Icabode St. John [8]

Nos capítulos anteriores: O paradeiro de Drake Sobogo era desconhecido desde que Anthony Ritzo o capturara. Sunday também não era visto desde a derrota na fundição da máfia. Icabode estava sendo julgado pelo Conselho de Nova York, onde os vampiros burocratas diziam ter toda a autoridade. Após ele revelar os planos de Solomon Saks de se tornar vampiro para governar a cidade, o Conselho decidiu caçar o mafioso. Enviaram Icabode e Ivanovitch, o vampiro mais forte do mundo para se livrarem de Saks. Ao chegarem na mansão, Ivanovitch matou todos os seguranças e avançou sobre o mafioso, mas Saks os enganara, empalara o vampiro e atirou em Icabode. O mafioso revelou que já havia sido transformado, e em seguida consumiu a alma de Ivanovitch, e ficou super poderoso. Antes que matasse Icabode, descobriu que o garoto não estava mais lá. 

 

Alguns dias atrás, Solomon Saks fora chamado por seus homens até um de seus galpões, pois algo acontecera. Havia um conversível batido no interior do depósito, com o motorista morto. E no chão, um cadáver estava coberto por um lençol. O capanga ao lado puxou o lençol e Solomon viu que o morto estava carbonizado, e tinha uma estaca no coração.

– O que está acontecendo aqui? – Solomon perguntou.

– Senhor, este aqui é o Rabino – um capanga apresentou um homem de roupas informais, cheio de tatuagem e colares.

– Eu não sou exatamente um judeu praticante – Solomon respondeu, olhando para o novato, sem paciência.

– Eu não sou exatamente um rabino – o outro respondeu, mostrando os colares com pingentes de várias crenças. – Estou mais para feiticeiro. O Gólgota aqui me chamou para explicar a situação – ele apontou para um dos capangas.

– Por que você trouxe um forasteiro para o meu galpão, Gólgota? – Solomon olhou para o capanga de cabelos e barbas encaracolados.

– Acredite em mim, chefe. Você precisa de alguém como o Rabino para explicar essa loucura – o capanga sorria de forma demente. Ele foi até o cadáver carbonizado e arrancou a estaca de seu coração.

O corpo começou a se mover, estendendo os braços para Gólgota, enquanto este sorria, dando tapas nas mãos do defunto. Os caninos que saíam da boca do cadáver eram compridos, e seus olhos, vermelhos. Rabino ficou de cócoras ao lado de Anatole, e ficou passando a mão diante de seu rosto, provocativo.

– Senhor Saks, isso é um vampiro. E pelo grau de queimadura, ele deveria estar morto. Acho que temos uma criatura antiga aqui. Se você quiser leva-lo para um lugar protegido, podemos estuda-lo. Seu sangue tem propriedades muito especiais para o organismo humano.

– Quem fez isso com ele? – Solomon olhava com espanto para Anatole.

– É um garoto, Icabode – Gólgota respondeu, limpando a baba do canto da boca. – Ele está na enfermaria. Ele viu nossas armas e tudo mais, quer que demos um fim nele? – ele passou o indicador pelo pescoço.

– Quem quer que seja – Rabino pegou a estaca manchada com o sangue do coração de Anatole. – Ele sabia o que estava fazendo. Se eu fosse você, faria umas perguntas antes de se livrar dele.

– Você consegue mesmo estuda-lo? – Solomon perguntou para Rabino. – Será que ele tem escapatória?

Rabino sorriu pra ele, ansioso.

 

Nos dias seguintes, Solomon acompanhou os estudos de Rabino acerca do vampiro. Anatole recuperou a consciência e se regenerou plenamente. O feiticeiro garantiu que ele estivesse o tempo inteiro amarrado e cercado por cruzes. Solomon assistia tudo com fascínio. Em sua frente estava o segredo para a imortalidade.

Somente depois ele foi conhecer Icabode. O garoto convidara Sunday, o expert em vampiros, e aparentemente eles sabiam do paradeiro de outras criaturas como aquelas. Eles se uniram e foram atrás do esconderijo de um vampiro. Solomon o capturou e dispensou a Icabode e Sunday. Agora ele tinha dois vampiros cativos, e cada um deles tinha habilidades sobrenaturais diferentes.

Rabino explicou que assim que Solomon virasse um deles, ele poderia absorver os poderes dos vampiros cujas almas ele consumisse. O processo parecia ser simples. Bastava ingerir completamente o sangue do outro vampiro, que a alma viria junto, assim como seus poderes.

Não era seguro manter os dois prisioneiros no mesmo lugar, então Solomon deixou Anatole em seu bunker subterrâneo, e Leon na fundição de Green Point, ambos cercados por crucifixos, pois aparentemente a fé cristã tinha bastante poder sobre eles.

Acompanhado de Rabino e Gólgota, Solomon decidiu se transformar. Eles cortaram o seu pulso e o penduraram de cabeça para baixo para deixa-lo exangue. Depois tiraram uma gota de sangue do vampiro de Green Point e a pingaram em sua língua. Quando Solomon acordou, ele estava preso no banheiro, cercado de galinhas mortas que foram usadas para saciar sua primeira fome.

Rabino e Gólgota ficaram maravilhados e pediram para também serem transformados, mas Solomon disse para esperarem. Depois, ele foi até o bunker e mandou colocarem quadros com imagens de cruz no meio do cômodo, todos virados para Anatole. Solomon ficava atrás desses quadros, em segurança.

– Por que você não pediu para eu transforma-lo? – Anatole perguntou, prestativo. – Eu poderia fazer isso pra você. Eu tenho séculos de idade. Minha força é muito maior do que qualquer vampiro de Nova York.

– Do que você está falando? – Solomon olhou para ele com desprezo. – Acha que eu me tornaria cria de um negro? Você deve estar louco!

– Então me dê outra tarefa – Anatole pediu, engolindo o orgulho. – Faço qualquer coisa em troca de minha liberdade.

– Liberdade? – Solomon sorriu com deboche. – Você é a minha melhor carta na manga. Por que eu deixaria você ir?

– Diga-me, se eu tirasse esses quadros agora – Solomon disse, tocando na parte de trás da parede de cruzes. – Sua força voltaria ao normal, não voltaria? Quão forte você é?

– Muito – Anatole assegurou. – E eu poderia ensiná-lo a ficar assim.

– Você conseguiria quebrar uma parede com um soco?

– Facilmente – Anatole sorriu pra ele. – Solte-me e te mostro como fazer.

– Ensinar pra quê, se posso apenas consumir sua alma?

Anatole arregalou os olhos.

– Eu ficaria incrivelmente forte, não é? – Solomon perguntou, fechando os punhos, pensativo.

 

Não se passaram dois dias depois dessa conversa quando Solomon recebeu a ligação de que estavam invadindo a fundição. Era Icabode, Sunday e um homem negro. Solomon mandou que Troche protegesse ao vampiro. Poucos minutos depois, o Judeu de Ferro ligou, avisando que Icabode era um vampiro, e que fugira com o negro. E o prisioneiro havia fugido. Irritado, Solomon mandou que Troche voltasse à mansão imediatamente.

– Eles virão até mim – disse ele, e mobilizou os guardas da mansão para ficarem em alerta. Depois, foi até o bunker.

– Parece que sua hora chegou – declarou a Anatole, atrás dos quadros. – Eles virão me matar.

– Então me solte! – o vampiro pediu. – Eu posso ajudá-lo!

– Você vai me ajudar, sim. Mas não irei te soltar.

– Você precisa de aliados, Saks! Sozinho, você nunca irá vencer o Conselho de Nova York.

– Você está certo. Eu já estou em negociação com alguns aliados. Mas você não está entre eles. Como já disse, tu és minha carta na manga.

O barulho de tiros veio pela portinhola do bunker. Solomon fez um sinal para que seus capangas seguissem com o plano. Alguns deles foram até Anatole com estacas nas mãos.

– Eu posso ser muito útil! Sei de tantas coisas que você não iria acreditar.

– Eu sei que você sabe – Solomon respondeu com as mãos para trás. – E eu gostaria muito de ouvir sobre elas, mas infelizmente não temos tempo. Terei que usá-lo como meu último recurso.

Anatole chorou quando os capangas o empalaram direto no coração. Em seguida, eles derrubaram a parede de quadros, liberando o caminho para Solomon. Ele se aproximou e bebeu todo o sangue do vampiro, sugando até sua alma, enquanto os capangas subiam para enfrentar os invasores. Depois, o corpo de Anatole se desintegrou em um montículo de cinzas.

Solomon sentiu as veias de seu corpo pulsarem, e seus músculos bombearem. Ele sentia o poder percorrer o seu corpo, mais ainda do que quando sentira ao despertar como vampiro pela primeira vez. Anatole era poderoso, e agora seu sangue se misturara ao corpo do polonês. Ele tocava o próprio rosto, maravilhado. Controlou-se para não sair quebrando tudo ao redor. A tentação de explorar seu novo poder era grande, mas ele precisava lidar com os invasores.

– Você terá tempo de sobra para testar sua nova força – disse para si mesmo. Então pegou uma pistola e uma estaca e os guardou em seu roupão.

A portinhola do bunker dava para dentro de uma sala da mansão. Ele subiu as escadas para o segundo andar e encontrou com Gólgota, Rabino e outro capanga.

– Chegou a vez de vocês se tornarem imortais – Solomon declarou. – Façam os invasores pensar que nossa defesa é fraca. Deixe-os baixarem a guarda. Quando nos vermos novamente, vocês serão divindades.

Rabino assentiu, e Gólgota riu, ansioso. O outro capanga sentia apenas medo, mas os três foram em direção aos invasores. Solomon aguardou e ouviu o último tiroteio. Seus homens estavam todos mortos. Agora é a minha vez de agir, pensou, surgindo na galeria de sua sala de estar. Icabode e um vampiro corpulento estavam no térreo, esperando-o. Ele fez questão de descer, repassando o plano em sua mente.

Ele iria sacar sua pistola para trazer a atenção dos dois adversários pra ela, enquanto com a mão esquerda, iria enfiar a estaca no peito do grandão. Assim que chegou a hora, ele sentiu o sangue de seu corpo inteiro se mover com força para o braço esquerdo. Suas pernas ficaram bambas e ele ficou tonto. Sentiu os lábios secarem, e usou a maior parte do sangue para fazer um simples movimento. Se aquilo desse errado, ele seria morto, sem dúvida.

Sacou a pistola, e como esperava, o vampiro se jogou contra ela, erguendo-a para cima. Solomon puxou a estaca do roupão e a enfiou no peito do outro. No início, houve grande resistência. Ele achou que iria falhar, mas o sangue que ele gastara para aquela ação, mais a força sobrenatural de Anatole fizeram a diferença. Seus bíceps ficaram cheios de veias, e cinco vezes maiores. Seus dedos seguraram firmes a estaca, e ela penetrou a pele pétrea do vampiro. Os olhos de Ivanovitch ficaram molhados, e a ponta de madeira atravessou seu coração.

Eu estou fraco e posso cair a qualquer momento, e Icabode irá me destruir, Solomon pensou, deixando o vampiro paralisado em sua frente. Ele puxou a pistola, deu um passo para o lado e atirou várias vezes contra o garoto. Icabode caiu no chão, terrivelmente ferido.

O plano de solomon funcionara, e ele tinha mais duas fontes de vitalidade vampírica para consumir. Icabode e o vampiro corpulento. Com eles, ele teria ingerido a alma de três vampiros, e isso já lhe daria a força necessária para enfrentar a maioria dos cainitas de Nova York.

Para não perder tempo, Solomon mordeu o pescoço de Ivanovitch e bebeu todo o sangue, até sentir sua alma adentrar seu corpo. No fim, o grandalhão parecia uma grande ameixa com braços e pernas.

Em seguida, Solomon se sentiu a força e o poder correrem de volta em seus músculos, e ele sabia que era invencível. Foi até o seu carro que por algum motivo estava no meio da sala de estar, e o partiu em dois. Estou terrivelmente forte! Ele queria gargalhar, e estava ansioso para consumir a alma de Icabode também. Aquela sensação era boa, e ele estava ficando viciado nisso. Mas ao olhar para o lado, o garoto havia sumido.

Procurou desesperadamente por ele, mas nunca o achou. Troche chegou logo depois, e Solomon disse para ajuda-lo a levar os corpos para o bunker.

– O sol vai nascer daqui a pouco – Solomon disse ao Judeu de Ferro depois de colocarem o último corpo no bunker.  – E a polícia virá antes disso. Você precisa dizer a eles que estou em uma viagem, incomunicável. Reúna alguns homens e diga que eles trocaram tiros com bandidinhos que tentaram assaltar a mansão. Diga que os delinquentes fugiram assustados – ele girou a mão, como se não tivesse importância.

– E o carro na sua sala de estar? – Troche perguntou, olhando para o buraco na parede. – O que devo dizer?

– Se você quiser ser meu braço direito, terá que ser criativo e independente – Solomon rosnou para ele. – Se vire! E amanhã, ao anoitecer, leve comida ao bunker.

Solomon desceu a escada do bunker e fechou a portinhola. Havia mais de quinze cadáveres de seus capangas no centro. Ele sugou o sangue de todos eles, deixando-os completamente secos. Em seguida, fez um corte no braço e pingou uma gota na boca de cada um. Não tinha tempo de pegar animais para que eles se alimentassem ao acordar, e provavelmente a loucura da fome os fariam atacar uns aos outros.

– Que a lei do mais forte me dê os melhores – Solomon disse, se trancando em um quarto de metal.

No início da noite seguinte, ele abriu a porta e olhou ao redor. Havia tripas e pedaços humanos em todas as direções. A batalha fora sangrenta, e apenas dois sobreviveram. Rabino e Gólgota se viraram para ele, instintivamente. Ao verem seu mestre, ambos curvaram a cabeça em submissão. Seus olhos ainda estavam levemente vermelhos.

