olhou para um sujeito mal encarado e mandou que cuidasse do balcão.

A cozinha estava cheia de sacos e barris, com legumes, bebidas e cigarros. Um rato fugiu ao vê-los. Ritzo enrolou o tapete do chão, revelando um alçapão escondido. Ele o abriu e mandou que os dois descessem.

Icabode e Leon olharam ao redor, surpresos. O subsolo do Portão do Inferno era um armazém de armas. Ritzo começou abrir caixas e mostrar seus brinquedinhos.

– O Conselho saiu de seu esconderijo no Upper East Side e veio pessoalmente até o meu bar – ele disse, com deboche. – Acho que estão mesmo com medo do polonês.

– Se eles tivessem levado a sério o meu aviso, Solomon Saks poderia estar morto agora. Mas Ivanovitch agiu como se a ameaça não fosse real – Icabode disse, amargo.

– Quem diria que aquele filho da mãe fosse derrubado por um neófito? – Ritzo parou um momento, reflexivo. Depois ele olhou para os dois, ressentido. – Não sei como eles deixaram vocês vivos depois de tudo que fizeram.

– Eles precisam de um bode expiatório – Leon explicou. – Se você faz parte da sociedade, deveria conhecer o modus operandi do Conselho. Quando todos descobrirem que Ivanovitch morreu, a Juíza fará questão de dizer que a culpa é minha e de Icabode, e que tudo isso ocorreu no seu domínio, senhor Anthony.

– Sim, sim – Ritzo o interrompeu, irritado. – Eu sei como as coisas funcionam por aqui. E a culpa de tudo isso é de vocês! – ele fechou os punhos, inconformado.

– A culpa de tudo isso é de Saks! – Icabode o corrigiu. – E se não nos unirmos para impedi-lo, ele ficará mais forte a cada dia. Saks tem dinheiro, armas e capangas.

– Eu sei disso – Anthony apontou para as próprias armas. – O polonês e eu vendemos armas no mesmo território. Nossos homens já trocaram tiros algumas vezes. Mas isso acaba hoje!

– Hoje? – Leon perguntou. – Você quer que o ataquemos hoje? Mas não seria melhor gastarmos um tempo preparando um plano à prova de falhas? Não foi por causa desse impulso que Ivanovitch está morto?

– Eu concordo com ele, Leon – Icabode disse, pegando uma pistola de uma caixa. – O tempo é aliado de Solomon. Acho que sou o único que entendeu até agora que o mafioso é ardiloso e astuto. Ele deve estar articulando coisas maléficas neste exato momento, e quero derrubá-lo antes que continue.

– Mas nós nem sabemos onde ele está – Leon disse, receoso.

– Sabemos sim – Anthony respondeu, erguendo um cinto de granadas ao redor do ombro. – Desde o tiroteio de ontem, tenho homens vigiando a mansão do polonês.

– E quando partimos? – Icabode perguntou, examinando uma metralhadora Thompson.

– Agora – Ritzo tirou uma máscara de carranca da parede e colocou no próprio rosto. – Esse filho da puta vai morrer hoje.

 

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Icabode St. John [9]

Nos capítulos anteriores: Após a missão desastrosa de derrotar Solomon Saks, Icabode foi capturado pelos vampiros que governavam a cidade. Sem saber o paradeiro de Sunday e Drake, Icabode revela os planos do mafioso polonês, alertando os vampiros. Eles enviam Icabode com Ivanovitch, o vampiro mais forte do mundo, para matarem Solomon. Ocorre que os dois não sabiam que o mafioso já se transformara em vampiro e que se alimentara de Anatole, uma criatura antiga. Com as defesas baixas, Ivanovitch foi empalado e consumido por Solomon, que era mais forte do que ele esperava.

 

Icabode assistia a cena, assombrado. Solomon Saks matara Ivanovitch, a Besta do Oriente, e agora possuía um poder terrível. O próximo a ser morto e consumido seria o próprio Icabode, que estava ferido, caído no chão.

Fuja, garoto, fuja! Sunday disse em sua mente.

– Onde você está? – Icabode sussurrou, ainda sem saber como o detetive se comunicava com ele.