A portinhola abriu e Troche desceu. Solomon olhou para os três, todos caminhando sobre restos mortais, e disse:

– E assim começa a nova ordem de Nova York. Eles serão meus súditos, e eu serei seu rei. E vocês, meus caros – Solomon olhou para os três, mostrando um sorriso -, serão os príncipes desta cidade.

 

Leia  todos os  capítulos de Icabode St. John clicando aqui. Ou então encontre mais livros do autor clicando aqui.

Icabode St. John [7]

Nos capítulos anteriores: Drake Sobogo era o único sobrevivente dos três que invadiram o prédio da máfia, para matar o vampiro prisioneiro. Enquanto Drake tentava sobreviver, Troche, o judeu com dentes de ferro o perseguia. No último instante, Icabode surgiu, com olhos vermelhos e presas na boca. O vampiro cativo o transformara para que não morresse completamente. Icabode se agarrou em Drake e os dois voaram para longe do prédio, mas eles lutavam sobre as ruas do Brooklyn, pois naquele momento eram caça e caçador. Icabode estava faminto e irracional. Um vampiro misterioso surgiu do nada e capturou a ambos. Quando Icabode recuperou a consciência, se viu em um julgamento vitoriano, cercado de vampiros.

 

Não faça isso, a voz de Sunday viera em sua mente. Icabode não se lembrava de nada sobre o inferno, mas vira com os próprios olhos o detetive se jogar pela janela, rumo à morte. Como ele estava ouvindo sua voz?

Na sala, havia cerca de dez vampiros, alguns escondidos nas sombras. Mas mesmo assim, Icabode se levantara em desafio, declarando-se um caçador de vampiros. Era em horas assim que seus valores eram testados. Morrer como um herói, ou se curvar ao mal?

Ivanovitch socou a mesa, seguido por uma gargalhada. Ele era imenso, barbudo e cabeludo. Seu dedo era mais grosso que uma linguiça, e ele o apontou para Icabode.

– Esse neófito tem colhões! Ele vai morrer, eu sei, mas ganhou meu respeito!

– Não se eu matar a todos vocês primeiro – Icabode disse com pouca convicção. Não fazia ideia de como sair daquela situação.

– Matar a todos nós? – Ivanovitch cruzou os dedos das mãos diante do rosto, curioso. – E como você faria isso?

Icabode ficou em silêncio, sem saber a resposta. De repente, uma ventania fez as cortinas esvoaçarem, e Ivanovitch aparecera um palmo em sua frente.

– Você certamente nunca ouvira falar sobre Ivanovitch, a Besta do Oriente – o vampiro disse, analisando a feição de Icabode. – Se tivesse ouvido falar de mim, saberia que sou o vampiro mais forte do mundo.

– Supostamente – Fermín o corrigiu. – Você é apenas o mais forte dos vampiros conhecidos. Obviamente existem centenas de outros que o venceriam, mas não são tão exibidos.

– Que eles fiquem com o título de “vampiros desconhecidos mais fortes” – Ivanovitch respondeu, olhando sobre o ombro. – Eu me contento com o título que importa de verdade.

– Antes de me tornar essa aberração – Icabode olhou para as próprias mãos -, quando ainda era um mero mortal, eu matei um de vocês. Só não matei o segundo por misericórdia. Agora que tenho o auxílio de forças sobrenaturais, sou capaz de muito mais.

– Diga-me, você é capaz de fazer isso? – Ivanovitch bateu palmas, e um estampido ressoou pela sala, agudo, com uma lufada forte que fez Icabode cambalear. O vampiro riu. – Eu lhe derrubaria com um estalar de dedos, literalmente – ele ergueu a mão em posição de um estalo. – Dependendo da força que eu usar, posso estourar seus tímpanos – ele encostou os dedos na testa de Icabode. – E se eu fizer isso bem aqui, esmago sua cabeça só com o coice do meu polegar.

A voz da Besta do Oriente era ameaçadora, e Icabode temeu. Sabia que não tinha chance alguma contra ele. Talvez haja, pensou, lembrando-se do crucifixo em seu peito. Suas mãos puxaram a corrente e ele a ergueu. Ivanovitch baixou os olhos para o pingente. Em seguida ele o arrancou do pescoço de Icaobode e o analisou de perto. Então, o jogou boca adentro, e o mastigou lentamente.

– Como você… – Icabode gaguejou, espantado com a cena.

– Você é um de nós agora – Ivanovitch disse, cuspindo os pedaços de metal no chão. – Sinto a sua fé como um aroma distante levado pelo temporal.

– Pare de brincar com a comida, senhor Ivanovitch – disse a juíza, uma criatura de formas animalescas, pontudas e grotescas. – Vamos aos votos?

– Claro, vossa excelência – respondeu o vampiro, voltando para o seu lugar.

– Antes de votarmos – Fermín disse, erguendo um dedo. – Gostaria de voltar a uma afirmação do acusado. Você disse que o mafioso Solomon Saks mantém um vampiro preso. Por quê?

– Ele pretende criar um exército – Icabode respondeu prontamente. – Saks pretende se tornar um vampiro, assim como seus soldados, com o propósito de tomar o controle da cidade, tanto do mundo mortal quanto dos vampiros.

– Ele está mentindo – Ivanovitch disse, incerto.

– Não – pela primeira vez, a senhora de preto, de rosto coberto por um véu, falou. – Ele diz a verdade. Senhor Ritzo, Solomon Saks vive em seu distrito, correto?

– Sim – Anthony Ritzo respondeu, segurando os suspensórios. – Ele é o empresário mais rico do Brooklyn, e um dos mais poderosos de Nova York.

– Então ele tem esse poder de nos incomodar? – Fermín perguntou.

– Se todos os homens que trabalham pra ele, se tornarem cainitas, sim, com certeza – Ritzo respondeu, preocupado.

– Eu resolvo isso – Ivanovitch deu de ombros. – Temos algumas horas antes do amanhecer. Eu dou um pulinho na casa desse cara e arranco seu coração, assim – ele fez o sinal com o polegar e indicador puxando alguma coisa.

– Vossa Excelência? – Fermín olhou para a vampira no canto da sala. – Eu não tenho nenhuma objeção.

– Muito menos eu – a senhora de preto acrescentou.

– Que seja – a Juíza respondeu, olhando a Ivanovitch. – Faça isso. E leve o neófito com você. Faça-o dizer tudo que sabe, inclusive o paradeiro desse vampiro que é refém de Saks, e traga-o junto. Depois votaremos sobre o futuro dos dois.

– Entendido, chefa – Ivanovitch foi até Icabode, segurando-o pela mão e o puxando em direção à sacada.

– Nós dois não conseguiremos fazer isso sozinho! – Icabode relutou. – Eu já tentei e foi um desastre! Ele tem um exército, mais o Troche, um cara de metal…

– Você não confia em mim, confia? – Ivanovitch perguntou, e subiu no parapeito da sacada. – Senhor Ritzo, endereço?

– Brooklyn Heigths, na Furman com Old Fulton. A mansão fica à beira do rio, colada à Brooklyn Bridge.

– Do lado do carrossel?

– Do outro.

– Saquei – Ivanovitch disse antes de saltar.

Icabode foi puxado de repente, centenas de metros acima do asfalto. Os dois aterrissaram no terraço do prédio à frente. Em seguida, Ivanovitch pulou novamente, e os dois foram em direção a outro prédio mais baixo. Como se estivessem em um Grand Canyon de concreto, eles saltavam sobre os abismos colossais de Manhattan, de prédio em prédio. Icabode era levado sob a força bruta da Besta do Oriente. Isso continuou até que chegaram ao chão.

– Vou te ensinar a fazer as coisas na surdina – Na velocidade de um raio, Ivanovitch começou a correr, passando por becos e túneis, sempre por caminhos sem luz e sem testemunhas.

De repente, Icabode percebeu que eles corriam sobre o rio, debaixo de uma ponte monumental, com cabos quilométricos e arcadas gigantescas. Era a Ponte do Brooklyn.

 

Ao chegar do outro lado do rio, Ivanovitch saltou pela última vez, levando os dois a caírem em uma propriedade arborizada.

– Esse é um belo quintal – disse o vampiro olhando ao redor.

No centro, havia uma mansão, e outras casinhas menores ao redor. Poloneses armados vigiavam todos os cantos da propriedade. Ao lado, jazia um carro elegante. Icabode supôs que Solomon Saks devia estar em casa.

– Acho que estamos no lugar certo – Ivanovitch disse, começando a andar em direção à mansão.

Os primeiros seguranças os avistaram, e começaram a gritar, erguendo suas armas. Ivanovitch se colocou na frente de Icabode.

– Fique atrás de mim. Você não pode morrer ainda.

– Se faz tanta questão – Icabode respondeu, se escondendo atrás do brutamontes.

Os poloneses se aproximaram, dando ordens e mirando as armas. Ivanovitch esperou em silêncio, com os braços erguidos. Assim que eles chegaram perto o suficiente, o vampiro agiu. Rapidamente, ele correu, fazendo uma meia lua, com o braço estendido na direção dos homens. Suas garras cortavam os pescoços dos guardas enquanto ele passava em suas frentes. No fim, todos caíram, agonizando. Demorou alguns segundos antes que o último morresse de fato.

Ivanovitch tirou um lenço do bolso e limpou sua mão coberta de carne, sangue e tendões. Ele olhou para Icabode e o lembrou:

– O vampiro mais forte do mundo.

Os dois se viraram em direção à mansão, e um dos guardas que assistira a cena, se virou e trancou a porta dos fundos. Ivanovitch deu de ombros e foi em direção ao carro. Ele ergueu o veículo com uma mão e o arremessou, abrindo um buraco na parede da mansão.

– Quando Deus fecha uma porta, eu abro um buraco.

O segurança atirou, descarregando sua Thompson no corpo de Ivanovitch. O vampiro agarrou um cadáver e o arremessou, acertando o segurança em cheio. Não havia mais ninguém em seu caminho. Os dois vampiros adentraram a sala, decorada com símbolos hebraicos, móveis caros, pedaços de parede no chão e um carro de cabeça pra baixo.

Três poloneses surgiram no andar superior e começaram a atirar. Icabode se jogou atrás do sofá, mas Ivanovitch ficou parado. Em seguida, ele abriu os braços e mostrou as presas, ameaçador como se fosse o próprio diabo. Os poloneses recuaram e saíram correndo, apavorados.

Em seguida, quando o silêncio se fez completo, uma voz surgiu. Icabode a reconheceu. Era Solomon Saks. O velho de postura invejável e longas barbas e cabelos brancos surgiu no topo da escada. Ele vestia um roupão de seda, negro.

– Boa noite, senhores. Como se já não bastasse o prédio de Green Point, estou recebendo visitas em minha própria casa. A mãe de alguém esqueceu de ensinar boas maneiras.

– Solomon Saks? – Ivanovitch perguntou. Sua voz abalou as estruturas da mansão.

– O próprio – Saks começou a descer a escada, não demonstrando ter medo. – E o senhor, quem seria?

– Aquele quem vai te devorar.

– E eu – Icabode disse, saindo de trás do sofá. – Lembra de mim?

– Ora, nos encontramos de novo – Solomon olhou para Icabode com surpresa. – Parece que você aperfeiçoou suas amizades – Em seguida, ele olhou para Ivanovitch. – Depois de tudo o que você fez em minha casa, irei mata-lo lentamente. Não hesite em fazer o mesmo comigo se tiver a chance.

– Pode deixar. Gosto de saborear minha comida. Não será a primeira vez que como carne polonesa.

– Camarada russo, sua provocação é muito empobrecida. Ela não me afeta em nada – assim que chegou ao térreo, Solomon parou.

– Faça isso rápido – Icabode disse ao vampiro. – E depois precisamos resgatar o vampiro que Solomon prendeu.

– Nós temos tempo suficien… – antes que Ivanovitch terminasse a frase, Solomon abriu o roupão e sacou uma pistola.

Ivanovitch se lançou sobre ele, erguendo a arma pra cima.  Icabode ficou assistindo a cena, em silêncio. As costas de Ivanovitch cobriam tudo, e ele não sabia se Solomon já estava morto. O vampiro estava parado, e Icabode achou que ele devia estar bebendo do pescoço do polonês.

“Iriei mata-lo lentamente. Não hesite em fazer o mesmo comigo se tiver a chance”, foram as palavras de Solomon, e Ivanovitch provavelmente estava aproveitando o momento.

Icabode franziu o cenho ao ver algo se movendo no casaco do vampiro. Algo começou a se projetar em suas costas, quando de repente um objeto pontudo, banhado em sangue rasgou seu casaco. No momento seguinte, Solomon deu um passo para o lado e atirou várias vezes no jovem. Icabode caiu no chão com vários buracos no peito.

Ele tentou se levantar, mas estava muito ferido. Olhou para estaca em Ivanovitch e não acreditou.

– No momento que eu ergui a arma – Solomon disse, olhando para Ivanovitch -, eu sabia que você iria direto na minha mão. Ela foi apenas um chamariz enquanto eu sacava a estaca com a outra e te empalava. Seu amigo ali conviveu comigo

alguns dias –apontou para Icabode. – Ele deveria saber que eu sou canhoto.

Solomon apertou o bíceps de Ivanovitch, admirado.

– Nenhum músculo é tão forte quanto o cérebro – ele olhou para Icabode e sorriu, mostrando as presas vampirescas.

– Oh não, você é um… – Icabode disse, surpreso.  – Você é um vampiro!

Solomon virou a cabeça e mordeu o pescoço de Ivanovitch, e começou a beber seu sangue. Icabode começou a se arrastar, mas sentia muita dor. Nunca chegaria a tempo.

Se ele beber da alma de outro vampiro, ele absorverá seus poderes! Sunday disse em sua mente. Você precisa pará-lo.

– Eu não… eu não consigo – Icabode tombou, observando Solomon drenar todo o sangue de Ivanovitch.

Em seguida, o brutamontes caiu no chão, ressecado, como se fosse uma grande ameixa. Ao seu lado, Solomon se retorcia, e com o roupão aberto, Icabode percebeu seus músculos dilatando sob a pele. As veias do polonês se engrossaram, e ele estava se transformando em algo mais. Em seguida, o velho se recompôs. Seus olhos estavam vermelhos, as presas, para fora. Ele foi até o carro no meio da sala, colocou as duas mãos sobre o veículo e com um movimento brusco, o repartiu em dois, como se fosse feito de papel.

Parece que temos um novo vampiro mais forte do mundo, Icabode pensou, aterrorizado com a cena.

 

Leia  todos os  capítulos de Icabode St. John clicando aqui. Ou então encontre mais livros do autor clicando aqui.

Icabode St. John [6]

Nos capítulos anteriores: Icabode, Sunday e Drake invadiram o prédio da máfia polonesa para matar o vampiro antes que ele transformasse Solomon Saks em um deles. Mas a missão falhara, e Icabode morrera, logo depois de soltar o vampiro, pois descobrira que ele não era mal. Icabode acordou no inferno, onde foi informado que seu pai vendera sua alma para um senhor do inferno, e por isso, ele fora pra lá. Após uma fuga desesperada, ele se encontrou com Sunday, e ambos correram até um abismo que os separava do paraíso. No último instante, uma força invisível puxou Icabode pra cima, e Sunday se agarrou em suas correntes e foi puxado junto. 

 

O Capitão Drake Sobogo estava cercado no primeiro andar. Mandara Sunday e Icabode terminarem a missão enquanto ele segurava os inimigos. O boxeador pegou uma barra de ferro à vista e acertou a cabeça de Troche com ela. O tinido metálico fez Drake perceber que o judeu tinha placas de ferro debaixo da pele.

– Agora é minha vez – disse o Judeu de Ferro antes de chutar o estômago do outro.

Drake atravessou a sala sem tocar no chão. Suas costas acertaram a parede com força, fazendo todo o ar sair dos pulmões. Antes que pudesse se preparar, Troche já estava o segurando pela gola e dando vários socos em seu rosto. Quando o julaco parou, Drake cuspiu sangue em seu rosto.

– Terminou? – o boxeador era conhecido como Capitão Sangrento nas lutas clandestinas. Um dos principais motivos disso, é que ele podia ficar coberto com o próprio sangue, mas nocaute nunca era uma opção. – Sou eu novamente.

Drake começou a socar o rosto duro de Troche, afastando-o. O outro se assustou com a ferocidade do homem, mas logo em seguida, reagiu. Os dois começaram a trocar golpes em uma velocidade surpreendente. Quando o Capitão Sangrento percebeu que não iria ganhar aquela, decidiu recuar.

Espero ter ganhado tempo o suficiente pra vocês, pensou, esperando que os outros dois conseguissem matar o vampiro. Em seguida, jogou seu corpo para trás, em direção à janela. Ele estava um andar acima do chão, mas o impacto foi pior que os socos que acabara de levar. Demorou um segundo para acertar o chão. O Judeu de Ferro colocou a cabeça pela janela e os dois se encararam. Em seguida, Troche sumiu dentro do prédio.

Tiros e clarões continuavam a vir pelas janelas, e Drake começou a rastejar para longe. Alguns segundos depois, uma janela explodiu, e dois corpos despencaram do terceiro andar. Sunday e Troche acertaram o chão com um baque seco. E para a surpresa de Drake, o Judeu de Ferro foi o único a se levantar. O homem olhou para cima, esperando que seus homens continuassem a perseguição. Depois, ele se virou para Drake, e sorriu.

– Vocês são muito estúpidos – Troche disse, vindo em sua direção.

Drake se levantou com dor, e ficou em posição de luta. Ele iria morrer, obviamente, mas iria lutando.

– Corta essa merda e venha logo! – gritou. – Vou dar uma surra nesse seu traseiro polaco.

Troche partiu pra cima. Mas nenhum de seus golpes acertava o alvo. Drake se esquivava habilmente, revidando sempre que possível. Ele era um boxeador profissional, mas seus oponentes não eram feitos de ferro. Enquanto Troche começava a se cansar, Drake sentia os ossos das mãos doerem, vendo que o adversário não sentia dor alguma.

Nessa hora, Troche o surpreendeu e chutou seu joelho. Drake caiu de lado, e o Judeu de Ferro colocou o pé sobre seu pescoço. Ele sorriu, vendo o boxeador socar sua perna.

– Por fim, é a minha vez – o Judeu disse, pressionando o pescoço de Drake.

Um barulho em suas costas fez os dois virarem a cabeça. Um corpo caiu do último andar. Era Icabode. Drake viu o corpo do jovem, sem vida, no chão. Troche começou a gargalhar satisfeito. O boxeador se sentiu tonto, pela falta de ar. Todos nós morremos.

Mas um vulto chamou a atenção, pelo canto de olho. Ele não sabia o que era, mas vinha em sua direção. Troche foi arremessado para longe. Drake sentou, vendo Icabode sobre o corpo do Judeu de Ferro. O jovem mordia o homem, ferozmente. Troche girou, derrubando-o. Icabode rolou de volta pra cima dele, mordendo-o novamente.

Tem algo errado com ele, Drake notou, tentando ficar de pé, e gritou:

– Ei!

Icabode se virou repentinamente. Seus olhos eram vermelhos, e seus caninos, compridos. Ele era um vampiro sedento de sangue. Uma besta sem consciência.

– Ah não, garoto – Drake suspirou, recuando.

Icabode avançou em sua direção, agarrando-o e voando pelo terreno cheio de materiais de construção. Drake tentava segurar a cabeça do jovem que tentava mordê-lo freneticamente. Os dois subiram vários metros acima, e o boxeador gritava para que ele acordasse, em vão.

Antes que se afastassem mais do chão, Drake usou a única arma que tinha. Seus socos não foram tão precisos naquela confusão, mas foi o suficiente para atordoar o animal em fúria. Icabode despencou, e os dois atravessaram copas de árvores, e caíram em um parque no centro do Brooklyn. Drake se levantou e tentou correr, mas com um golpe de Icabode, ele atravessou a rua, acertando uma parede de tijolos. O boxeador ficou sentado, vendo o vampiro voar em sua direção com as presas e garras prontas para o golpe final. Ao seu lado, um vira-lata latia, abanando o rabo.

Uma silhueta surgiu do nada, e uma mão agarrou o pescoço de Icabode no ar. O cachorro ganiu assustado com a aparição. O sujeito tinha o tamanho de um armário. Ele vestia roupas apertadas, suspensórios e quepe. Ele virou o rosto de lado e disse:

– Você é um mortal.

– Sim – Drake respondeu sem saber se aquilo era uma pergunta ou afirmação. Enquanto isso, Icabode tentava se desvencilhar da mãozorra do homem. – Não o machuque, ele está…

– Faminto – interrompeu o outro. Ele jogou Icabode no chão com força, fazendo a calçada rachar. Em seguida pegou o cachorro e o pressionou contra o rosto do jovem.

Drake assistiu a cena espantado. Icabode agarrara o vira lata e abria sua barriga com os próprios dentes. O animal chorava e se debatia enquanto grande parte de seus órgãos eram rasgados e caíam no chão. Alguns segundos depois, o homem misterioso jogou Icabode contra a parede.

– Já chega! – disse ele. Sua voz era grossa como trovão.

Drake foi até Icabode e tentou despertá-lo. O jovem piscava, confuso. Estava coberto com sangue, e suas presas pressionavam o lábio inferior. Ele olhou para a carcaça do cachorro e depois para Drake. Por último, para o homem de suspensórios.

– A primeira vez que vocês apareceram neste distrito, quebrando tudo, eu deixei passar – a voz grossa ribombou. – Mas o que vocês aprontaram hoje, ultrapassou os limites.

Ele puxou uma estaca de madeira da cintura e empalou a Icabode no coração. Drake se jogou contra ele, socando seu rosto. O homem segurou seus braços e lhe deu uma cabeçada fatal.

 

Icabode despertou, sentado em uma cadeira de espaldar alto, acolchoada com veludo, em uma sala coberta de tapeçarias vermelhas. Uma mesa de mogno estava na parte alta do cômodo. Uma ventania gélida invadia o lugar através de uma larga sacada, centenas de metros acima do solo. Atrás da mesa de mogno, havia três pessoas. Eles olhavam em sua direção, sérios.

– Eu digo para começarmos – disse um deles. Era um homem magrelo, de rosto ossudo e cabelos colados no crânio. Sua pele era pálida como a dos outros dois.

– Ninguém vai começar até a Juíza chegar! – o homem do meio parecia mais um urso, com seus cabelos e barbas frondosos e ruivos. Sua mão era quase do tamanho da cabeça do primeiro sujeito.

A terceira pessoa era uma senhora de roupas negras e uma renda que cobria o rosto. Ela se manteve em silêncio.

– Pelo menos para adiantar o assunto, senhor Ivanovitch – o magrelo insistiu. – Não está curioso pra saber o motivo desse alvoroço todo que nos trouxe o senhor Anthony Ritzo? – ele apontou para o sujeito de suspensórios que empalara Icabode.

O jovem olhou para baixo e viu que tinha uma taça vazia no colo, suja de sangue, e que não havia mais nenhuma estaca em seu peito. Ao lado, Anthony Ritzo estava em pé, olhando para o trio atrás da mesa.

– Mas ele já disse, oras! – Ivanovitch respondeu, irritado. – Esse neófito estava causando um caos em seu distrito. Voando sobre as ruas do Brooklyn, metido em perseguição policial e tiroteios em Green Point. Ele chamou tanta atenção como o Hindenburg em chamas.

– Eu sei que seu intelecto é capaz de ser saciado com tão pouco conhecimento, mas um catedrático como eu sempre busca entender plenamente o objeto de seu trabalho – disse o magrelo de cabelos colados. Ele se levantou e se aproximou da cadeira de Icabode. – Diga-me, rapaz. Antes de tudo, quem foi o cainita que te abraçou?

Icabode franziu o cenho, confuso. Antes que perguntasse o que significava aquelas palavras, o homem explicou.

– “Cainita” significa “descendente de caim”, vampiro. “Abraçar” é o termo que usamos quando um de nós transforma alguém em um membro de nossa sociedade.

Eu já te expliquei isso, Icabode, a voz de Sunday veio em seu ouvido. Ele olhou ao redor, procurando o detetive, sem sucesso. Não fazia ideia de onde vinha a voz.

– Então, diga-me – pediu o vampiro em sua frente. – Quem lhe deu a Não Vida?

– Eu não sei o nome dele – Icabode respondeu, cooperativo. Precisava ganhar tempo para fugir dali. – Mas ele me transformou para que eu não morresse… completamente. Diferente do que eu esperava, ele se mostrou bastante humano.

– Por que a surpresa? – ele abriu os braços, arqueando a sobrancelha. Sua fala era lenta e condescendente. – Vampiros não podem demonstrar bondade e misericórdia?

Aquela pergunta pegou Icabode de surpresa. Ele olhou nos olhos do homem, tentando decifrar se aquilo era puro cinismo. Mas para todos os efeitos, o vampiro no prédio polonês tentara salvá-lo, mesmo sabendo que Icabode estava ali para mata-lo.

– Começaram sem mim? – uma voz feminina, rouca, perguntou, quando a juíza adentrou a sala. Ela olhou para o vampiro magrelo. – Senhor Fermín?

Ela era corcunda, careca e sua pele tinha cor de cimento seco. Olhos vermelhos, nariz torto e vários dentes pontiagudos que iam para várias direções. Alguns iam até o queixo, outros perfuravam a bochecha, estando sempre expostos.

– Estava apenas sondando o réu, vossa excelência – Fermín respondeu, voltando para seu lugar atrás da mesa. – É sempre bom conhecer a fundo todos os fatos dos nossos julgamentos, já que acontecem tão poucas vezes.

A juíza sentou em uma poltrona num canto da sala, e alguns homens brotaram das sombras em suas costas e estenderam seus pulsos em sua direção. Ela fez alguns cortes e começou a bebericar direto das veias. Depois, limpou a boca com as costas das mãos e fez o sinal com o indicador para que começassem.

– Ritzo! – bradou Ivanovitch. – Diga exatamente o que aconteceu com esse aí.

Anthony Ritzo deu um passo à frente, e explicou:

– Semana passada, esse cainita apareceu com aquele forasteiro, Anatole, que pedira permissão para fazer umas buscas na cidade. Os dois sobrevoaram as ruas de Green Point, e mataram alguns policiais diante de várias testemunhas. Um de meus rapazes viu tudo e me avisou. Quando cheguei no local, eles já estavam em um local cheio de judeus altamente armados. Por isso nós não agimos.

– Por medo das armas ou de ser descoberto como um vampiro? – Ivanovitch perguntou, rindo.

– Ignore-o senhor Ritzo, por favor – Fermín pediu, educadamente.

– Nós ficamos de olho no prédio pelos próximos dias, tentando descobrir algo. Até que recentemente a proteção do prédio triplicou.

– Solomon Saks é o mafioso com o maior número de associados – Fermín observou. – Ele tem um pequeno exército. Os italianos estão perdendo seu espaço. Perdoe-me, continue.

– Eu deixei todos de meu clã em alerta, e hoje a noite, um tiroteio teve início. Nós corremos até o local, e vimos esse aqui – ele apontou para Icabode -, sobrevoar o prédio com o mortal para longe da zona de risco. Foi aí que o pegamos. Houve muitas testemunhas, conselheiros, juíza. E eu não pretendo assumir essa culpa. Fiz o que podia pra impedir que eles quebrassem o sigilo da Máscara.