De repente, uma figura se materializou em sua frente. Um homem, cobrindo os próprios lábios com o dedo, pedindo silêncio. Ele tinha barba e cabelos sedosos, compridos. Suas roupas eram trapos cheios de sangue. Icabode o reconheceu imediatamente. Era o vampiro que ele libertara da fundição em Green Point. Ele colocou a mão no ombro de Icabode e olhou para Solomon. O mafioso gargalhava, diante do carro que acabara de dividir ao meio. Em seguida, ele olhou para onde Icabode estava e seu olhar ficou perdido. Girou sobre os calcanhares, procurando algo.

– Onde ele está? – ficou repetindo. – Onde está aquele maldito? – gritou.

Você está invisível, garoto, Sunday explicou. Não faça barulho.

Furtivamente, Icabode saiu com o vampiro pelo buraco da sala, e os dois foram para o quintal.

– Você sabe voar, não sabe? – o outro sussurrou.

– Ouvi dizer que estava voando por aí, mas não lembro de nada.

– Se pendure em meus ombros – o vampiro disse com desgosto.

Icabode se agarrou às costas dele, e o chão começou a se afastar de seus pés. Os dois sobrevoavam a quadra, indo para longe da mansão.

– Depois que você fugiu da fundição – o vampiro disse -, eu não vi para onde foi. Fiquei te procurando em todos os cantos do Brooklyn. Você estava irracional, faminto. Eu temi que você saísse por aí fazendo besteira, ou que ao amanhecer, o sol te fulminasse.

– E por que você está tão preocupado comigo? 

– Eu te transformei em um cainita – o outro explicou. – É o meu papel garantir que você sobreviva e que não faça nenhuma besteira… pelo menos até ter autonomia. Meu nome é Leon, e o seu?

– Icabode – ele respondeu, olhando para o pescoço de Leon. Debaixo daquela pele, havia sangue. E Icabode estava com muita fome. – Mas como você me achou?

– Eu consigo ouvir coisas a quilômetros de distância. Posso ouvir bolas de algodão caindo no chão, se estiver muito perto. Quando o tiroteio começou, imaginei que tivesse algo a ver com você. Felizmente, eu estava certo. E agora, pra onde quer que te leve?

Montauk, pensou Icabode, mas não podia ir pra casa, sabendo que Sunday e Capitão Sangrento estavam em algum lugar, em perigo. Então ele disse para leva-lo até à casa do detetive. Só depois lembrou que foi Sunday quem entregou o esconderijo de Leon a Solomon Saks.

– Leon – Icabode disse, enquanto atravessavam o rio. – Eu sei que você conhece o detetive Sunday. Ele estava comigo na fundição. Ele me disse que você era seu informante.

– E onde ele está? – Leon virou o rosto, surpreso. – Ele foi me resgatar?… – ele virou o rosto para frente novamente. – Acabo de lembrar que você foi até lá para me matar. Sunday descobriu que eu fui preso, e decidiu me matar antes que eu causasse algum problema maior.

– Na verdade foi Sunday quem o entregou a Saks – Icabode corrigiu, temendo ser solto vários metros acima do chão. Ele viu que o vampiro virou o rosto novamente, sem dizer nada. – Eu pedi pra ele me entregar o endereço de um vampiro. Ele relutou, mas eu o obriguei. Não foi pessoal.

Leon assentiu.

– Ele fez o certo. Eu mereço mesmo morrer. Todos nós merecemos.

– Mas você é tão diferente dos outros – Icabode disse, perplexo. – Como pode pensar dessa forma?

– Isso é questão de tempo… você verá quando a fome começar a tomar controle do seu… – ele se lembrou de algo. – Você está racional agora. Como fez isso? Como se alimentou?

– Um cachorro… – Icabode se lembrou de quando Anthony Ritzo o empalou na calçada. Tinha o corpo de um cachorro ao seu lado. – Eu acho.

– Você deve estar faminto. Depois falamos sobre Sunday. Precisamos alimentá-lo.

– Esquece. Não vou beber sangue.

– Você vai sim – Leon retrucou. – Se você não beber agora, a besta que há dentro de você, irá lutar contra a fome. Ela tomará o controle de seu corpo, e sua mente ficará inconsciente. Você matará a primeira coisa que estiver em sua frente pra se alimentar. Não subestime a sua fome, Icabode. Eu já subestimei, e as coisas não acabaram muito bem.