– Fez o que podia, senhor Ritzo? – Fermín perguntou, curioso. – Mas você não nos informou da primeira vez que eles quebraram a Máscara. Não acha que deveria ter feito isso também?

O grandalhão gaguejou, tentando se justificar.

– Oh, não – Fermín sacudiu a cabeça. – Não falaremos sobre isso agora. Depois você terá a chance de se explicar. Agora desejo fazer algumas perguntas ao acusado – ele olhou para Icabode, interessado. – Como você se chama?

– Sou Icabode St. John – ele respondeu, sentindo a presença maligna naquele homem. Fermín tinha sede de sangue, e isso era visível em seu olhar.

– E o que aconteceu com Anatole depois daquela noite?

– Eu o matei.

Os vampiros se entreolharam, surpresos. Icabode não parou por aí.

– E foi por esse mesmo motivo que invadi o prédio de Saks, para matar o vampiro que ele mantém preso.

– Por quê? – Ivanovitch perguntou, se inclinado pra frente, intrigado. – Por que você está matando esses vampiros?

– Porque é isso que faço – Icabode se levantou pela primeira vez, deixando a taça cair e rolar pelo chão. Ele olhou para todos na sala e estalou o pescoço. – Eu sou um caçador de vampiros.

 

Leia  todos os  capítulos de Icabode St. John clicando aqui. Ou então encontre mais livros do autor clicando aqui.

Icabode St. John [5]

Nos capítulos anteriores: Icabode, Sunday e Drake se uniram para enfrentar Solomon Saks, o mafioso polonês que capturara um vampiro para transformar a si mesmo em uma criatura da noite. Após invadirem o cativeiro, os três foram abatidos, um por um, até que Icabode à beira da morte alcançou o vampiro acorrentado. Para sua surpresa, descobriu que o preso não era uma pessoa má, e ao invés de matá-lo, Icabode o libertou e em seguida, morreu. 

 

O mundo era uma água negra, e suas mãos recém despertadas começaram a nadar em direção ao céu tomado por uma língua de fogo que dançava acima do mundo. Mãos e pés estranhos tocaram nele, e assim que chegou à superfície, nadou até uma margem, ao lado de milhares de pessoas que faziam o mesmo. Todas elas pareciam assustadas e surpresas. Icabode não fazia ideia de onde estava.

Ele engatinhou na terra seca, mas foi impedido de continuar ao ver diversos homens encapuzados, segurando hastes de madeira, com lâminas curvas na ponta. Antes que ele pudesse fazer algo, os encapuzados começaram a enfiar suas foices nos náufragos, penetrando seus corpos e os arrastando dali.

Os gritos de dor e pânico enchiam os ouvidos de Icabode, e não demorou para o seu grito se unir a eles. Uma foice atravessou seu ombro como se fosse um anzol, e o encapuzado começou a arrasta-lo para longe da água. Icabode gritava, olhando para todos os lados. O céu era feito de nuvens de fogo, e eles estavam cercados por montanhas negras.

Antes que ele fosse jogado em uma gaiola lotada de mulheres e homens nus, uma voz gutural bradou ao seu lado:

– Largue o garoto, ceifador! – era uma criatura chifruda, feita de brasas. Cada vez que falava, colunas de fumaça saíam de sua boca. – Não vê que ele é um Orelha Furada? Ele tem dono!

Icabode rapidamente tocou na própria orelha e percebeu que tinha uma espécie de etiqueta costurada. O ceifador sacudiu a foice até que seu corpo caísse no chão, cheio de dor. A mão da criatura chifruda se fechou sobre a cabeça dele, puxando-o para longe das gaiolas nas carroças, e em seguida, amarrando suas mãos em longas correntes de ferro negro.

Um grupo peregrinava pela terra árida e escura. Criaturas gigantescas e anima

lescas apareciam de todos os lados. As pessoas gritavam e imploravam por Deus, pois eles já sabiam onde estavam.

– Mas por que eu estou aqui? – Icabode inquiriu ao demônio que o arrastava para longe do grupo. – Meu pai sempre me ensinou que só pecadores vinham para cá! E que o pecado é ir contra sua consciência! Minha consciência está limpa! – Icabode gritou, batendo no próprio peito. – Eu não devia vir pra cá!

A criatura se virou pra ele, deixando um rastro de fumaça para trás. Seus olhos eram bolas de fogo.

– Seu pai te ensinou? Foi seu pai quem vendeu sua alma. Orelhas Furadas são almas que já estão reservada para algum Senhor do Inferno.

Icabode sentiu suas pernas falharem e ficou de joelhos. O demônio agarrou sua cabeça novamente e o forçou a continuar. Ele estava atônito, sem acreditar que seu pai, o reverendo, vendera a alma do próprio filho a um demônio.

– Mas e sobre o livre arbítrio e as minhas próprias escolhas? – ele gaguejou, completamente perturbado. – Não tenho direito e autoridade sobre minha própria alma?

– Até a idade da plena consciência do bem e do mal, todos são de responsabilidade de seus pais ou tutores – o demônio explicou, sentindo um prazer nefasto em ver a dor no olhar de Icabode. – Quando os exércitos leais ao seu Deus iam à guerra, Ele mandava matar os inimigos e os filhos de seus inimigos. Dependendo dos pais, as crianças eram santas ou pecadoras. Parece que o seu pai escolheu o caminho errado, garoto.

Icabode não sabia que as coisas funcionavam daquele jeito. Tudo parecia muito arbitrário e injusto aos seus olhos. Em algum lugar perto dali, havia um paraíso onde Icabode merecia passar a eternidade, mas graças a seu pai, ele ficaria para sempre no inferno.

Adiante, sobre a trilha, havia um arco de pedra com uma placa com uma frase que cada um entendia em sua própria língua, “BEM VINDO AO INFERNO”.

– Ei, Icabode! – alguém gritou. Era Sunday, preso em uma jaula puxada por uma carroça. – Garoto, você morreu? – seu olhar era de tristeza e cansaço. Ele estava pressionado contra as grades enferrujadas, cercado de pessoas. – Pelo menos você conseguiu mata-lo? Você matou o vampiro?

Icabode lançou um olhar envergonhado para o amigo. O Mal vencera, e os heróis foram mandados ao inferno. Isso é inaceitável, Icabode pensou. Se existe justiça, as coisas não deviam ser assim. Ele olhava para Sunday, tentando achar alguma saída para aquela situação. Se não houver justiça… talvez eu possa fazê-la por conta própria, refletiu. Nessa hora, a sombra do arco de entrada do inferno recaiu sobre ele.

– Sunday! Nós não podemos morrer duas vezes, não é? – Icabode gritou.

O detetive olhou para ele, confuso. Icabode não esperou a resposta, e se jogou contra a coluna do arco, e começou a escalá-la. As pedras tinham sulcos e frestas que facilitavam a escalada. A corrente que o ligava ao demônio era longa, e o chifrudo escolheu não puxá-lo pelo simples fato de que seria mais interessante espera-lo chegar ao topo do arco. A queda seria mais forte. Mas ao chegar lá em cima, Icabode agiu rapidamente. Ele mesmo pulou para o outro lado, em uma queda livre.

Ele havia mirado em alguma carroça, para cair entre os demônios bovinos que a puxavam. A queda fora dolorida, e quebrou alguns de seus ossos, mas ele atingira o objetivo. Tomado pela dor, enroscou a corrente no eixo entre os debôvinos (demônios bovinos), e esperou que desse certo. A corrente era longa, mas chegara ao limite no último instante. Ela se retesou, passando por cima do arco e puxando o braço do chifrudo. O demônio tinha a altura de um poste e pesava no mínimo, uma tonelada.

Sem saber exatamente qual polo iria ceder primeiro, Icabode se manteve inerte, vendo a corrente diante de seus olhos, puxar o eixo da carroça, entortando-o. Se ele cedesse, seu plano falharia miseravelmente. Aguente, aguente! Ele pediu. Se havia alguma força do bem naquele lugar, aquela era a hora de intervir. O garoto começou a chutar as ancas dos debôvinos, forçando-os a continuar em frente.

O demônio chifrudo começou a puxar a corrente, vendo que estava prestes a ser puxado para cima do arco de boas-vindas. Bufando com raiva, ele puxou os braços para baixo, fazendo a carroça reduzir a velocidade. As correntes não podiam ficar mais rígidas do que naquele momento. Em algum lugar, algo iria ceder.

Sunday estava em uma gaiola, tentando enxergar o que Icabode havia feito depois de escalar a coluna. Ele não o via mais. Mas a atenção de todos estava voltada para a corrente que puxava o arco para baixo. As pedras começaram a balançar enquanto o demônio lutava para não ser erguido. No próximo instante, o arco cedeu, e as pedras milenares vieram abaixo, esmagando tudo que passava naquela hora. A carroça de Sunday foi desmontada, e ele mesmo fora pressionado por barras e ossos dos menos afortunados que estavam naquela jaula.

Um frenesi teve início, e todas as pessoas que estavam em liberdade começaram a correr. Sunday se arrastou para fora da gaiola, e viu o demônio chifrudo jogar os humanos para todos os lados, avançando em linha reta, rumo à outra ponta da corrente.

– Preciso ajuda-lo – Sunday disse, correndo na mesma direção. Icabode não teria nenhuma chance depois que aquele demônio o alcançasse.

– Corre, corre! – Icabode gritava, chutando o traseiro dos debôvinos com mais força. O chifrudo agora corria em sua direção, e a punição no inferno devia ser visceral. Icabode não pretendia ser pego pela criatura. O problema é que, nesse momento ele havia adentrado os limites reais do inferno. E isso era um puta problema.

– Como eu vou me soltar dessas correntes? – ele se perguntava. Seu corpo erra arrastado pelo chão, entre os animais. Seus braços continuavam presos ao eixo de ferro.

A carroça aumentava de velocidade, enquanto o chifrudo também corria mais rápido. Sunday ficara para trás, consciente que aquela corrida não era pra ele. Só restava ao detetive esperar que o demônio nunca alcançasse o garoto.

Icabode se ergueu e ficou sobre o eixo, com o corpo inclinado por causa do espaço curto das correntes. Ele não conseguia ficar em pé. Olhando para a frente, viu uma cidade satânica, cheia de fogo, rodas gigantes, estátuas e criaturas aladas sobrevoando o lugar. Com os movimentos limitados, ele apenas observou.

A carroça invadiu a cidade, quebrando cercas, paredes, invadindo praças, atropelando todas as criaturas no caminho, passando por colunas de fogo tão largas quanto a própria cidade. Icabode sentia como se estivesse em um liquidificador cheio de ácido. Nada parava aqueles debôvinos, e todos os obstáculos causavam grandes lacerações no garoto.

Seu corpo fora consumido por fogo, e vários cortes cobriam-no quase por completo. Estava fraco, e prestes a tombar do eixo, direto para o chão. Mas isso seria pior. Ali, ele estava um pouco mais protegido. A jaula da carroça ainda estava cheia de pessoas. E todas elas gritavam para ele tirá-las dali. Elas tinham falsas esperanças, e Icabode sabia disso. Não havia uma forma de salvar ninguém do inferno. Ele só ganhara tempo, e com o custo de ter o corpo todo moído.

As pessoas gritavam, avisando que o chifrudo estava perto, e que iria alcança-los logo. Icabode usava de uma força sobre-humana para continuar, mas ele preferia ser derrubado do que simplesmente desistir.

A carroça saiu da cidade e partiu em direção ao paraíso. Um lugar cheio de jardins iluminados, anjos e santos que bebiam e comiam em uma eterna comemoração. Icabode sorriu, esperançoso. Isso durou pouco tempo, pois ele percebeu que havia um imenso abismo entre o inferno e o paraíso.

– Claro – ele se lembrou. – A parábola do rico e de Lázaro.

A história bíblica mostrava dois homens conversando, cada um de um lado do abismo. O rico tentava ir para o paraíso, mas por causa do buraco não havia nenhuma possibilidade. E nesse momento, a carroça rumava para esse abismo.

– Agora sim, já era – Icabode suspirou, pensando que ia para uma espécie de inferno pior do que o próprio inferno.

Os debôvinos se jogaram no buraco negro, e a carroça caiu pesadamente. O chifrudo parou de correr ao ver aquele desfecho. Mas a corrente se esticou e começou a arrastá-lo. O demônio caiu no chão e tentou arrancar livrar seus pulsos para não ser levado pela carroça. No momento em que conseguiu se desvencilhar delas, sentiu o chão sumir debaixo de seu corpo. Ele também caíra no abismo.

Sunday viu a carroça despencar com Icabode e puxar o demônio consigo. O detetive lera sobre o abismo na bíblia. Esse lugar era mil vezes pior que o inferno. Era no abismo que Deus aprisionara as piores criaturas. Os demônios do apocalipse. O detetive chegara tarde demais, e mesmo assim, não teria chance alguma de salvar o garoto.

Ele mesmo estava duplamente condenado. Atravessara a cidade correndo, seguindo a trilha da carroça, e agora, centenas de ceifadores o perseguiam.

Olhou para trás e viu as inúmeras criaturas com foices, sob as sombras dos demônios alados, todos vindo em sua direção. Ele sabia que seria despedaçado. Mas talvez fosse merecido. Em sua vida, Sunday havia tomado algumas decisões erradas. Não tinha dúvida que o inferno era o seu lugar. Ele só queria um copo de whisky para degustar antes que fosse alcançado. E eles vinham com muita pressa, ah se vinham. Em poucos segundos, estariam sobre seu corpo.

– Que seja – Sunday ergueu a gola do sobretudo e colocou as mãos nos bolsos. Mas um grito o fez virar novamente. Alguém chamava seu nome.

Icabode sobrevoava o abismo. O garoto subia rumo ao céu, puxado por uma força invisível. Ele gritava o nome do detetive várias vezes.

– Pegue a corrente! – Icabode gritou, sacudindo a longa corrente que ainda estava presa em suas mãos.

Sunday olhou para os ceifadores, e não esperou mais. Ele disparou em direção ao abismo. Em suas costas, algumas foices começaram a rodopiar, tentando acertá-lo. Mas se os ceifadores não o alcançassem, o abismo iria. Ele saltou em direção ao buraco, erguendo as mãos, consciente de que tudo daria errado.

– Você conseguiu! – Icabode gritou, vendo o detetive pendurado em sua corrente, e ambos subindo para o céu, deixando milhares de demônios para trás.

Os dois atravessaram as nuvens de fogo, e continuaram subindo.

– Não estamos indo para lá! – Sunday gritou, surpreso, ao ver o paraíso ficando para trás.

– Talvez estejamos indo para o céu onde fica o Trono de Deus! – Icabode deduziu, temendo despencar a qualquer momento.

– Você deve estar certo – Sunday gritou. – Cuidado!

Uma criatura alada atravessou uma nuvem de fogo e agarrou a Icabode. O garoto ergueu as mãos e segurou as presas da criatura, afastando-as de seu rosto. Ele abriu a boca e mordeu a face do demônio, sentindo o gosto pútrido e cheio de enxofre, enquanto arrancava um pedaço dele.

– Volte para o inferno, criatura asquerosa! – Icabode gritou soltando as garras que foram direto em sua barriga, penetrando-o. Ele gritou.

Com as mãos livres, rasgou a membrana da asa de morcego do demônio, usando de toda a força que tinha. A criatura começou a cair em parafuso, e sumiu de sua vista. O corpo de Icabode estava irreconhecível. Perfurado, carbonizado e rasgado. Seus olhos estavam praticamente fechados, mas ele olhou para baixo e viu Sunday, ainda pendurado. Ele conseguiu finalmente sorrir.

– Deus nos salvou – tentou dizer.

Mas assim que alcançaram o ponto mais alto do céu, tudo escureceu, e estavam de volta ao mundo dos mortais. E foi aí que ele viu que Deus não o salvara. Em sua frente, alguém olhava com medo para seus caninos.

 

Leia  todos os  capítulos de Icabode St. John clicando aqui. Ou então encontre mais livros do autor clicando aqui.

 

Icabode St. John [4]

Nos capítulos anteriores: Icabode e o detetive ocultista Sunday foram traídos pelo mafioso polonês Solomon Saks, que ao invés de caçar vampiros, como prometera, capturara um apenas para se transformar em um deles. Em seguida, Sunday apresentou a Icabode, Drake Sobogo, capitão dos Balas de Prata, pelotão especial da 2ª Guerra que caçava criaturas sobrenaturais. Drake era boxeador clandestino e era conhecido como Capitão Sangrento. Ele conhecia o vampiro capturado por Saks, pois Sunday havia lhe pedido certa vez que o protegesse, pois era um informante, mas Drake se recusara a ajudar um vampiro. Agora, Sunday o havia lhe chamado para conversar novamente. 

 

– Me chame de Capitão Sangrento – Drake Sobogo disse ao ser apresentado a Icabode St. John. – Não quero meu verdadeiro nome sendo usado nesta conversa – ele olhava ao redor, desconfiado.

– Tudo bem, Capitão – Icabode assentiu. – Você já deve saber que nós estamos atrás do mafioso Solomon Saks.

– Eu estou aqui pelo vampiro – ele respondeu, lançando um olhar severo ao detetive Sunday.

– Eu sei, eu sei – Sunday precisava ser cauteloso ao falar com o boxeador de temperamento difícil.  – Mas Solomon Saks mantém o vampiro prisioneiro. E suas intenções são nefastas. Ele pretende tornar a si próprio uma criatura da noite.

– Mas quem seria tão idiota para trazer sobre si tamanha condenação? – Drake fez uma careta de absurdo. – Se esse Saks deseja a morte, diga a ele que a levarei pessoalmente. E sem cobrar nada.

– Nós não pretendemos mata-lo, Capitão – Icabode interveio. – Nosso negócio é apenas com o vampiro. Precisamos invadir seu cativeiro e mata-lo. Nenhum homem deve morrer.

– Quem é esse garoto? – Drake olhou para Sunday, irritado. – E por que ele pensa que pode dar ordens a mim?

– Eu não estou dando ordens, capitão – Icabode se explicou.

– Ele é o maior interessado nesta missão – Sunday rapidamente completou. – Seu pai foi morto pelo vampiro Anatole – ele ergueu a mão de icabode, mostrando seus dedos decepados. – E ele o caçou e o matou com as próprias mãos.

– Ele mereceu, assim como todos os vampiros merecem – Icabode beijou seu crucifixo. – Mas condenar os homens já não cabe a nós. Apenas a Deus.

Drake olhou para a mão de Icabode e para as feridas em seu rosto, e silenciosamente reconheceu que aquilo fora um feito e tanto. O rapaz acabara de receber o seu respeito. O boxeador olhou ao redor, refletindo. Sua intuição o mandava trabalhar com aqueles dois, mas seus olhos circulavam pelo apartamento, sempre em busca de algo suspeito. A cada balançar das venezianas, o som de buzinas, sirenes e brigas que vinham da rua, ele tencionava seus músculos. Olhou pela cozinha, contando quantos copos usados estavam sobre a mesa. Se havia algum sinal de que não estavam sozinhos ali.

A sala de estar ficava três degraus mais baixa do que o resto do apartamento. Os sofás de couro com pernas cilíndricas de madeira, sobre o carpete bege… Aquilo tudo era delicado demais para monstros com cheiro de enxofre. Quadros coloridos, como o de uma moça tomando Coca-Cola, um circo itinerante cruzando um deserto, e outros, decoravam o ambiente. Não, eles não estavam escondendo nenhuma criatura demoníaca ali. Na mesinha de centro, o cinzeiro portava três charutos velhos, o que não queria dizer nada além de que Sunday fumava pra diabos. O Capitão Sangrento socou a própria mão.

– Qual é o plano?

– Entrar em silêncio, esta madrugada – Sunday explicou. – Encontrar o vampiro e… – ele deslizou o dedo pela garganta.

Icabode jogou duas estacas na mesinha e mostrou o crucifixo, indicando que aquilo era tudo o que ia usar. Drake não fazia questão de levar pistolas. Elas deixavam pistas. Seus punhos eram tudo o que precisava.

Enquanto Icabode explicava a estrutura do prédio, já que ele ficara lá durante uns dias, Sunday preparava sua mala com binóculos, cordas, lock pick, clorofórmio e outros de seus frascos especiais. Assim que a lua sumiu entre colunas de nuvens, o trio deixou o apartamento.

 

No estuário de Newton Creek, sob a ponte Pulaski, o grupo se reuniu para trocar de roupas. Do outro lado do afluente, no Queens, ninguém conseguia vê-los colocando seus casacos e luvas. Em seguida, o grupo correu até um prédio de quatro andares.  Sunday conseguiu abrir a porta dos fundos, silenciosamente. Ali era uma região industrial, e não havia uma alma viva por perto. O detetive guardou seu equipamento de arrombamento e eles entraram em um cômodo escuro. Icabode tomou a iniciativa, relembrando do caminho para o lugar onde se encontrara com Solomon Saks pela primeira vez.

– Eu esperava que tivesse pelo menos um segurança no prédio – Sunday sussurrou. – Mas está vazio.

– Talvez eles não trouxeram o vampiro pra cá – Icabode respondeu, inconformado.

– Se ele não estiver aqui, nós vamos direto até a casa desse polaco filho da mãe – Drake resmungou, decidido.

Na escuridão eles atravessaram o lugar cheio de caixas. Havia uma porta e uma escada para o andar superior. Icabode abriu a porta e os três adentraram. O lugar tinha um cheiro forte de fumaça e de produtos químicos. Pelo eco, era um cômodo imenso. Havia um interruptor ao lado da porta, e ao acenderem a luz, viram algo terrível. Aquilo era uma cozinha de heroína, mas essa não era a parte do “terrível”. Dezenas de julacos dormiam em colchonetes, cercados de fuzis e metralhadoras. Todos acordaram assustados com a luz.

Estamos mortos, Icabode pensou, e no mesmo instante os poloneses começaram a gritar, pegando suas armas. Drake agarrou a gola de Icabode e o puxou para trás, enquanto Sunday fechava a porta novamente. Os tiros começaram, transformando a porta em lascas que choviam sobre os três.

– Para a escada! – Sunday gritou, e eles começaram a correr.

Conseguiram chegar no andar superior, e Drake Sobogo empurrou uma escrivaninha de ferro, bloqueando a porta. Ele tirou o sobretudo, e por baixo, estava vestindo apenas seu calção de boxe. Ele fechou os punhos e olhou para os dois.

– Vão atrás do vampiro. Eu seguro eles.

Icabode protestou, mas Sunday o segurou pelo braço e o puxou em direção à outra escada. Em suas costas, ouviram a porta ser derrubada, e o rapaz se virou a tempo de ver Troche invadir a sala. Drake o acertara com uma barra de ferro, e o som que ela fez na cabeça de Troche foi metálico, como se os dentes do julaco não fossem a única parte de seu corpo feita de metal. Outros criminosos adentraram o cômodo, e enquanto Troche e Sobogo lutavam, os outros começaram a atirar na direção de Icabode. Sunday o puxou, e os dois chegaram até o terceiro piso.

– Sunday! – Icabode gritou ao ver que sangue vertia da boca do detetive.

Uma bala o acertara na bochecha e saíra pelo outro lado. Os dois pararam de correr pra ele cuspir fora sua própria língua. Ele olhou para Icabode com os olhos molhados, e ambos souberam que iriam morrer antes de alcançar o vampiro.

– Só tem mais um andar, Sunday – Icabode gritou, invertendo os papéis e puxando o detetive pelo sobretudo. – Vamos pelo menos terminar a missão antes de morrer!

Mas antes que conseguissem chegar na escada seguinte, Troche atravessou a parede, coberto com sangue de Drake Sobogo. O julaco sorriu para eles antes de ataca-los. Sunday empurrou Icabode e se jogou contra o polonês. Troche agarrou seu pescoço com uma mão e o ergueu. Com a outra, ele perfuro a barriga do detetive, rasgando seus órgãos internos e atravessando até as costas. Seus dedos se projetaram para fora, cheios de tripas frescas.

Sunday olhou para Icabode, e um jorro de sangue grosso escapuliu pela sua boca e pelos buracos nas bochechas. Em seu olhar havia uma mensagem. Em seguida, o detetive segurou os dois braços de Troche, e empurrou a parede atrás de si, forçando os dois a ficarem perto da janela. Icabode correu e se jogou, empurrando-os com o ombro. Troche e Sunday foram arremessados contra o vidro, e despencaram em uma queda de dez metros. 

Os outros criminosos chegaram no buraco da parede, e Icabode voltou a correr. Antes que subisse a escada, ele foi alvejado por uma rajada, e seu corpo foi perfurado em vários lugares. Em um último esforço, ele chegou até o quarto andar, e fechou a porta atrás de si. Ela era diferente, feita de aço e com trincas resistentes. Eles demorariam para entrar. Mas entrariam.

O cômodo era cheio de crucifixos, todos pregados na parede. Do outro lado, correntes amarradas em vigas de aço, prendiam os braços de um homem prostrado. O vampiro ergueu a cabeça em sua direção, fraco. Primeiro, ele mostrou as presas, tentando parecer ameaçador. Depois, mudou de expressão ao ver Icabode tirando a estaca do casaco.

– Você veio me matar? – o vampiro perguntou. Sua voz era suave, e seu semblante, dócil.

– E não há nada que você possa fazer! – Icabode bradou, cambaleando.

– Rápido! – o vampiro o apressou, olhando para a porta. – Eles vão abrir a qualquer momento. Trespasse meu coração!

Icabode ergueu a estaca acima de sua cabeça, mas aquela resposta não era exatamente o que estava esperando ouvir.

– Você está querendo me manipular, criatura!

– Não! – o vampiro respondeu, angustiado. – Não importa, só me mate rápido!

– Por quê? – Icabode se ajoelhou diante dele, ficando cara a cara. – Por que você está me pedindo isso?

– Porque eu sou um maldito vampiro! – ele respondeu banhado em lágrimas. – Me transformaram em um deles como punição! Eu irritei um membro da sociedade vampírica, e ele me deu essa não-vida! Mas você precisa me matar antes que Solomon Saks me use para criar seu exército!

– O quê? – Icabode abaixou a mão, incrédulo. – Que exército?

– Ele quer transformar todos os seus capangas em vampiros – declarou. – Você não sabia disso? Ele quer dominar Nova York, e governar sobre os mortais e sobre os próprios vampiros.

– Então eu preciso te matar – Icabode disse, fraco, sentindo a vida deixar seu corpo. – Mas… mas eu não queria.

– Como assim? Eu sou uma criatura da noite, você precisa me matar!

– Você não é mau – Icabode disse, chorando, surpreso. – Eu esperava um monstro, mas… você não é um.

– Claro que eu sou! Você não faz ideia do tanto que luto contra o desejo de sangue e de morte!

– Viu. Um monstro não lutaria – Icabode se arrastou para longe dele. – Você está fraco por causa disso – ele arrancou o crucifixo e o jogou pela janela. – Recupere a sua força antes que eles consigam entrar.

Sob os protestos do vampiro, Icabode arrancou os crucifixos um por um, e os jogou pela janela. No fim, ele estava deitado, e grande parte de seu sangue vertera para fora do corpo. Ele sentia seu corpo dormente, e estava tonto. A porta em suas costas fora derrubada, mas sua consciência apagou. Seu coração parou de bater e a vida deixou seu corpo para sempre.

 

Leia  todos os  capítulos de Icabode St. John clicando aqui. Ou então encontre mais livros do autor clicando aqui.