– Quais opções eu tenho para não condenar a minha alma? – Icabode perguntou, inconformado.

– Tarde demais, meu amigo – Leon disse, resignado. – Por que acha que não me matei ainda? Além de ser vampiro, ser suicida? O meu lugar está garantido no inferno.

– Você acha que todos eles se preocupam com isso? Os outros vampiros?

– Provavelmente sim. Mas chega um momento onde todos aceitam a sua natureza. Ou você abraça a besta para “viver” nesta não-vida, ou você luta contra ela, e acaba sendo destruído e mandado para o inferno.

– Pelo visto você ainda não fez a sua escolha – Icabode disse, tanto para ele quanto para si próprio, percebendo que sua fome aumentava.

– Escolha? – Leon franziu o cenho. – Não existe tal coisa… olhe só, uma construção embargada. Achamos o nosso restaurante.

– Restaurante? – Icabode olhou para o prédio com mais de dez andares, incompleto e antigo.

– Indigentes, meu amigo, indigentes.

– Tudo bem, mas não precisamos matar ninguém.

Os dois pousaram no terraço cheio de musgo, cocô de pombo, garrafas e latas. O rosto de Leon parecia com a imagem de um Jesus católico, mas ao encarar Icabode, suas presas tornaram o sagrado em profano. Ele tirou sua camisa suja de sangue e fez o sinal para Icabode fazer o mesmo. Ele não queria assustar as presas antes da hora.

– Você tem os mesmos poderes que eu – Leon informou. – Você pode voar, pode ficar invisível e pode ter os sentidos aguçados. Estes últimos não ficam sempre funcionando. Você precisa prestar atenção. Nós entraremos em uma área escura, e você precisa abrir seus olhos malditos.

Icabode olhou ao redor, e piscou várias vezes, tentando ativar o poder. O vento deslizava frio em seu corpo igualmente gélido. Manhattan era como uma cabeça, e os prédios eram os fios de cabelo. Havia milhares deles ao redor, todos pontilhados com janelas acesas, decorados com propagandas da Coca, com marca de cigarro, atrações da Broadway, marcas de bebida, um zepelim da Kodak voando acima de suas cabeças.

Pela janela de um quarto, Icabode viu um asiático colocar uma camisa vermelha. Na mesa em sua frente havia dois incensos acesos, ladeando a foto de um general de seu país. No canto superior da foto, havia o símbolo comunista.

-Uau! – Icabode piscou, percebendo que o quarto estava muito longe dali, e que vira detalhes tão pequenos que nem um binóculo conseguiria revelar. Ele se virou para Leon. – Estou pronto.

Os dois desceram o primeiro lance de escadas, e descobriram um piso abandonado, sem paredes e cheio de lixo. Eles continuaram descendo até os ouvidos aguçados de Icabode ouvirem os primeiros sons. Era um ronco.

 

George discutira com seus pais extremamente religiosos quando ainda era adolescente. Ele fugiu de sua casa no Tennessee e foi viver no litoral. Depois de quinze anos viajando, decidiu ficar em Nova York, onde ficou por mais duas décadas. Os últimos cinco anos de sua vida foram os piores. Ficara desempregado, sem teto e sem dinheiro. Dormindo em vários lugares diferentes. Aquele prédio estava sendo seu lar nos últimos meses. Os outros indigentes tinham jogos completos de panela, isqueiro, garrafas de alambiques e cigarros. Eles se ajudavam sempre que podiam.

Era madrugada e ele dormia profundamente, quando de repente, algo o despertou. Dois homens estavam em pé, encarando-o. Eles não vestiam camisas. Um deles parecia Jesus, e o outro não tinha alguns dedos da mão.

– Não acorde os outros – Jesus dissera. – Eu tenho uma proposta pra você.

– Eu não sou nenhuma bicha – George respondeu calmamente, sem saber se estava falando com um anjo ou com um nóia.

– Nem nós – o jovem respondera com uma careta.

– Deixe-nos beber um pouco de seu sangue, e pagaremos bem – Jesus propusera. – O que acha?