Icabode St. John [3]

Nos capítulos anteriores: Após caçar e abater o vampiro Anatole dentro do galpão da máfia polonesa, Icabode foi apresentado ao dono do local, Solomon Saks, o judeu polonês que controlava o Brooklyn. Icabode disse que Anatole matou seus pais, e Solomon lhe propôs uma aliança para iniciarem uma guerra santa contra os vampiros. Icabode apresentara o detetive ocultista Sunday, que poderia ensinar tudo o que precisavam saber acerca das criaturas. Após Solomon chamar seu capanga com dentes de metal, Troche, e mais um pequeno exército, eles foram até o esconderijo do primeiro vampiro que iriam caçar. Mas para a surpresa de Icabode e Sunday, Solomon capturou a criatura e revelou sua verdadeira intenção, que era se tornar um vampiro. 

 

O Capitão Drake Sobogo corria desesperado pelas ruas do vilarejo francês, tentando fugir dos soldados alemães. Ele olhava ao redor, sem acreditar no que acontecera. Todo o seu pelotão fora morto em poucos segundos, e o capitão fora o único sobrevivente. Seus companheiros não morreram por serem maus atiradores ou por estarem em menor número, ou por terem sido emboscados, nada disso. O grande problema foram os inimigos. Eles não eram humanos.

Sobogo parou subitamente, quando os alemães começaram a cair do céu em sua frente. Atrás, um grupo deles acabara de chegar. O americano estava cercado. As criaturas em uniformes nazistas tinham orelhas pontudas e sobrancelhas grossas e compridas.

Sobogo deu dois passos para trás e entrou em uma mansão em ruínas, prestes a desabar. Olhou ao redor e não achou nenhuma porta ou janela por onde pudesse escapar. Os elfos nazistas invadiram o imóvel, apontando suas armas para ele. Sobogo se encostou na coluna mestra da casa, cercado. O nazista de sobretudo cinza e medalhas de honra se aproximou, sorrindo.

– Pronto para morrer, amerricana? – ele perguntou com sotaque alemão, puxando o cão da sua Walther PPK. – Eu tenho que resolver isso o quanto antes, pois devo voltar à base imediatamente. Eles servirão foie gras o elfo sorriu, ansioso pelo banquete. – E também, pedirei a herr Oscar para hospedar meus elfos no castelo – ele apontou ao norte. – Estamos cansados de ficar na floresta.

Sobogo cuspiu no chão com desprezo. Os dramas pessoais daquela criatura não o interessavam. Em seguida, o americano olhou ao redor, para cada um deles. Havia cerca de doze elfos.

– Vocês não deveriam estar tão confiantes assim – garantiu. – Veja bem, eu era um boxeador nos Estados Unidos…

– Você vai dar soquinhos em todos nós até a morte? – o líder zombou, abrindo os braços.

– Não – ele admitiu. – Mas essa não é a questão. Eu quero explicar por que vocês vão perder essa – ao ver a curiosidade no olhar do elfo, Sobogo continuou. – Eu era um boxeador invicto até enfrentar meu oponente mais fraco. Ele me venceu porque o subestimei. Eu deixei seu rosto deformado no ringue, e quando fui olhar para uma câmera, para comemorar a vitória, ele me golpeou direto no maxilar. Meu cérebro apagou na hora. A partir desse dia, aprendi uma lição muito importante. Todo homem deve medir seu adversário. Vocês não fizeram isso, e por isso irão morrer.

– Sua história é chata e não me comove – o elfo disse, decepcionado. – O que te leva a pensar que não vai morrer hoje?

– Não foi o que eu disse – Sobogo respondeu, se afastando da coluna. – Eu vou morrer, mas não por suas mãos. Mas todos vocês morrerão pelas minhas – ele girou sobre o tornozelo.

Ao entender o que estava prestes a acontecer, o oficial gritou desesperado para que seus homens atirassem. Mas era tarde demais. O Capitão Sobogo deu o cruzado de direita mais forte de sua vida, quebrando a coluna mestra da ruína. O telhado veio abaixo, e em seguida, as paredes.

Dos sobreviventes, surpreendentemente, Sobogo foi o primeiro a sair dos escombros. Ele estava coberto de poeira e sangue. Um elfo se levantou só para ser alvejado pelo americano. Outro também. Por último, o oficial nazista conseguira se arrastar para fora. Sobogo colocou o pé em seu peito e mirou em sua cabeça. Antes que o elfo pudesse barganhar por sua vida, ele apertou o gatilho. Um buraco brotou acima de sua sobrancelha peluda, e um sangue grosso escorreu até uma das orelhas pontudas.

Sobogo saiu das ruínas, incrédulo. Não achava que fosse sobreviver àquilo. Aos poucos, várias pessoas surgiram de suas casas, curiosas. Ao o verem caminhando sozinho, e os elfos mortos nos escombros, eles se aproximaram. Sobogo não falava francês, mas qualquer um sabe o que merci beaucoup significa. Elas estavam agradecidas.

O soldado mancava, desnorteado. Ele não fazia ideia de onde poderia encontrar os seus aliados, ou de como fugir dali. Enquanto tentava organizar as ideias, as pessoas começaram a se alvoroçar, assustadas. Elas apontavam para o norte, e quando Sobogo se virou, viu uma coluna de poeira se erguer ao longe. Veículos saíam do castelo dos alemães. Um comboio vinha até o vilarejo.

– Mas que grande merda – Sobogo declarou, sabendo que era seu fim.

Ele podia fugir ou se esconder, mas no terceiro francês torturado, os alemães descobririam o rumo que ele teria tomado. Não importava o quão agradecido aquelas pessoas estavam, ninguém gostava de ser torturado. Sobogo suspirou, olhando ao redor. Ele viu o medo no rosto daquelas mulheres e crianças. Se perguntou onde estariam os homens do vilarejo. Muitas daquelas pessoas tinham as bochechas molhadas de lágrimas, e Drake Sobogo percebeu que precisava delas, assim como elas precisavam dele.

Alguns jipes chegaram no vilarejo. O oficial responsável era um homem de olhos com cores diferentes e uma cicatriz que rodeava todo o pescoço. Ele fora avisado sobre um tiroteio que acontecera ali, e decidiu levar a maioria de seus homens até o local. Provavelmente a situação havia sido controlada, já que a guarnição do vilarejo era feita de elfos, e essas criaturas eram duras na queda.

– A cidade está vazia, senhor – um soldado declarou o óbvio.

O alemão mandou que continuassem, intrigado. Se perguntou se os franceses haviam se revoltado e atacado os elfos, e depois fugido. Mas algo ainda mais estranho aconteceu. Do outro lado da cidade, diante de uma fundição velha, cheia de janelas, havia um homem que o oficial odiava por dois motivos, porque ele era americano, e porque era negro. Sobogo caminhava cambaleando, obviamente ferido. Ele segurava um fuzil, não muito ameaçador.

– Onde estão os elfos? – o oficial se perguntou, preocupado. – Onde está o pelotão desse negro? Pra onde foram os franceses?

Os outros soldados gritavam para o americano abaixar a arma, mas Sobogo apenas se recostava no muro baixo da fundição. Ficar em pé doía. Os alemães desceram dos carros e se aproximaram do inimigo solitário. Apenas o oficial olhava ao redor, desconfiado. Seu nariz experiente sentia o cheiro de emboscada.

– Vamos sair logo daqui – ele disse, dando as costas para Sobogo. – Matem o negro e voltem para os carros, rápido!

– Ei, você poderia me fazer um favor? – Sobogo gritou para ele. – Diga a Hitler que ele será o próximo!

Quando o alemão se virou, sem entender aquelas palavras, o topo de sua cabeça se abriu, cuspindo miolos para todo lado. Várias janelas da fundição explodiram enquanto os sobreviventes do vilarejo atiravam com as armas dos elfos. Os soldados alemães começaram a atirar de volta, mas havia gente em todos os andares, e eles não sabiam exatamente em quem atirar. As refugiadas desarmadas faziam gestos com as mãos para confundi-los.

– Mandem esses chucrutes de volta para o inferno! – Sobogo saltou sobre a mureta e se escondeu no pátio da fundição. Ele ficou de cócoras e começou a atirar também.

Os alemães morreram sem conseguir matar uma pessoa sequer. Os sobreviventes do vilarejo pegaram suas armas e marcharam até o castelo ao norte, e depois, rumo a Berlim. Mais tarde, Sobogo ficara sabendo que aquelas pessoas, em sua maioria, mulheres, velhos e crianças, conseguiram chegar em Frankfurt, matando todos os alemães que ficaram em seu caminho, até que foram finalmente derrotados.

Drake Sobogo foi resgatado pelos seus compatriotas e levado até uma base próxima a Calais, onde o conduziram para um quarto secreto. Lá, seu general reunira soldados que também haviam enfrentado criaturas místicas, e criou o pelotão de missões sobrenaturais, os Balas de Prata, sob o comando do Capitão Drake Sobogo. O pelotão não durou nem um ano, e Sobogo viu todos os seus companheiros morrerem das piores formas, e pelas criaturas mais diabólicas que brotaram do meio da guerra.

Ele fora enviado de volta para casa, onde teve que ir para o boxe clandestino, já que se tornara um homem violento demais para os torneios tradicionais. Foi nesse submundo de apostas e pessoas má intencionadas que ele conheceu certo sujeito misterioso.

– Fiquei sabendo que você era o capitão dos Balas de Prata – disse o homem, surgindo de um beco escuro, entre colunas de vapor que vinham dos esgotos de Nova York.

– Isso é confidencial – Sobogo respondeu, mostrando o crucifixo com uma mão e fechando a outra. Ele ficara conhecido no submundo como Capitão Sangrento, pois seu soco era tão violento que bastava um golpe para nocautear o adversário e deixar seu rosto completamente coberto de sangue.

– Vamos trocar telefones – o homem pediu, estendendo um cartão pra ele. – Tenho certeza que poderemos ser de grande ajuda um para o outro.

Sobogo pegou o cartão e leu “Detetive Particular de Assuntos Obscuros – Sunday Crow.” Ele olhou para o detetive, surpreso, e guardou o cartão.

Os dois mantiveram contato pelos próximos dias, até que o detetive lhe chamou para o primeiro trabalho. Os dois se encontraram em uma lanchonete à meia noite, e Sunday parecia bem preocupado.

– Preciso que você me ajude a esconder um informante. Os vampiros de Nova York estão atrás dele – Sunday olhou para trás, em direção a um viaduto escuro. Escondido nas sombras, havia um homem. – Antes que pergunte por que eu chamei logo você… é melhor te mostrar pessoalmente. Venha comigo.

Atravessaram o asfalto escorregadio e chegaram até o túnel onde o informante aguardava. A primeira coisa que Sobogo fez foi mostrar o crucifixo, como habitualmente fazia diante de desconhecidos. Isso raramente tinha algum efeito, mas dessa vez foi certeiro. O informante saltou três metros de altura e se prendeu nos tijolos do túnel, de cabeça pra baixo. O capitão arregalou os olhos, surpreso. O informante mostrou seus caninos vampirescos.

– Ele é um deles! – Sobogo gritou, segurando Sunday pela gola e pressionando-o contra a parede. – Você está me pedindo pra proteger um vampiro!

Ele o soltou quando faróis adentraram o túnel. O militar olhou para o vampiro no teto e decidiu agir. Quando o carro se aproximou, ele pulou em seu capô e se impulsionou em direção ao teto. O soco acertou o peito da criatura, jogando-a do outro lado. O motorista do carro acelerou, assustado com toda aquela atividade nas sombras.

– Capitão, pare com isso! – Sunday pediu. – Eu preciso dele vivo!

Sobogo o ignorou e correu em direção ao homem no chão. O vampiro saltou, rodopiando sobre a cabeça do capitão e caindo em suas costas. O boxeador girou, jogando o cotovelo para trás, mas o vampiro se inclinou, desviando do golpe. Em seguida, deu um chute que lhe acertou os dois tornozelos, e quando Drake Sobogo ficou na horizontal, em pleno ar, o vampiro acertou suas costas com uma força sobrenatural. O militar foi arremessado para fora do túnel, rolando no chão.

– Já chega – o vampiro pediu, mostrando a palma da mão. – Não quero te machucar.

Sobogo cuspiu o sangue no chão e se levantou. Fechou os punhos e voltou para o túnel, em posição de boxeador. O vampiro olhou para Sunday, angustiado.

– Eu não quero machucá-lo, detetive. É melhor você segurá-lo.

Com um passo largo, Sobogo desferiu um de seus melhores golpes. Sua mão acertou em cheio o rosto da criatura. Em seguida, o militar recuou, assombrado. O informante permanecia na mesma posição, olhando para ele com grande desconforto. Isso era diferente de dor. Seu soco não fizera nada.

– Criatura maldita – Sobogo sussurrou.

– Ele é diferente – Sunday garantiu. – Preciso que me ajude a protege-lo.

– Diferente uma ova! – Sobogo esbravejou e lhe deu as costas, sabendo que seria inútil continuar aquela briga. – Eu não farei parte disso. Quando quiser mata-lo, aí sim você me chama.

 

Alguns meses se passaram, e Sobogo estava em seu apartamento, esmurrando um saco de areia. As brigas clandestinas só aumentavam, e ele não perdia uma. E durante seu treino, o telefone de ferro tocou. Ainda encharcado de suor, ele atendeu. Era Sunday. O detetive pediu para se encontrarem novamente. Precisavam falar sobre aquele vampiro.

O boxeador foi até o apartamento do outro, e ao chegar lá, encontrou um jovem vestindo uma boina e um colete. O garoto tinha apenas dois dedos na mão direita, enfaixada.

– Capitão Drake, esse aqui é Icabode St. John, um amigo.

Drake Sobogo olhou para o garoto, e por algum motivo sentiu um arrepio. Mal ele sabia que o próprio Diabo estava ali perto, observando aquele encontro.

 

Leia  todos os  capítulos de Icabode St. John clicando aqui. Ou então encontre mais livros do autor clicando aqui.

Icabode St. John [2]

Nos capítulos anteriores: Icabode perseguia o vampiro Anatole até encontrá-lo fora da cidade. O vampiro tentou fugir voando, mas Icabode se agarrou nele, e ambos sobrevoaram Nova York em uma luta sanguinária. Eles caíram em um carro durante uma perseguição policial. Depois de o vampiro se livrar das viaturas e matar o motorista, o carro em que estavam invadiu um galpão cheio de mafiosos poloneses. No fim, Icabode paralisou Anatole com uma estaca no coração e ateou fogo em seu corpo. 

 

Apesar dos dedos decepados, cortes profundos e costela quebrada, nada incomodava tanto a Icabode quanto aquele sofá que parecia ser feito de areia movediça coberto de veludo. Do outro lado da sala, um “julaco” (nome que Icabode dera àqueles judeus poloneses), o encarava, entediado.

O médico da máfia cuidara de seus ferimentos e lhe dera uns analgésicos. Depois de uns dias de descanso nos fundos de um açougue, Icabode fora trazido para o escritório do líder dos julacos, Solomon Saks, um velho de barba e cabelos brancos.

Em sua frente havia uma mesa de sinuca com vários pacotes de heroína em cima. Icabode sabia disso porque ouviu os julacos falando sobre as drogas. Ele não queria se meter no assunto, por isso ficou em silêncio. Tudo o que queria era ouvir o que Saks tinha a dizer e ir embora.

Quando o velho chegou, ele convidou Icabode a se sentar à sua mesa. Solomon Saks tinha uma postura incrivelmente ereta, e seus passos eram firmes e rápidos. Ele não parecia ser o homem de setenta anos que sua barba divulgava. Com um sorriso educado, pediu que Icabode explicasse o que tinha acontecido e por que seus homens diziam que um vampiro tinha matado Mickey, um de seus funcionários mais leais.

Ao lado de Saks, um julaco de mais de dois metros de altura observava a conversa em silêncio. Eles o chamavam de Troche, que significa “mordeu” em polonês. Antes do final daquele diálogo, Icabode entenderia o motivo.

– Semana passada – Icabode começou a explicar -, meu pai foi visitado por um velho amigo, Sunday. Ele disse que estava nos visitando apenas para ver como iam as coisas… mas ninguém sai de Manhattan e vai para Montauk só por isso. Os dois ficaram horas no escritório do meu pai, falando em privado. Depois que Sunday foi embora, eu entrei escondido no escritório e encontrei isso em cima da mesa.

Icabode tirou a página rasgada de uma bíblia do bolso e a estendeu para Saks. O trecho marcado dizia “E qualquer homem da casa de Israel, ou dos estrangeiros que peregrinam entre eles, que se alimentar de sangue, contra aquela alma porei a minha face, e a extirparei do seu povo.” No rodapé da página tinha um nome circulado várias vezes com caneta: “Anatole”. Icabode continuou a história.

– No outro dia, eu estava chegando do mercado à noite, quando vi uma lamparina acesa no quintal de casa. Meus pais estavam pendurados de cabeça para baixo, amarrados a um carvalho velho. Seus pescoços estavam abertos, e o sangue caía direto em uma tina de vinho. O vampiro estava atrás deles, bebericando de uma caneca de madeira. Quando ele me viu, deu um sorriso e se escondeu nas sombras.

Troche abriu um sorriso, achando a história interessante. Seus dentes eram feitos de aço, pontiagudos. Aquilo era intimidador, e Icabode evitou qualquer contato visual com o julaco.

– Naquela madrugada, enterrei meus pais. Depois, eu peguei uma das cartas que eles trocaram com Sunday e encontrei seu endereço. Entrei no primeiro ônibus para Manhattan e contei o ocorrido a ele. Sunday chorou, assumindo toda a culpa daquilo. Ele explicou que certamente Anatole o seguira até Montauk em sua última visita. Disse que o vampiro era um forasteiro, e que havia lhe procurado antes, querendo saber o paradeiro do reverendo Peter St. John, meu pai, mas Sunday mentiu, alegando que não o conhecia.

– Como esse vampiro encontrou o amigo de seu pai? – Solomon Saks perguntou.

– Sunday é um detetive muito conhecido no submundo do ocultismo. Provavelmente alguém indicara seu nome a Anatole sem saber que ele e meu pai eram próximos.

– E por que seu pai deveria ser conhecido pelo submundo ocultista? – Solomon perguntou, intrigado.

– Eu também estou atrás dessa resposta – Icabode confessou, olhando para a mesa. Ele ergueu os olhos e voltou à história. – Mas quando Sunday veio nos alertar sobre Anatole em Montauk, certamente o vampiro o seguiu e descobriu nosso esconderijo… Que estranho. Eu nem sabia que estávamos nos escondendo de algo.

– E como você encontrou o vampiro?

– Sunday sabia como encontra-lo. Ele me passou o endereço e eu o alcancei ao norte, fora da cidade. O maldito viera só matar meus pais e já estava voltando para o local de onde viera. Mas eu o ajudei e o mandei direto para o inferno. Durante nossa luta, a gente acabou caindo no carro de Mickey. O resto da história os seus homens já te contaram.

– Meus homens disseram que o vampiro tinha o rosto derretido e o corpo coberto de balas, e mesmo assim ele se levantou e saiu caminhando antes de você finalmente mata-lo.

– Sim. Matar criaturas imortais não é tão fácil quanto parece.

– Mas você o fez – Solomon o lembrou. – E com nenhuma arma em mãos. Imagina com os recursos necessários, as coisas que seria capaz de fazer.

– Sim… – Icabode disse, cauteloso. – Mas eu não sou nenhum assassino. O que fiz, fiz carregado de ódio e tristeza. Algo que nunca tinha sentido antes. Meus pais sempre me ensinaram que o ódio é um pecado mortal, e pretendo nunca mais fazer algo movido por esse sentimento.

– E que tal movido por uma missão santa? Vampiros não são criaturas do mal? Não acha que nossa cidade ficaria mais protegida se acabássemos com elas? O seu pai era um reverendo. O meu era um rabino. Não acha que eles teriam orgulho de nós se fizéssemos algo a respeito? – ele ergueu a página da bíblia e leu: “contra aquela alma porei a minha face, e a extirparei do seu povo.” Isso parece algo bem bíblico pra mim.

Icabode pegou a página e voltou a ler o versículo. Aquilo lhe parecia melhor do que voltar para sua casa vazia em Montauk. Uma “missão santa”, como Saks dissera. O jovem refletiu um pouco e depois assentiu, concordando. Solomon Saks sorriu, satisfeito.

 

Sunday era um homem de cabelo grisalho, solitário e saudosista. Ele bebia um copo de uísque quando alguém bateu em sua porta. Pela janela, viu Icabode todo enfaixado e ferido. O detetive     ficou feliz ao ver que o garoto não tinha morrido. Ao seu lado havia um judeu de grande estatura. Sunday pegou uma pistola e abriu a porta, em alerta.

Em seguida, os três estavam sentados na sala de estar. Troche não disse uma palavra durante a visita. Icabode explicou a proposta de Saks, mas Sunday não se sentiu confortável com aquilo. Como policial aposentado, ele sabia quem eram aqueles poloneses, e principalmente, sabia quem era Solomon Saks.

– Eu nunca cacei um vampiro na vida – Sunday deixou claro. – Olhe para você. Essa foi sua primeira briga, e veja como ficou. Quase morreu! Se fizermos isso, quem sabe o que vai acontecer? Nós nunca conseguiremos limpar as ruas da cidade dessas criaturas. Você não faz ideia de quantas existem por aí.

– Por isso eu preciso que me diga onde estão. No outro dia,  você comentou que conhecia outros vampiros em Nova York.

– Você não vai querer mexer nesse vespeiro, garoto – Sunday o alertou. – Parabéns, conseguiu matar um deles, mas lembre-se, Anatole era forasteiro. Se você começar uma guerra com um membro da sociedade vampírica daqui, todos eles irão revidar. Acredite.

– Eu não estou sozinho – Icabode olhou de lado para Troche que observava em silêncio. – E pra falar a verdade, não me importaria em começar uma guerra santa.

– Guerra santa? – Sunday repetiu, abaixando a cabeça, decepcionado. – Você não sabe o que está dizendo.

Icabode se levantou, frustrado.

– Se você não vai nos ajudar, eu dou um jeito sozinho. Obrigado – ele se virou e começou a se afastar.

Sunday pensou em seus amigos, Peter e Sandra, e em como ele causara a morte dos dois. O órfão deles estava ali, indo para a morte certa, e tudo isso era sua culpa. Suspirando, ele colocou o copo de uísque na mesinha e disse:

– Espere. Eu sei onde UM deles está. Felizmente é um pobre coitado. Deixe os planos comigo. O papel de Saks será apenas prover as armas e os soldados, entendido?

– Oh – Troche falou pela primeira vez, mostrando os dentes de aço. – Nós entendemos perfeitamente.

Icabode e Sunday passaram o resto da tarde no escritório de Solomon Saks, discutindo sobre seu primeiro plano e explicando as fraquezas dos vampiros. A quantidade de julacos e armas que Saks iria dispor facilitariam bastante a missão. Daria até mesmo para colocá-la em prática naquela noite, e o próprio Saks fazia questão de ir junto.

– Isso é um pequeno exército – Sunday olhava para as anotações sobre a mesa.

– É uma “guerra” santa, camarada. Toda guerra precisa de exércitos – Saks declarou, orgulhoso.

Icabode sabia que o detetive não gostava nem um pouco daquela conversa. Oras, ele próprio não estava gostando daquilo, mas o garoto não conseguia discordar de Saks. Se existisse uma guerra a ser travada em nome da paz, era aquela maldita guerra que eles estavam planejando.

O escritório de Solomon Saks tinha um carpete verde, sofás de veludo, lustres de ouro e cortinas coloniais. A heroína fora substituída por armas em cima da mesa de sinuca, vários julecos adentravam a porta dupla sem parar. As luzes de um grande painel elétrico do outro lado da rua atravessava a janela com cores mistas sobre o exército de homens barbudos com chapéus negros. Havia dezenas deles. Cada um pegou uma arma que estava em cima da mesa e se preparou para a guerra santa.

Lá fora, havia um Rolls Royce Wraith 1946. Troche abrira a porta para que Solomon, Icabode e Sunday entrassem. O exército de Saks foi espalhado em vários outros carros. E a marcha das valquírias seguiu pelas ruas escuras de Green Point, Brooklyn, em direção a algum lugar em Long Island.

Troche era o motorista, e Saks ia ao seu lado. No banco traseiro, Sunday sussurrava para Icabode, tentando falar mais baixo do que o som do rádio.

– Você sabe que fizemos aliança com um dos criminosos mais poderosos de Nova York, não sabe?

– Há males que vem para o bem, Sunday – ele deu dois tapinhas na coxa do policial.

– Isso é um pacto com o diabo, isso sim – Sunday sussurrou para si.

 

O quarteto ficou em silêncio o percurso inteiro. Eles saíram da cidade e continuaram em uma estrada de terra por um bom tempo, ladeados por densos matagais. Depois de vários quilômetros sem ver construção alguma, os carros pararam diante um cercado. No centro do terreno havia uma mansão velha e caindo aos pedaços. As janelas foram fechadas com tábuas, e o jardim, tomado por ervas daninhas e joio.

– Diga para todos os carros virarem os faróis para a casa – Solomon Saks disse, saindo do Wraith 46. – Vamos capturar esse filho da mãe.

– Capturar? – Icabode franziu a testa, surpreso.

Os carros ainda estavam manobrando quando Icabode se pôs diante de Solomon. O velho de postura invejável e peito estufado, encarava o garoto, sério. Sua barba e cabelo esvoaçavam com o vento frio que se adensava ao seu redor. Sunday se colocou ao lado do jovem, desafiador.

Todas as luzes estavam apontando para a mansão, e o exército se reuniu diante do portão. Todos de preto, todos com armas, todos com uma missão diferente do que Icabode esperava.

– Obrigado pela ajuda, garoto. Todas as informações que vocês nos passaram sobre os vampiros foram bem úteis – Solomon disse, colocando a mão no ombro de Icabode. – Mas você está dispensado. Eu assumo daqui pra frente.

Quando Sunday fez menção de avançar, Troche lhe mostrou a arma, fazendo os dois saíram de frente. Saks e seu capanga os deixaram sozinhos. Icabode olhou para o detetive, envergonhado por ter causado aquela situação. Os dois não fizeram nada além de assistir a operação de Saks.

O exército adentrou a mansão, arrebentando as portas da frente e das laterais com chutes e tiros. Lá dentro, mais explosões e clarões dos disparos. Balas costuravam as paredes, e um soldado fora arremessado pela janela. Em seguida, veio o silêncio. Um grupo de julacos saiu pela porta da frente, arrastando um corpo. O vampiro tinha uma estaca no coração, mas aparentemente ainda estava vivo. Eles o jogaram em um dos carros, e o comboio foi embora dali. O Rolls Royce se aproximou dos dois observadores quando Saks colocou a cabeça pra fora.

– Vocês fizeram parte do que está por vir – disse ele, satisfeito. – Depois desta noite, nenhuma outra família será tão grande quanto a nossa. Todos ouvirão falar de Solomon Saks, o Imortal!

O carro se afastou, deixando os dois para trás, sozinhos no meio do nada. Icabode e Sunday se entreolharam.

– “O Imortal”? – Icabode perguntou, confuso.

– Ele pretende se tornar um vampiro – Sunday explicou. – Garoto, essa guerra não será tão santa assim.

 

Leia  todos os  capítulos de Icabode St. John clicando aqui. Ou então encontre mais livros do autor clicando aqui.