– Isso não é errado? – George perguntou, completamente confuso. Talvez estivesse sonhando.

– Nós poderíamos pegar à força, se quiséssemos – Jesus explicou de maneira ponderada. – Mas nós queremos pagar por isso.

– Nesse caso – George olhou ao redor e viu que estava sozinho. Era um péssimo dia para ficar sozinho no sexto andar. Aquilo não era Jesus, porra nenhuma. Aquilo era um dos demônios que ele ouvia falar nos becos do submundo. – Prometem que não vão me matar… ou me transformar em um de vocês?

– Nós prometemos – o garoto assegurou, incomodado com a pergunta.

– Como querem fazer isso? – George perguntou, ainda deitado.

O que parecia com Jesus ficou de cócoras, e o garoto o imitou. Em seguida, cada um pegou um de seus braços e os levou até suas bocas. Os lábios eram frios e secos. O hálito parecia um sopro invernal. George esperou mordidas doloridas e profundas, mas tudo o que sentiu foi uma leve picada de mosquito, seguida por uma coceira. Seu corpo inteiro foi tomado por aquela sensação, e havia uma certa dormência. Ele sentiu o sangue correr pela virilha, e logo seu membro ficou ereto. A sensação era realmente boa. Ele se sentiu fraco e tonto. Piscou lentamente, e de repente, escuridão.

 

– Ele está bem? – Icabode perguntou, afastando o braço de sua boca com muita relutância. Ele queria continuar bebendo o sangue do mendigo, mas agora estava assustado. – Ele desmaiou?

– Sim, ele está vivo – Leon o acalmou. – Se você prestar atenção, pode ouvir as batidas de seu coração. Mas por hora, a besta não tomará conta de nosso corpo. Podemos procurar mais um indigente.

– Não! – Icabode pediu. – Não podemos simplesmente ir pra casa? Amanhã a gente continua – ele olhava para o homem desmaiado, pálido. O gosto do sangue em sua boca era doce e quente, como um resquício da vida que ele nunca mais teria.

– Por mim, tudo bem – Leon deu de ombros. – Eu também relutei bastante quanto à beber sangue. Mas hoje, decidi que é melhor beber um pouco e não matar ninguém, do que não beber nada, e me tornar uma fera assassina. É melhor você superar essa fase logo.

– Eu irei – Icabode prometeu. – Só não hoje, por favor.

– Claro. Amanhã continuaremos – Leon bateu em seu ombro, com um sorriso. – Antes de partir, precisamos fazer mais uma coisa – ele ergueu o braço do mendigo e lambeu o local da mordida. Os buracos sumiram imediatamente. – Faça isso sempre que se alimentar pra cauterizar a ferida.

Icabode pegou o outro braço e fez o mesmo. No próximo instante não havia marcas de mordidas no mendigo.

– Você disse que iria pagar pelo sangue – Icabode o lembrou, puxando os bolsos vazios da calça.

– Eu menti – Leon respondeu, se aproximando da borda do andar. – Nós dois precisávamos do sangue com urgência, e eu não tenho um tostão furado comigo. Você vai ter que fazer coisas assim a partir de agora. A sobrevivência é uma arte – ele olhou para o céu. –  O apartamento de Sunday é aqui perto. Devemos ir logo. O sol está prestes a nascer.

– Espero que ele esteja lá – Icabode se pendurou novamente no vampiro, e os dois saíram do prédio. – Assim que o encontrarmos, podemos ir atrás do Capitão Sangrento.

– De quem?

– Era o nosso terceiro mosqueteiro – Icabode explicou. – Uns vampiros o capturaram.

– Quem? – Leon perguntou, sobrevoando alguns prédios.

– Uns tais de Fermín, Anthony Ritzo, uma juíza, e Ivanovitch. Este último foi morto por Sacks.

– Sacks matou a Besta do Oriente? – Leon quase gritou. – Se você conhece o Conselho de Nova York, então já está mais envolvido à não-vida do que eu esperava.

Os dois pousaram na sacada do apartamento de Sunday, e adentraram o imóvel, mas o detetive não estava lá. Em seguida, eles isolaram o local contra a luz solar, e apagaram.

 

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