Icabode St. John [1]

Anatole estava no bar, pensando em sua próxima refeição quando viu um jovem entrar. Ele sabia que o nome do garoto era Icabode St. John, filho do reverendo Peter e da costureira Sandra. Seus olhares se cruzaram, mas Icabode passou reto, rumo ao balcão. Anatole sabia que ele estava ali por sua causa. E era questão de tempo até eles estarem sentados juntos.

Icabode pediu um copo de água para o balconista e foi até a Jukebox, colocar I’ll Never Smile Again. E então o melodramático Frank Sinatra substituiu as baladinhas que os bêbados estavam ouvindo até então. Era década de quarenta, e aquele jovem Sinatra prometia.

Ele se virou e caminhou a passos lentos, balbuciando algo e segurando o copo de água. A luz roxa de um neon iluminou seu rosto, e Anatole pôde ver com mais clareza a face do miserável. Icabode puxou uma cadeira e sentou em frente ao africano. Antes que trocassem qualquer palavra, um garçom suado e com cheiro de peixe velho, perguntou o que iam pedir.

– Nada pra mim – Icabode disse. Sua boca estava torta num sorriso apodrecido.

– O mesmo que ele pediu – Anatole respondeu, sem tirar os olhos do jovem em sua frente.

– É noite de sexta – o garçom lembrou. – Daqui a pouco os marinheiros chegarão, e a maioria das mesas já estão ocupadas. Se não forem pedir nada, meu pai vai coloca-los para fora.

– Nesse caso, vou querer uma torta de nata e um café – Icabode respondeu.

– E como vai o café? Com açúcar? Preto?

– Preto como ele – Icabode olhou para o africano em sua frente -, e doce como eu – sorriso podre novamente.

O garçom se virou para Anatole e perguntou o que ele queria.

– Quero que você suma da minha frente – respondeu, girando o dedo na direção do homem.

O garçom se afastou, assustado. Icabode e Anatole voltaram a ficar sozinhos.

– Por que você pediu algo, já que não ficaremos muito tempo aqui?

– Como sabe disso?

– Você veio me matar, não foi?

– Era o que eu tinha em mente durante toda a viagem que fiz até aqui – Icabode confessou, girando o dedo no copo, cuja água não dera um gole sequer.

– Você me seguiu desde Long Island? – Anatole estava curioso.

– Manhattan. Primeiro tive que enterrar meus pais.

– Sinto muito por isso.

– Não, não sente. Você os matou – Icabode puxou um maço do bolso e acendeu um cigarro. – Por isso vim atrás de você.

– O reverendo te ensinou a ser uma pessoa santa, garoto – Anatole o lembrou, achando aquilo divertido. – Você nunca seria capaz de ferir alguém. Pelo menos trouxe alguma faca aí? Pois eu não vejo nada na sua cintura.

– É verdade, meu pai tentou me ensinar o caminho do perdão – ele deu um trago forte o suficiente para fazer as bochechas afundarem e o fogo iluminar seus olhos vermelhos. – Mas agora que ele está morto, eu nunca saberei a lição de moral que vem no final.

– Eu não estava esperando por essa, garoto, de verdade – Anatole se inclinou pra frente, fascinado com o jovem que estava prestes a mata-lo. – Você faz jus ao seu próprio nome. Você sabe o que ele significa, não sabe?

– Icabode significa… – ele parou para jogar as cinzas no cinzeiro, e fez questão de encarar o homem nos olhos – “foi-se a glória de Deus”.

O bar onde eles estavam, ficava numa estrada situada à beira do mar. Ali, o som da música competia com as gaivotas, as ondas e com o barulho que os marinheiros faziam enquanto desembarcavam.

– E como você pretende fazer isso? – Anatole perguntou se recostando na cadeira. – Eu não imaginava que você estava me seguindo. Pensei que teria uma noite tranquila… mas, bem – ele abriu os braços, resignado. – Aqui estamos. Você vai querer comer primeiro ou nós vamos lá pra fora e que vença o melhor?

– Lá pra fora? – Icabode perguntou, intrigado. – Você acha que vai sair vivo daqui?

Anatole congelou. Pela primeira vez seu sorriso foi tremido. O bar estava cheio, e a maioria daquelas pessoas portava algum tipo de arma consigo. Se Icabode fizesse algo, ele mesmo estaria morto em poucos segundos. Os olhos do africano desceram mais uma vez em direção à cintura do garoto, esperando ver algum revólver, faca ou estaca. Mas Icabode apenas fechou os dedos ao redor do copo de água que permanecia cheio.

– Depois que eu pedi esse copo – ele olhava para o objeto em suas mãos. – Eu enrolei para chegar aqui por um motivo – seus olhos subiram, e eles quase pegavam fogo. – Eu fui na jukebox, andei devagar…

– O que você fez, garoto? – os olhos de Anatole tremiam. – Deixe de suspense. Diga logo por que não bebeu essa água.

– Porque eu a trouxe pra você! – Icabode jogou no rosto do sujeito a água que benzera no caminho do balcão até ali

Anatole derrubou a cadeira para trás, aos gritos. Ele cobria o rosto com as próprias mãos enquanto uma fumaça negra subia por entre seus dedos. Todos os clientes se viraram assustados, encarando o homem que agonizava no meio do bar. O próprio Icabode ficou surpreso com o que acontecera. O que veio em seguida, foi a coisa mais assombrosa que qualquer uma daquelas pessoas iria ver em toda a sua vida.

– Jesus, Maria e José! – um velho gritou, apontando para as pernas de Anatole. O africano estava flutuando dois palmos acima do chão.

Todos se afastaram, apavorados, menos Icabode. Apesar da bruxaria, o garoto não se permitiu ser intimidado. Ficou em alerta, esperando que aquilo fosse o suficiente para acabar com seu inimigo. Infelizmente, não era. Anatole abaixou as mãos trêmulas, e revelou o rosto comido pela água benta. Agora havia uma caveira com olhos sem pálpebras encarando a Icabode.

–  O QUE VOCÊ FEZ, GAROTO?

Icabode ergueu um crucifixo, tendo medo pela primeira vez. Ele não esperava que as coisas tomassem aquele rumo. Em sua cabeça, o plano parecia ser mais fácil, mas naquela hora, não fazia ideia de como alcançar o desfecho que queria.

O vampiro girou lentamente no ar, olhando ao redor. Todas aquelas pessoas se encolhiam, apavoradas. Ele viu uma janela, lançou um último olhar a Icabode e voou em direção à saída.

– Não fuja, demônio! – Icabode gritou, subindo na cadeira e correndo sobre as mesas. – Não ouse fugir!

O garoto se lançou sobre Anatole um momento antes de os dois atravessarem a janela para fora. Os dedos de Icabode agarravam firmemente o terno surrado do demônio. As pernas abraçaram a cintura do outro. Agora eles estavam cara a cara, no meio da noite. O voo do vampiro ganhava velocidade entre as árvores, e os dois cortavam a bruma, desgovernados.

Anatole tentava mordê-lo enquanto ganhavam altitude. Mais ao sul, as luzes ofuscantes de Nova York ganhavam espaço, e o vento gelado começava a atrapalhar a respiração de Icabode. Suas mãos e músculos já doíam, e ele sentia que estava prestes a ceder. Eles voavam muito rápido, e estavam a centenas de metros acima do chão.

Icabode estava ficando tonto, e nesse momento, em sua mente veio a imagem do reverendo Peter mordendo uma maçã à beira do lago. O suco da fruta escorria por seu queixo. Sua mãe afastava as folhas outonais para colocar a manta do piquenique. O sol era colorido e os perfumes das flores os deixavam prazenteiros. Em seguida, viu os túmulos de seus pais.

– VOCÊ… – ele disse com muito esforço. – VAI… MO-MORRER!

Soltou o terno do vampiro e ficou pendurado apenas pelas pernas. Ele pegou o crucifixo com uma mão e agarrou a nuca de Anatole com a outra. A criatura tentava mordê-lo enquanto os dois giravam no meio do negrume do céu. Icabode esperou o momento certo. Ele enfiou o crucifixo dentro da boca da criatura no momento em que a mordida se fechava.

Os dois corpos começaram a girar ininterruptamente em uma queda livre. O vampiro soltava uma coluna de fumaça de sua boca, e Icabode segurava a sua própria mão, olhando para o lugar onde estavam seus dedos.

 

Na avenida Madison, um dos chacais do mundo dos negócios deixava o restaurante de elite juntamente com os seus novos clientes. Aquele pequeno grupo tinha dinheiro suficiente para comprar um país. Eles sorriam e comemoravam a nova parceria, e também a vitória sobre a Alemanha nazista. O momento foi interrompido quando algo passou por cima de suas cabeças em alta velocidade, batendo nas bandeiras penduradas do prédio. O chacal milionário sentiu algo quente acertar sua testa e começar a escorrer pelo rosto. Enquanto seus parceiros olhavam para cima com espanto, ele tocou o líquido em sua cabeça e viu as pontas de seus dedos sujas de sangue.

 

Os dois sobrevoavam as ruas de Manhattan, prestes a baterem em algo que causaria suas mortes. Mas a queda final de Anatole os jogou no assento traseiro de um conversível em alta velocidade. Sirenes policiais os perseguiam freneticamente. O motorista do conversível olhou para trás assustado, e puxou sua pistola. Icabode usou o corpo do vampiro como um escudo no último instante, e balas rechearam seus órgãos. Gritando, Anatole se desvencilhou de Icabode e se jogou contra o pescoço do motorista, arrancando um grande pedaço de carne. Em suas costas, três viaturas policiais tentavam pará-los.

– Nós fomos parar logo no meio de uma perseguição – Icabode sussurrou, ainda deitado no banco traseiro do carro.

Anatole ficou em pé, com a caveira toda banhada de vermelho. A polícia aproveitou a exposição e começou a disparar. Icabode se encolheu mais ainda. Quando levou os primeiros tiros, o vampiro se virou para trás e encarou os policiais. Ele perdera qualquer resquício de sua civilidade. O vampiro se tornara completamente bestial. E então ele atacou.

Anatole se jogou do conversível em direção aos policiais. O motorista do meio tentou desviar do corpo que vinha em sua direção e jogou o carro para o lado, se chocando com a outra viatura. Os dois veículos rodaram na pista, para fora do jogo.

Icabode ergueu a cabeça e viu apenas um dos carros vindo em sua cola. Ele olhou para o motorista do conversível e viu que ele segurava o pescoço dilacerado, lutando para não desmaiar. O próprio Icabode sangrava bastante. Perdera três dedos da mão, mas o calor do momento não o deixava sentir dor… ainda.

Tiros o fez olhar novamente para a viatura. Anatole estava no capô do carro, pegando o motorista e o jogando pela janela. A perseguição policial acabara ali, mas isso era o de menos.

Icabode causara muita dor ao vampiro, e agora ele teria que pagar por isso. Anatole saltou da última viatura que ficara desgovernada e caiu na traseira do conversível.

– Quem são vocês? – o motorista gritou, pálido e sujo de sangue.

Icabode rolou para o chão do carro quando Anatole saltou sobre ele. Agora estava encurralado de todos os lados. As garras do vampiro cresceram, e sua caveira vermelha descia lentamente em sua direção. Os caninos vampirescos estavam imensos. Lá no céu, um bimotor arrastava uma faixa da Goodyear.

Icabode estava com a mão ferida, e não poderia se defender do ataque, mas numa última tentativa, empurrou a barriga do vampiro com os pés. As garras de Anatole passavam rente ao seu rosto, abrindo pequenas linhas de sangue em sua pele. Por alguns segundos os dois lutaram ferrenhamente no chão do carro, até que o vampiro segurou as duas mãos do jovem cansado. Ergueu a cabeça para a mordida final.

O carro atravessou um galpão subitamente. A porta caiu sobre o vampiro, e tudo ficou escuro. Os pneus passaram por cima de vários objetos, fazendo todos saltarem de seus lugares. E uma batida final fez o conversível parar. Icabode não via nada, mas sabia que tinham invadido algum lugar. Pedaços da porta de madeira caíram pra todo lado. Ele sentiu algo em sua mão esquerda. A caveira vermelha voltou, mostrando as presas novamente. Eles fizeram seu último ataque, onde um deles causaria a morte do outro.

Vozes surgiram de todos os lados, e passos apressados cercaram o carro. Apenas Anatole se levantou dali. Todos os homens recuaram com gritos de susto. O motorista estava morto sobre o volante, e um demônio da noite saía lentamente do conversível.

– O que é aquilo? – alguém perguntou.

Quando Anatole olhou para baixo, viu uma lasca de madeira se projetar de seu peito. O vampiro ficou completamente paralisado. Em seguida, Icabode se levantou, todo ferido. Ele acendeu seu cigarro e depois ateou fogo no terno do vampiro. O jovem se afastou e se encostou no conversível, enquanto Anatole se tornava uma coluna de fogo.

– O que está acontecendo, e quem matou o Mickey? – um dos homens apontou para o motorista morto.

Icabode analisou o galpão onde estava e percebeu que era algum esconderijo ilegal. Os homens ao redor vestiam roupas e chapéus pretos, barbas grandes e costeletas bizarras. Um deles carregava uma metralhadora Thompson com o disco de munição encaixado próximo ao gatilho.

– Não vê que eu acabei de matar um vampiro? – Icabode perguntou, cansado. – Foi ele quem matou seu amigo – ele apontou o dedo para os mafiosos. – Vocês são judeus?

– Judeus poloneses – um deles respondeu. – Você disse… vampiro? – ele se aproximou um pouco, e o fogo de Anatole bruxuleava em seu rosto. Ele parecia muito interessado.

 

Leia  todos os  capítulos de Icabode St. John clicando aqui. Ou então encontre mais livros do autor clicando aqui.

Sair da versão mobile